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Sem Toyota e Ford, São Bernardo tenta recomeçar em meio ao declínio

Com a saída das montadoras, São Bernardo do Campo, no ABC paulista, vira símbolo da desindustrialização precoce do país

Fábrica da Ford abandonada: crise no ABC Paulista está longe do fim (Tuane Fernandes/Bloomberg)

Fábrica da Ford abandonada: crise no ABC Paulista está longe do fim (Tuane Fernandes/Bloomberg)

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Bloomberg

Publicado em 19 de maio de 2022 às 05h21.

Em 2019, quando a Ford fechou sua fábrica de automóveis em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, a empresa marcou o fim de uma era. Quase 100 anos antes, Henry Ford, tentando se esquivar do monopólio britânico da borracha, fundou a Fordlândia nas profundezas da Amazônia brasileira. Assolado por pragas tropicais e revoltas de empregados, o projeto fracassou, e a cidade foi abandonada em 1934. Hoje, os turistas podem visitar a operação de borracha abandonada no estado do Pará. Em São Bernardo, as ruínas corporativas não estão abertas ao público, mas em meados de fevereiro este repórter fez um tour pelo local.

Abrindo caminho entre pilhas de concreto quebrado, capacetes abandonados, óculos de proteção rachados e sapatos de camurça, Mauro Cunha Silvestri passava a mão sobre um horizonte de edifícios de meados do século enquanto explicava como “caça” antigas fábricas para transformar em arranha-céus e shopping centers de luxo.

Em entrevistas, moradores de São Bernardo descreveram o fechamento da fábrica da Ford, que empregava cerca de 2.700 trabalhadores, como um “trauma” e um “baque psicológico”. Para Silvestri, sócio da incorporadora Construtora São José, é uma oportunidade espetacular.

Ruína da fábrica da Ford: “trauma” e “baque psicológico”, na visão de ex-funcionários (Tuane Fernandes/Bloomberg)

Os escritórios executivos da Ford Brasil parecem congelados no tempo, com anúncios emoldurados e amarelados produzidos para o Ranger 2019 e o (hoje descontinuado) EcoSport Storm revestindo com orgulho paredes acima de mesas repletas de papéis, como se todo mundo tivesse saído às pressas do local. Entrando apressado na sala de reuniões, Silvestri desdobrou uma planta enorme em uma mesa de conferência e começou a expor sua visão: um shopping center onde antes ficava a linha de montagem, um hospital no estacionamento e centros de distribuição de e-commerce onde os armazéns estão sendo transformados em escombros. Ele disse que não está autorizado a divulgar os nomes de inquilinos em potencial, mas no mesmo fôlego mencionou Alibaba, Amazon e Mercado Livre com um brilho nos olhos. No meio de nossa reunião, ele recebeu uma mensagem de WhatsApp de um interessado perguntando se é possível pousar um helicóptero no local. Silvestri diz que a reforma, orçada em cerca de 750 milhões de reais (160 milhões de dólares), deve ser concluí­da até 2025.

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São Bernardo tem sofrido outras deserções desde que a Ford fez suas malas. Em 5 de abril, a Toyota anunciou que fecharia sua fábrica, a primeira unidade da empresa fora do Japão, e consolidaria a produção em outras instalações no país. “Nós que trabalhamos na Ford sabemos muito bem como esses funcionários estão se sentindo agora”, diz Lucas Sanches Padilha, de 28 anos, que estava entre os demitidos de 2019. “O que vai ser de São Bernardo se essas empresas continuarem saindo?”

O sindicalista Moisés Selerges: para crescermos, precisamos de mais indústrias (Tuane Fernandes/Bloomberg)

A cidade de menos de 1 milhão de habitantes com frequência foi chamada de Detroit brasileira, embora a comparação não seja tão lisonjeira nos dias de hoje. São Bernardo é também o berço do movimento trabalhista do país e foi onde Luiz Inácio Lula da Silva, ex-presidente por dois mandatos e de olho em mais um, ganhou destaque pela primeira vez. Como tal, a cidade oferece uma visão única do Brasil neste momento, à medida que o país mergulha em uma recessão, atingido por preços em alta e emprego em queda, com a pandemia não totalmente superada e prestes a realizar uma eleição presidencial em outubro.

