Revista Exame

Novo livro de FHC aborda a falta de líderes no Brasil; leia trecho inédito

EXAME publica trecho inédito de Crise e Reinvenção da Política no Brasil, novo livro do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso que será publicado no dia 20

Vista do Palácio do Planalto, sede da Presidência: o colapso do sistema político deixou um grande vazio de lideranças | Valter Campanato/Agência Brasil (Valter Campanato/Agência Brasil)

Vista do Palácio do Planalto, sede da Presidência: o colapso do sistema político deixou um grande vazio de lideranças | Valter Campanato/Agência Brasil (Valter Campanato/Agência Brasil)

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Da Redação

Publicado em 12 de abril de 2018 às 05h00.

Última atualização em 17 de abril de 2018 às 09h39.

“O antigo já morreu e o novo ainda não surgiu em sua plenitude. O filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937) dizia que nesse tempo incerto da passagem do velho para o novo surgem muitos sintomas de desencanto. A desmoralização da política é um deles. As pessoas não se reconhecem em seus representantes. Percebem o sistema político como um mundo à parte, fechado em si mesmo, desconectado da vida da população. Há dificuldade em vislumbrar uma saída para a crise, para a reconstrução do sistema partidário e dos elos entre sociedade e política.

A crise também atinge o PSDB, e pelo mesmo motivo que atinge o PT: desilusão. Do PSDB se esperava muito, como se esperava antes do PT. Um e outro foram os partidos que dominaram o sistema político nos últimos 20 anos. Ambos representaram forças modernizadoras que, no entanto, nunca se juntaram. Pela competição política e pela propensão hegemônica do PT. O Partido dos Trabalhadores representava o movimento sindical, certa intelectualidade, certa classe média com um capital cultural acima da média. E o PSDB uma classe média de profissionais ligados seja ao mercado, seja a funções mais altas do aparelho de Estado, das universidades e das empresas. Embora ambos, nas mensagens e talvez nos propósitos, quisessem representar os mais pobres e, claro, os interesses nacionais, foram capazes, uma vez chegando ao poder, de alcançar repercussão na grande massa de eleitores cuja cara é mais próxima da pobreza do que da riqueza.

Esses setores que emergiram como forças modernizadoras no processo de redemocratização do Brasil estão hoje órfãos. Parte deles busca identificação com partidos menores à esquerda e à direita. A maioria sente que nenhum partido a representa. Isso não significa que esses setores não possam votar novamente no PSDB e no PT, mas se desfez o vínculo mais profundo de representação que existiu no passado.

O PMDB, atual MDB, se tornou o grande partido de acomodação dos diversos interesses locais e regionais dentro do aparelho de Estado. É o partido que, desde a redemocratização, mais extensa e duradouramente ocupou a máquina pública. Desse ponto de vista, vou ser dramático e dizer: o PMDB é herdeiro da Arena e não do velho MDB, partido da resistência à ditadura. O PFL (hoje DEM), originário da Arena, tornou-se um partido minoritário e menos dependente do aparelho de Estado. O PMDB ocupou o espaço. Assisti a esse processo quando era líder do PMDB no governo Sarney.

A palavra de ordem na época era: ‘Temos que tirar os malufistas’. E quem eram os malufistas? No aparelho de Estado às vezes não eram malufistas, fisiológicos; eram técnicos. Por exemplo: toda a modificação do sistema de telefonia foi feita pelos militares, em geral com gente competente. Os partidos entraram e fizeram o loteamento do Estado. Fazia-se sorteio nas bancadas para decidir quem ficava com qual cargo.

Nas últimas duas décadas tivemos dois partidos polares (PT e PSDB) e o PMDB como partido da ‘governabilidade’. O PMDB manteve esse papel central porque nunca houve aliança do PT com o PSDB. Por que isso não ocorreu se ambos possuíam aspirações modernizadoras e nasceram mais ou menos na mesma onda? Por competição eleitoral — quem fica com o poder? — e porque o PT tinha propensão ao hegemonismo, projeto que nunca seduziu o PSDB.

