Revista Exame

Por que você corre?

A pausa forçada pela quarentena pode ser um bom momento para refletir sobre nossa paixão pelas pistas e esteiras

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Da Redação

Publicado em 23 de abril de 2020 às 05h30.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 13h17.

Qual é a razão de correr? Se você é atleta amador de corrida, é possível que tenha sido impactado por essa pergunta em suas redes sociais, pouco antes de o surto de coronavírus restringir a prática esportiva nas ruas e nas academias. Com a hashtag #whywerun ou a abrasileirada #pqcorremos, milhares de fotos circularam por aí com depoimentos de corredores apaixonados. Por trás da ideia estava o Strava, maior plataforma de esportes do mundo, como corrida e ciclismo, com mais de 50 milhões de pessoas registradas, mais de 6,5 milhões apenas no Brasil. Mais do que uma estratégia de marketing para engajamento, a ação nasceu de um estudo sobre motivação. “O mercado de corrida produz muitas pesquisas sobre qual tênis o atleta usa para treino, qual ele usa para prova, quais suplementos consome. Mas não tínhamos dados sobre o comportamento do corredor”, diz Rosana Fortes, country manager da rede no Brasil.

As respostas dos 25.000 usuários mais ativos do Strava serviram de base para uma ampla pesquisa global explorar as reais motivações para alguém começar e continuar a correr. No momento em que a quarentena obriga atletas profissionais e amadores a ficar em casa, a questão ganha nova importância (as fotos publicadas nesta reportagem foram tiradas antes da quarentena). A psicóloga do esporte Gabriela Carreiro explica que flexibilidade e resiliência são atitudes mentais importantes para todo atleta, profissional ou amador, em qualquer momento. “No esporte, saber recalcular a rota diante de desafios é essencial. O atual momento de introspecção pode ser fundamental para repensar a motivação, que tem muito mais a ver com um sonho do que com um objetivo. A motivação é o primeiro passo, só depois vêm o planejamento, a execução e a celebração. Como a prática está suspensa temporariamente, o momento é de dar atenção às primeiras etapas”, diz Carreiro.

Os entrevistados da pesquisa, distri­buí­dos em nove países de América do Norte, América do Sul, Ásia e Europa, citaram alguns aspectos em comum na rotina de corrida. A saúde é a principal preocupação e o gatilho dos corredores de todo o mundo. Mais de 80% citam pelo menos uma motivação física quando se pergunta por que eles começaram, se foi por uma questão de saúde, para melhorar força e condicionamento ou para ter mais energia. Mas as razões e as recompensas dos atletas diferem entre as regiões. Para corredores japoneses, a saúde mental é importantíssima para fazê-los sair correndo: 15% dizem que se engajaram porque isso os ajuda a sentir menos ansiedade e depressão. No Brasil, essa parcela é bem menor, de apenas 5%.

Na Alemanha, é a imagem corporal que alavanca a atividade: 47% pensam nisso para criar coragem e se mexer, ante 32% dos brasileiros. Para 48% dos corredores americanos, melhorar a força e o condicionamento é essencial. O Brasil ficou em último nesse quesito, com 21%. E por vezes é a preocupação com a saúde que funciona como motivação para a corrida: 22% dos brasileiros citaram cuidados com o bem-estar como o motivo pelo qual começaram a correr, perante apenas 2% dos americanos.

É o caso da nutricionista esportiva carioca Jackeline Huguet. “Minha história com a corrida começou há quatro anos, quando descobri um câncer de pulmão um pouco agressivo, mesmo eu nunca tendo fumado”, diz. “Passei por uma cirurgia de retirada de toda a parte superior do pulmão esquerdo. Já no hospital disse ao cirurgião que ainda correria uma maratona. Um ano depois da cirurgia, e após muita fisioterapia respiratória, tive alta para retomar as atividades físicas. Procurei uma assessoria de corrida e, um ano depois da alta, completei minha primeira meia maratona. Hoje tenho medalhas de quatro meias maratonas e de várias corridas menores. Neste ano, me coloquei o desafio de correr a maratona do Rio de Janeiro, em outubro, caso seja mantida.”

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Na pesquisa, mais de 30% dos corredores haviam experimentado nos seis meses anteriores uma grande mudança de vida, como demissão ou troca de emprego, perda de um ente querido, mudança de cidade, divórcio ou saída dos filhos de casa, antes de começar a correr. A grande maioria disse que o esporte ajudou a lidar com essas mudanças, principalmente as mais desafiadoras, e 56% afirmaram que participar de uma turma de corredores foi essencial para enfrentar essas circunstâncias desafiadoras. Mesmo que as pessoas nem sempre se sintam intimamente ligadas a outros praticantes, fica claro que a comunidade pode desempenhar um papel importante nas principais situações da vida. Corredores são seres gregários, e nem precisamos de pesquisas que apontem isso. Basta ver a proliferação de grupos de corrida de rua nas grandes cidades.

Odair Mofato, sócio da startup financeira Acesso Bank, começou a correr para fazer companhia ao ex-chefe. “Eu morava em Campinas e trabalhava numa distribuidora de energia elétrica”, conta. “Um dia, o dono da empresa me convidou para correr em São Paulo. Nunca tinha corrido na rua, mas ele me convenceu. Não perguntei a distância. No meio do caminho ele disse que seria uma prova de 12 quilômetros. No terceiro quilômetro eu já estava sofrendo. No oitavo, no início de uma subida, precisei caminhar. Nessa hora, um senhor de uns 70 anos passou por mim, me deu um tapinha nas costas e disse para não desistir. Andei o resto da prova, terminei traumatizado, aquele senhor não me saía da cabeça. Quando voltei para casa, comecei a treinar na esteira. Aos poucos passei a correr provas de 5 quilômetros, depois 10, participei da São Silvestre, de meias maratonas e maratonas. Hoje corro ultramaratonas e ­triatlo.”

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Para manter a constância em um esporte é necessário disciplina. Talvez por isso, praticamente metade de todos os corredores ­— e 55% dos brasileiros — pule da cama cedo para a atividade e use menos a função soneca do celular do que a média. E a parte favorita da corrida para 63% dos corredores e 70% dos brasileiros? A linha de chegada, é claro. Mas somos mais do que apenas criaturas de hábitos. Ter um plano ou um grande objetivo está no topo da lista das motivações. A psicóloga do esporte Gabriela Carreiro lembra que os objetivos podem ser repensados para cima ou para baixo. E a quarentena pode ser um bom momento para essa reflexão. “Não é porque estamos em casa que os objetivos precisam ser esquecidos ou abandonados”, diz. “Corredores podem fixar novas metas agora, como fazer exercícios funcionais todos os dias, refinar seus movimentos com exercícios educativos de corrida para aprimorar equilíbrio e postura, estudar os percursos das provas que sonha fazer, escolher novos desafios no esporte ou até em esportes diferentes.”

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