A transformação da antiga fábrica da Ford reflete a da economia brasileira de modo geral, em que a participação da manufatura vem diminuindo, enquanto a dos setores de serviços está aumentando. Na década de 1980, a manufatura atingiu um pico de 34% do produto interno bruto. Em 2020, último ano para o qual há dados disponíveis, a parcela do PIB foi de pouco menos de 10% — abaixo dos índices da Argentina e do México.

O que está se perdendo na transição são dezenas de milhares de empregos bem remunerados. A indústria automobilística empregou pouco menos de 107.000 brasileiros em 2019, uma queda de 21% em relação ao pico de 135.000 em 2013, de acordo com os dados mais recentes da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores.

(Arte/Exame)

O Brasil está apresentando sintomas do que o professor de Harvard Dani Rodrik chama de “desindustrialização prematura”, uma condição que aflige principalmente os países de baixa e média renda. A manufatura é a “escada rolante por excelência”, disse Rodrik, ajudando a elevar os padrões de vida. Se a escada rolante quebrar, uma nação pode ter dificuldades para alcançar as economias avançadas.

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“Nos anos 1980 tínhamos o sexto maior setor industrial do mundo. Agora somos o 12o”, diz Moisés Selerges, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo. “Este governo não tem demonstrado interesse algum pelo setor. Ele só se preocupa com o agronegócio e com o desmatamento, e isso nos coloca em desvantagem porque, para crescermos, precisamos de indústrias.”

No período pós-guerra, o Brasil encantava as montadoras como uma nova e promissora fronteira, em parte graças aos generosos incentivos governamentais oferecidos. Mercedes-Benz, Simca e Volkswagen se instalaram na região de São Bernardo por um período de quatro anos no final da década de 1950. Espremida entre São Paulo, capital de negócios do país, e Santos, o maior porto do continente, a localização era ideal. A Ford chegou em 1967, assumindo uma fábrica existente de propriedade da Willys Overland Motors, onde começou a produzir centenas de milhares de sedãs e cupês Corcel.

Foi em São Bernardo que um metalúrgico de carisma instigante e credibilidade nas ruas conferida por um dedo mindinho truncado em um acidente na linha de montagem foi eleito presidente do sindicato em 1975. As greves lideradas por Lula estabeleceram um modelo de direitos trabalhistas para a América do Sul e tiveram o efeito secundário de espalhar as empresas para outros estados que não tinham seu Lula com um megafone.

Sanches passou seis anos na fábrica da Ford antes de ser chamado à sede uma tarde e informado de que a empresa estava saindo de São Bernardo. Ele passou um ano deprimido e desempregado antes de conseguir um cobiçado emprego nas instalações da Mercedes-Benz nas proximidades. Sanches trabalha no turno da noite, mas diz não ter motivo para reclamar: “Estou feliz com meu trabalho, mas essa questão da desindustrialização está me fazendo pensar que preciso de um plano B para ter outra fonte de renda”.

Se o Brasil é de fato vítima da desindustrialização prematura ainda é algo discutível. Há quem argumente que a retração na manufatura é em grande parte o efeito colateral de uma valorização da moeda brasileira que desfavoreceu as exportações, e que a tendência vem se invertendo nos últimos anos.