O ex-presidente Lula: “O PT achava que controlaria o Congressocom sua fisiologia. E controlou a seu modo. Até ser devorado por ele” | Marcelo Goncalves/Sigmapress/Estadão Conteúdo

Nunca comungamos da ideia de uma revolução feita pelo partido a partir do Estado. O PSDB sempre foi, nesse sentido, mais aberto do que o PT. O PT achava que controlaria o Congresso com sua fisiologia. E controlou a seu modo (vide mensalão). Até ser devorado por ele. Essa absorção do PT pelo que há de mais tradicional na cultura política brasileira é um fenômeno espantoso.

Na verdade, algo do que estamos falando hoje também se aplica ao PSDB. Não da mesma maneira que ao PT, na medida em que o PSDB nunca se propôs a obter hegemonia no poder nem teve a visão sistemática de trocar vantagens por apoios. Mas não se pode dizer que o partido tenha sido vítima de tudo isso. Não foi vítima, foi partícipe, ainda que as situações sejam muito diversas. O PSDB governa São Paulo há 20 anos, e não há indícios de corrupção sistêmica, do tipo da que se vê hoje exposta à luz do dia.

Qual é a grande diferença das várias crises pelas quais passamos e que conhecemos da história? É que sempre havia o ‘outro lado’ à espera de chegar ao poder. Por exemplo, no tempo do Getúlio, a UDN queria assumir o poder de qualquer maneira. Mesma coisa, ainda que com menos clareza, no tempo do Collor, em que havia partidos e lideranças dispostos a governar. Agora parece não haver alternativa. O desgaste do governo Dilma (e algo disso ocorre com o governo Temer) não é consequência da crítica política provocada pelo ‘outro lado’, mas da descrença da população — em alguns casos, do desespero — na capacidade dos governos de resolver seus problemas mais prementes que a mídia transmite e generaliza na opinião pública. A mídia amplifica esse mal-estar social, mas não o inventa. Ele existe por si mesmo.

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: “Na crise que vivemos, o protagonismo vem da Justiça, da mídia e da opinião pública” | Nacho Doce/Reuters

Ao contrário de crises anteriores, não há nenhum setor político pronto a assumir o governo, portador de uma mensagem clara e coerente de reconstrução do país. Essa ausência de caminhos, de alternativas de poder, leva a uma sensação de impotência, leva ao sentimento de que estamos num beco sem saída, num impasse. Não há outro lado visível.

Há de construir uma alternativa.

Combatendo A DESCRENÇA

Antes de abordar os caminhos para a superação da crise que nos afeta, vale lembrar o modelo de mudança subjacente ao Plano Real, que pôs fim a duas décadas de inflação alta, crônica e crescente, depois de várias tentativas fracassadas anteriores. Então também havia, de um lado, um clima generalizado de inconformismo com a hiperinflação e, de outro, descrença na capacidade do governo de vencê-la definitivamente. Para superar essa descrença, tão importante quanto o conteúdo das medidas adotadas foi a forma como elas foram implementadas.

A sociedade não tolerava mais ser tomada de surpresa por choques monetários, congelamentos de preços e salários, confisco de ativos financeiros. Com o respaldo do presidente Itamar Franco, eu, como ministro da Fazenda, e minha equipe anunciamos com antecedência de seis meses o passo a passo das medidas que tomaríamos até o lançamento da nova moeda, o real. Foi um exercício de persuasão. O que mais fiz como ministro da Fazenda foi falar. Falar ao Congresso, para convencê-lo a aprovar as medidas necessárias ao plano; falar à sociedade, para convencê-la de que dessa vez daria certo; falar no exterior, para retomar a confiança dos estrangeiros. Houve correspondência entre a palavra e a ação do governo. Em vez de choques e surpresas, anunciamos o que faríamos, e o fizemos.

Itamar Franco se revelou à altura do momento crucial que o país vivia: congregou forças sociais e políticas que haviam se juntado no impeachment de Fernando Collor, demonstrou, com gestos, que em seu governo não toleraria corrupção (marca atribuída ao governo anterior), soube escolher seus auxiliares e teve a generosidade política rara de delegar poder a mim como ministro da Fazenda.

Digo isso para relativizar, uma vez mais, a ideia de que o país está desprovido de lideranças à altura da crise. Lideranças surpreendem e se afirmam em momentos críticos da vida de um país. A diferença é que hoje não há um tipping point tão óbvio e capaz de pôr em marcha uma sequência de mudanças. A hiperinflação era a mãe de todos os problemas, e a vitória sobre ela gerou um capital político extraordinário, que me permitiu fazer muitas reformas já como presidente.

