Friedrich Merz: novo premiê defende mudar teto de gastos para investir em defesa (Christian Marquardt/NurPhoto/Getty Images)
Repórter de macroeconomia
Publicado em 20 de março de 2025 às 06h00.
A Alemanha vive, neste começo de 2025, seu momento mais desafiador desde os anos 1990. A eleição realizada em fevereiro deixou isso claro ao mostrar um país dividido. É quase como se houvesse um muro imaginário: a região oriental votou em peso na AfD, de extrema direita, enquanto o restante do país escolheu os conservadores da CDU/CSU, que venceram a eleição geral.
O mapa eleitoral reflete, quase exatamente, a divisão que existia entre as Alemanhas Ocidental e Oriental, unificadas em 1990. O novo governo, que deverá ser chefiado por Friedrich Merz, terá de reunificar o país uma vez mais, e lidar com várias crises ao mesmo tempo. A economia, a mais forte da Europa, vive uma recessão desde 2023. No campo externo, os alemães precisam lidar com o afastamento dos Estados Unidos, seu maior parceiro militar desde a Segunda Guerra, as ameaças do presidente Donald Trump de impor tarifas de importação e o avanço industrial da China, que produz carros e outras máquinas cada vez melhores.
Mesmo antes de ser confirmado como novo premiê alemão — o que deve ocorrer até a Páscoa, pois depende de negociações entre os partidos —, Merz resolveu agir. Ele fez seu partido avançar com uma proposta para mudar as regras que travam o aumento do endividamento do país, espécie de teto de gastos local, e permitir que o país se endivide mais. A regra anterior limita o governo a um déficit anual de até 0,35% do PIB. Com isso, a Alemanha é um dos países ricos com menor endividamento, atualmente em 62% do PIB. Nos EUA, por exemplo, essa razão é de 129% do PIB.
A razão mais urgente para mudar as regras vem justamente dos Estados Unidos: Trump tem deixado claro que quer reduzir seus gastos militares na Europa e na guerra na Ucrânia e repassar essa conta bilionária para os europeus. No dia 14 de fevereiro, o vice-presidente J.D. Vance levou o recado pessoalmente. “Nos parece importante que os europeus façam um esforço maior, enquanto os Estados Unidos se concentram em regiões do mundo que correm mais perigo”, disse Vance durante discurso na Munich Security Conference, a mais importante de segurança no Velho Continente.
Vance acelerou uma conversa que já vinha ocorrendo. Em setembro, o ministro da Defesa alemão, Boris Pistorius, já havia proposto aumentar o gasto militar de 2% para entre 3% e 3,5% do PIB. Uma pesquisa feita em novembro pelo instituto Koerber-Stiftung mostrou que 50% dos alemães apoiavam a ideia. Além do aumento de gastos, a Alemanha debate outras medidas, como retomar o serviço militar obrigatório, suspenso em 2011, e estimular sua indústria de defesa.
No começo de fevereiro, a Deutsche Messe, maior organizadora de feiras de negócios do país, anunciou o lançamento da primeira feira do país voltada para produtos de defesa militar. A DSEI Alemanha será realizada em janeiro de 2027, em Hanôver. “O ponto de virada na política de defesa da Alemanha não apenas exige que reorientemos nossa estratégia, mas requer estimular a capacidade tecnológica e industrial”, disse em comunicado o ministro Pistorius.
A ideia de se rearmar mexe, por motivos óbvios, com os alemães. “Eu tinha 20 anos durante a unificação alemã, servi no Exército. Comecei em maio, quando havia dois Estados alemães, e quando terminei se tornaram um só, sem um único tiro, sem sangue”, disse Jochen Köchler, presidente da Deutsche Messe, a maior organizadora de feiras de negócios do país, à EXAME. “Eu realmente nunca imaginei que veríamos uma guerra na Europa.”
O setor empresarial do país acompanhou a eleição com expectativa e cobra medidas do governo para acelerar a economia. “Fabricantes de máquinas e de sistemas industriais exportam mais de 70% de sua produção. Por isso, é muito importante quanto custa nosso mix de energia, os gastos com funcionários e como é a relação com os outros países”, afirma Jacob Dück, diretor global do segmento industrial da Harting, uma fabricante de cabos e equipamentos industriais que também atua no Brasil. “Essa é a razão por que todo mundo está mais ou menos esperando o que acontecerá agora, depois das eleições. Especialmente como será o relacionamento com a União Europeia e os outros países.”
A economia vive seu pior momento desde a crise de 2008, com uma recessão que já dura dois anos. A atividade encolheu 0,3% em 2023 e 0,2% em 2024. Para 2025, o Fundo Monetário Internacional (FMI) estima alta modesta de 0,3%. Em paralelo, a inflação disparou a 8% em 2022, 6% em 2023 e 2,4% em 2024, o que contribui para o mal-estar dos alemães com o governo.
Assim como em outros países, como Estados Unidos e Brasil, o custo mais alto da comida fomenta a insatisfação com a política. Um estudo do instituto Gallup mostra que os alemães estão em seu momento de maior pessimismo econômico desde a crise de 2008. No final de 2024, 38% deles disseram sentir que seu padrão de vida está piorando. Essa sensação atingiu 51% em 2008. Além disso, somente 50% dos alemães disseram ter confiança no governo. Em 2015, eram 63%. O Gallup apontou outro indicador negativo: a insatisfação com a oferta de moradia vem subindo desde antes da pandemia e atingiu 46% em 2024. Em 2010, o percentual de insatisfeitos era de 23%.