(Arte)

Özlem Ömer, pesquisadora da Iniciativa de Governança Econômica Global da Universidade de Boston, que tem estudado a economia brasileira, é menos otimista. Os economistas têm observado que, à medida que as economias amadurecem, os recursos mudam de setores “estagnados”, caracterizados por salários baixos e crescimento fraco da produtividade, para setores “dinâmicos”, em que os salários e a produtividade são mais altos. A pesquisa de Ömer, que abrange os anos de 2000 a 2014, mostra que, no Brasil, a manufatura, que costuma ser rotulada como dinâmica, exibiu traços de estagnação: o crescimento da produtividade se estabilizou e sua participação na produção econômica diminuiu. “Isso levanta uma bandeira vermelha”, diz ela, profetizando um futuro de “baixo crescimento do PIB e provavelmente de maior desigualdade”.

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Embora o prefeito de São Bernardo, Orlando Morando, tenha chamado a saída­ da Ford de “covarde”, hoje ele a vê apenas como parte da transição da cidade para o futuro. “Estamos na fase de serviços”, diz ele, e argumenta que as indústrias saíram porque “a sindicalização radical afastou o investimento”. O setor automobilístico da cidade está “se modernizando e se preparando para o 4.0.” — o próximo capítulo da Revolução Industrial, no qual a robótica e outras tecnologias de ponta têm um papel central. “Estamos tão preparados para essa fase que hoje em dia a linha de produção é toda composta de engenheiros”, diz Morando. “Sem dúvida a história de São Bernardo é em parte a história da Ford, mas a página foi virada.”

Reforma na antiga fábrica da Ford: na expectativa de futuros ocupantes do espaço (Tuane Fernandes/Bloomberg)

O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, adotou um tom desafiador em 2019, quando a Ford anunciou que estava deixando São Bernardo, dizendo que a multinacional estava buscando doações do governo em troca de permanecer no local. “A Ford precisa dizer a verdade: eles querem subsídios”, afirmou ele a repórteres. “Vocês todos querem continuar dando 20 bilhões de reais para eles, como eles fizeram nos anos anteriores? É o seu dinheiro, são os seus impostos.”

Lula não resistiu à tentação de insultar o presidente do Brasil nas redes sociais quando, em janeiro do ano passado, a montadora anunciou que estava colocando à venda suas três fábricas brasileiras restantes. “Ford anuncia investimento de 4 bilhões de reais no Brasil. Notícia boa, mas de outra década”, tuitou Lula, postando link para um artigo de jornal de 2009.

Quando liderou o Sindicato dos Metalúrgicos, Lula pressionou com sucesso o governo federal por reajustes salariais que acompanhassem a inflação — o que ele promete fazer novamente se eleito. A taxa de inflação anual do Brasil atingiu os dois dígitos no ano passado, pela primeira vez desde 2016. Com os custos dos combustíveis em alta, os analistas consultados pela Bloomberg agora veem os preços ao consumidor fechando o ano acima de 8%, apesar de uma campanha agressiva de alta de juros.

Lula também prometeu estender as proteções trabalhistas aos empregados temporários — sua resposta à explosão do trabalho informal associada à pandemia, que respondeu por 80% dos novos empregos criados no Brasil no primeiro trimestre de 2021. Volume recorde de endividamento das famílias, um câmbio desvalorizado e mais de 600.000 mortes por covid pesam contra Bolsonaro, que de modo consistente aparece atrás de Lula nas pesquisas de intenção de voto.

Apesar disso, Sanches diz que grande parte de seus colegas do turno da noite da Mercedes pretende votar em Bolsonaro. O populista de direita conseguiu varrer São Bernardo na última eleição, reflexo do declínio da influência dos sindicatos na esteira da reforma trabalhista nacional de 2017. Mas isso pode ser mais difícil de conseguir em uma competição em que ele é colocado para enfrentar o garoto local que subiu na vida.

Selerges, o líder sindical, diz que um segundo mandato de Bolsonaro pode deixar a capital do carro do Brasil fora do jogo. “Aqui ainda há uma grande quantidade de empresas e temos esperança para o futuro — ao contrário de Detroit”, diz ele, soltando uma nuvem de fumaça de cigarro ao rir. “Mas, se esse presidente for reeleito, ela se tornará Detroit. Este lugar vai virar uma plantação de soja.”  

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