Há, no entanto, lições que são aplicáveis ao enfrentamento da crise atual: os propósitos da mudança precisam ser explicados reiteradamente, em diálogo democrático permanente com a sociedade; em algum momento a mudança precisa ser encarnada por uma ou mais lideranças que a simbolizem; a mudança precisa estar associada a uma nova visão sobre o país, traduzida em uma agenda de políticas públicas.

O colapso do sistema político está deixando um grande vazio. A sensação de ausência de lideranças é muito sensível na política, não se estende na mesma medida a outros campos, embora neles também ocorra. Na resistência contra a ditadura militar, havia líderes de grande expressão na Igreja, entre os juristas e entre os intelectuais. No final do governo de Ernesto Geisel (1974-1979) surgiu uma liderança empresarial que assumiu um papel público, na crítica ao estatismo e em apoio à abertura política.

A sensação hoje é de uma crise generalizada de representatividade. O que levanta questões de difícil resposta. É pensável uma sociedade aberta e complexa sem líderes? Não estamos acostumados a isso, nem entrevemos essa possibilidade futura. Quanto mais aumenta a complexidade e, com ela, a incerteza, mais precisamos de gente que tenha ‘uma certa ideia de Brasil’, que ajude a sociedade a fazer uma leitura do mundo contemporâneo, que dê um rumo ao país.

Os líderes contemporâneos vão passar pelos partidos ou não? Os partidos, tal como estão configurados hoje, mais esterilizam do que fertilizam. Por outro lado, sem o filtro dos partidos, as sociedades se tornaram mais vulneráveis a líderes aventureiros e despreparados para o exercício do poder. As formas de interação e sociabilidade nas sociedades contemporâneas são radicalmente diferentes do que foram no passado, em boa medida pelo impacto das novas tecnologias. O desafio de rearticular o sistema político com a sociedade passa hoje pelo reconhecimento do papel desempenhado por novos atores e novas dinâmicas sociais e culturais, e não apenas por organizações e instituições como no passado.

A Igreja católica, tão influente no passado, se enfraqueceu ao perder seu enraizamento no mundo da vida. Os evangélicos, por outro lado, cresceram porque estão relacionados com o cotidiano das pessoas, sobretudo das mais pobres, a quem dão um sentido de pertencimento e de comunidade. Isso deveria dar um forte sinal para os partidos de que eles precisam se reconfigurar se quiserem sobreviver.

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Por enquanto, constatemos que o envelhecimento do sistema político é de natureza estrutural. Não foi apenas um erro que fulano ou sicrano cometeu, por mais graves que tenham sido as distorções e, em alguns casos, os crimes cometidos. O sistema político entrou em crise por várias razões; teve peso, entretanto, a crise econômica, com suas consequências no plano da vida cotidiana: desemprego, inflação, colapso dos serviços públicos. Quando sobra dinheiro, os problemas se atenuam.

Paradoxalmente, a crise política aconteceu também porque o Estado se modernizou e deu autonomia a instituições como o Ministério Público e outras mais. Setores do mercado também avançaram com uma visão não patrimonialista, não corporativista. E a mídia teve papel relevante na denúncia dos desmandos.

Na crise que vivemos, o protagonismo vem da Justiça, da mídia e da opinião pública. O entrelaçamento entre esses diferentes fatores nos fez chegar ao ponto crítico em que estamos sem nenhum risco para as instituições. A crise não nos levou nem nos levará à degeneração da Venezuela. As Forças Armadas foram preservadas, a mídia se preservou e setores-chave do aparelho de Estado também. A crise, com toda a sua extensão, não engolfou tudo.

Essa solidez das instituições e essa resiliência da democracia brasileira são um imenso ativo para a tarefa de reconstrução da política em bases éticas. Entretanto, precisamos de mais: há que criar não apenas condições para os cidadãos acreditarem no governo como ainda meios materiais para que as pessoas vivam em uma sociedade decente, capaz de oferecer emprego, renda e acesso aos bens públicos para a maioria da população.” 

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