Alice Weidel, líder da AfD: extrema-direita chegou em segundo nas urnas e será maior força da oposição (Carsten Koall/Picture Alliance/Getty Images)
A crise alemã tem várias razões externas. Além da pandemia, o país foi um dos mais atingidos pelas consequências da guerra na Ucrânia. Quando o conflito começou, a Alemanha decidiu parar de comprar gás russo, do qual era um grande cliente. O país teve de buscar outras fontes de energia às pressas, o que aumentou os custos para indústrias e reduziu a competitividade. “Muito do mal-estar econômico alemão está ligado à invasão da Ucrânia”, afirma Robin Brooks, associado sênior do think tank americano Brookings, em um artigo. “Não há dúvidas de que a Alemanha tem espaço fiscal suficiente para novos estímulos, mas não está claro se isso será o bastante para tirar o país da falta de crescimento”, diz.
Além disso, os alemães viram os chineses avançarem rapidamente nos últimos anos em produtos industriais complexos que são especialidade do país, como os automóveis. “A qualidade [dos produtos] está melhorando a cada ano. Isso é algo que, nos últimos dois ou três anos, realmente surpreendeu muitos exportadores alemães e europeus para a China”, diz Köchler, da Deutsche Messe. “Os europeus estão um pouco chocados com o fato de que esse ‘fantástico mercado’, após 20 anos, desapareceu.”
Há, ainda, o temor de que a China possa direcionar mais produtos ao mercado europeu depois de Trump impor tarifas sobre exportações chinesas, além das incertezas trazidas pelas ameaças do republicano de taxar produtos do continente, incluindo os carros alemães, um dos itens mais caros da pauta de exportações.
Nesse caldo de insatisfação, o partido de extrema direita AfD (Alternativa para a Alemanha) ganhou destaque ao seguir receitas comuns da direita em vários países, como a de prometer expulsar imigrantes para resolver os problemas da economia e de colocar a “Alemanha em primeiro lugar”. O partido teve seu melhor resultado desde que foi criado, em 2013, e ficou em segundo lugar, o que lhe deu 152 assentos no Parlamento. O empresário Elon Musk deu apoio público à AfD durante a campanha.
Outro sinal do ganho de relevância da legenda é que, pouco antes da eleição, a CDU aceitou apoio da AfD no Congresso para uma proposta de endurecer regras de imigração, depois que um afegão atacou pedestres em Munique, em janeiro. Os partidos tradicionais alemães criaram um “cordão sanitário” e evitam fazer parcerias com a AfD, por considerá-la ameaça à democracia. Além do gesto, Merz incluiu a proposta de endurecer as regras de imigração em sua plataforma. Nas últimas décadas, a Alemanha recebeu muitos imigrantes, especialmente do Oriente Médio. Em Frankfurt, por exemplo, há um restaurante afegão e placas de “Feliz Ramadã”, um feriado islâmico, nas ruas próximas à sede do Banco Central Europeu, no centro da cidade.
A AfD usa discursos anti-imigração para atrair votos e tem se mostrado eficiente ao utilizar novas plataformas, incluindo vídeos feitos com IA. “Tenho amigos que se interessaram pela AfD porque recebem muito conteúdo deles pelas redes sociais, como o TikTok. Acham que é um partido diferente dos outros”, conta Sofi, estudante de 18 anos que conversou com a EXAME no centro de Hanôver, dois dias antes da eleição.
Mauricio Moura, professor na Universidade George Washington, que foi observador da eleição alemã, foi a dois comícios da AfD. “Encontrei muitos jovens na plateia, especialmente gente com menos de 25 anos, público que não costuma aparecer para votar. Alguns, sem medo nem receio de exibir símbolos nazistas”, afirma. “O eleitor da AfD está muito concentrado nas áreas que sofrem muito hoje com a desindustrialização alemã.” Ao mesmo tempo, a CDU/CSU avançou quatro pontos em relação à eleição anterior e atrai mais votos da periferia de cidades como Munique, Dusseldorf, Frankfurt e Berlim. O partido do novo premiê atrai, principalmente, eleitores mais velhos.
Uma das principais questões dos próximos meses no país será como a AfD se comportará sendo agora a maior força da oposição. Alice Weidel, líder da sigla, disse que o partido está preparado para “trabalhar com todos” e que poderá apoiar o novo governo em temas sensíveis. Mas deixou também o recado de que o governo Merz pode se tornar instável e não durar quatro anos.
Outra grande dúvida é se o novo premiê será capaz de liderar o país neste momento difícil. Formado em direito, ele entrou na política em 1989, ano da queda do Muro de Berlim. Inicialmente foi eurodeputado e depois foi membro do Bundestag, o Parlamento alemão. Ele deixou a política em 2009, após embates com a então premiê Angela Merkel, do mesmo partido, e retomou a carreira jurídica. Merz voltou à política em 2021 e assumiu o comando da CDU depois de Merkel se aposentar, em 2022. Os dois continuam distantes. Durante a campanha, Merz a acusou de escancarar as portas do país para os imigrantes quando estava no governo. A ex-governante, quase sempre discreta, o criticou em janeiro por se aproximar da AfD. A reunificação do país enfrenta desafios e precisa superar muros até dentro do partido do governo.
O repórter viajou a convite da feira Hannover Messe.