Revista Exame

Tecnologia acaba com uma das piores dores de cabeça do pecuarista

O investimento em tecnologia já dobrou a produtividade da pecuária brasileira. Agora, a internet das coisas promete novos ganhos.

Carne forte: na fazenda de Pedro Merola, o lucro cresceu 20% graças a sensores que pesam o gado (Francois Calil/Exame)

Carne forte: na fazenda de Pedro Merola, o lucro cresceu 20% graças a sensores que pesam o gado (Francois Calil/Exame)

LB

Leo Branco

Publicado em 29 de junho de 2017 às 07h00.

Última atualização em 29 de junho de 2017 às 07h00.

Santa Helena de Goiás (Go) — Nos últimos dois anos, a fazenda Santa Fé, localizada às margens da rodovia GO-164, no sul de Goiás, tem sido palco do desenvolvimento de uma tecnologia inédita para o acompanhamento da engorda do rebanho.

Pesar um boi é uma das principais dores de cabeça dos pecuaristas mundo afora. A tarefa normalmente requer tirar o animal do pasto ou do curral e levá-lo a um brete — espécie de jaula onde ele permanece imóvel até um técnico anotar seu peso. Nessas horas, é comum o animal ficar estressado e, ao sair dali, comer menos a ponto de perder até 7% da massa corporal nos dias seguintes. Por isso, um boi geralmente sobe à balança poucas vezes ao ano.

Na Santa Fé, rodeado por lavouras de milho, soja e tomate a perder de vista, funciona um dos maiores confinamentos do país, com capacidade para receber 120 000 animais por ano. É uma espécie de spa para o boi engordar o máximo que puder antes de ser abatido. Por ali, um sistema automático de pesagem gera dados em tempo real sobre a engorda da boiada, dispensando o transporte, o toque humano e todo o drama típico. A automação é um meio de gerar ganho de produtividade — uma notícia alvissareira em meio à maré de percalços que o setor tem enfrentado.

A chave da melhoria obtida está na internet das coisas, conceito que pressupõe a conexão digital de máquinas para extrair dados e dar mais eficiência à produção. O projeto foi desenvolvido numa parceria entre Pedro Merola, sócio da Santa Fé, e a fabricante alemã de equipamentos eletrônicos Bosch, marca conhecida no setor de automóveis, num investimento de 3 milhões de reais. Pelo sistema, cada boi recebe um brinco com sensor ao dar entrada nas instalações da fazenda. Em seguida, vai para um curral dividido em duas partes: de um lado da cerca está o cocho; de outro, o bebedouro. Na única passagem entre os dois ambientes, a poucos centímetros do chão de terra batida, uma balança equipada com sensores de movimento filma a pisada do animal sobre o equipamento. Os dados são lidos num processador a 2 metros do solo e cruzados com os sinais vindos do brinco do animal. Toda a comunicação é enviada por Wi-Fi aos computadores da fazenda assim que o boi cruza a passagem, o que acontece, em média, oito vezes ao dia.

A abundância de informações obtidas com a tecnologia permitiu montar curvas detalhadas da engorda dos animais, além de gráficos comparativos do desempenho entre raças. O confronto dos números de hoje com os dados de antigamente, colhidos manualmente, revelou que, antes, só 2% dos animais saíam do confinamento na hora certa. O novo sistema praticamente eliminou o risco de um boi permanecer mais tempo do que deveria na engorda — reduzindo, assim, gastos desnecessários com rações para animais cujo peso já havia estagnado — ou ser retirado antes de atingir o tamanho máximo. “Foi o suficiente para aumentar em um quinto o lucro sobre o boi hospedado na fazenda”, diz Merola. O próximo passo será montar dietas personalizadas de acordo com o ritmo de ganho de peso de cada boi, o que deve aumentar a produtividade da fazenda, que já é elevada. Atualmente, o gado confinado ali engorda, em média, 1,7 quilo ao dia, 20% acima do patamar de outros confinamentos no Brasil e mais de 10% acima do padrão americano, referência em produtividade na pecuária. O bom resultado rendeu à Bosch brasileira o prêmio de melhor projeto da empresa em 2016, vencendo 38 concorrentes.

Sensores no campo

A Fazenda Santa Fé está na ponta de uma revolução tecnológica que vem ocorrendo na pecuária brasileira. Atualmente, assim como nas balanças da Bosch, há no Brasil 60 000 sensores que acompanham animais e estão conectados à internet colhendo diversos dados para melhorar o processo de decisão dos criadores, segundo dados da consultoria americana Mind Commerce, especializada em internet das coisas. É quase quatro vezes o número de sensores espalhados na agricultura, incluídos aí os que estão nas culturas de milho e soja, reconhecidas pelo alto emprego de tecnologia. O número de sensores deve ser multiplicado por 100 até 2022, quando deverá haver 6 milhões desses dispositivos conectados na boiada brasileira.

Isso deverá abrir a porteira para empresas de tecnologia até agora sem tradição no agronegócio. No caso da Bosch, o sistema testado na Santa Fé foi ao mercado em junho. A ideia é vender os equipamentos e cobrar mensalidades sobre cada animal monitorado. “A meta inicial é vender 50 milhões de dólares a pecuaristas da América Latina”, diz Besaliel Botelho, presidente da Bosch. Outra empresa de tecnologia de olho em oportunidades no agro é a SAP, fabricante alemã de softwares. Em março, a unidade brasileira criou um fundo com 40 milhões de reais para investimento em projetos com startups para resolver problemas do setor. Um dos negócios já acertados foi com a gaúcha Brabov, desenvolvedora de um aplicativo para armazenar dados de vacinação do gado, hoje normalmente anotados a mão, nos brincos eletrônicos dos animais. “A ideia é que o produtor leia as informações pelo celular”, diz Matheus Zeuch, que montou a Brabov há três anos e já atende 15 000 clientes.

Por trás do interesse em tecnologias para monitorar o gado está a necessidade de os pecuaristas apressarem o passo diante das mudanças no setor. Na história do Brasil, a pecuária tradicionalmente foi uma das cadeias do agronegócio menos preocupadas com ganhos de produtividade. Até os anos 90, era comum o produtor dedicar mais atenção à expansão das fazendas — e fazer da terra uma proteção da renda num cenário de inflação alta — do que à melhoria dos processos. A estabilização da moeda e o encarecimento da terra, resultado da expansão urbana e de leis ambientais mais rígidas, mudaram a lógica. Desde então, investimentos em genética e em rações para complementar a dieta da boiada em tempos de seca dobraram a produtividade da criação em pastagens, hoje de 60 quilos anuais por hectare. A maior oferta de carne derrubou o preço ao consumidor e também reduziu o lucro do pecuarista, hoje em 16% sobre o capital, metade do padrão dos anos 90.

Nem todos perderam de forma igual: quem investiu mais em tecnologia ganhou escala e conseguiu melhorar o rendimento. Segundo a edição 2016 do Rally da Pecuária, uma pesquisa anual de tendências do setor feita pela consultoria Agroconsult com 1 056 criadores em 11 estados, há uma tropa de elite formada por 5% de pecuaristas com produção anual beirando os 600 quilos de carne por hectare, dez vezes a média brasileira. Como? Terminando a engorda do gado em confinamentos inovadores, como os da Fazenda Santa Fé. Nesse seleto grupo de criadores, desde 2001 o lucro médio por hectare de pastagem, já corrigido pela inflação, quase triplicou — está em 957 reais ao ano. Entre os produtores só dependentes do pasto, o lucro segue estagnado abaixo de 100 reais. A consequência de ganhos desiguais, advindos de uma adoção seletiva da tecnologia, pode ser uma perda de competitividade capaz de retirar do mercado os menos preparados. “Do 1,7 milhão de pecuaristas brasileiros, 80% se encaixam nessas condições”, diz Maurício Palma Nogueira, sócio da Agroconsult.

As novas tecnologias chegam em meio a uma onda de choques sobre o setor. A começar pela crise econômica, que reduziu o consumo de carne bovina. Nos primeiros meses de 2017, a média brasileira foi de 34 quilos por habitante — 15% menos do que em 2014, segundo a consultoria Agrifatto. A falta de demanda foi uma das principais causas para o preço da arroba retroceder à faixa dos 130 reais, o patamar de 2013. Uma saída para a crise no mercado interno seria exportar mais, mas os desdobramentos da Operação Carne Fraca fizeram o embarque de carne bovina, de 529 000 toneladas de janeiro a maio, cair 10% em comparação com o mesmo período de 2016. A situação financeira do frigorífico JBS, maior produtor de carnes do país, não ajuda. A empresa vem tentando vender ativos para pagar 10 bilhões de reais de multa e se livrar das acusações de corrupção. Mas o efeito da crise no JBS sobre a cadeia inteira da carne é enorme.

Para piorar, os Estados Unidos anunciaram um embargo temporário à carne brasileira por motivos sanitários — o argumento é que a vacinação contra a febre aftosa altera a qualidade do produto. O problema nem é o volume de embarques suspensos: os americanos voltaram a comprar do Brasil em agosto do ano passado, após 13 anos, e hoje levam só 2% da exportação. O maior prejuízo é a má reputação justamente no maior consumidor global. Além disso, dependendo da duração do embargo, a crise de imagem poderá dificultar a abertura de novos mercados, como o Japão.

Tudo isso somado indica novas perdas à frente. Um sinal são os contratos futuros de venda de boi gordo em outubro, época de seca nas pastagens, escassez de animais em bom peso e de cotação mais alta. Mas, em 26 de junho, a cotação para venda em outubro de 2017 era de 122 reais a arroba — 5% menos do que os contratos com vencimento em junho. Num cenário desafiador, quem consegue usar a tecnologia para aumentar a produtividade, como a Fazenda Santa Fé, costuma ficar menos exposto a choques. O risco com a crise é de pecuaristas reduzirem o investimento em inovação antes de atingir uma condição satisfatória para manter a produção. Mas é na tecnologia que pode estar a saída do setor para uma nova fase.

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