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O maior aliado do Brasil

O paradoxo da política externa do país -- os Estados Unidos, tratados como inimigos, estão do nosso lado nas negociações comerciais

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Da Redação

Publicado em 18 de fevereiro de 2011 às 12h16.

Está em cartaz neste momento, no palco de negociações comerciais que envolvem diretamente diversos interesses básicos do Brasil, um clássico da vida real que vale a pena acompanhar, pelo que o espetáculo tem de didático, informativo e revelador das diferenças entre o que se diz e o que acontece. Trata-se do conflito entre a França e o comissário de comércio da União Européia (UE), o inglês Peter Mandelson, que tecnicamente é a autoridade número 1 da Europa para questões de importação e exportação, em torno do grau de abertura que os países europeus devem adotar para a entrada de produtos agrícolas em seus mercados. Mandelson, com o apoio da maioria dos membros da UE, propõe uma abertura maior; é bom para o Brasil. A França, mais ou menos sozinha, se opõe a isso; é ruim para o Brasil. Esse tipo de briga é tão comum que em geral só os especialistas percebem que está havendo mesmo uma briga. Ao fim, de um jeito ou de outro, sempre se chega a uma acomodação qualquer. O curioso nessa disputa de agora é ver que os interesses do Brasil, mais uma vez, não estão onde a política externa do governo diz que deveriam estar -- estão, justamente, no lado oposto.

Como membro do "grupo dos cinco", que reúne os maiores produtores agrícolas do mundo, o Brasil é a favor da proposta de Mandelson e, com isso, se vê em companhia que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seus atuais três ministros do Exterior consideram francamente indesejável: Estados Unidos, Austrália, Índia e o próprio comissário de comércio da UE, que é a quinta integrante do grupo. Fazer o quê? Essas más companhias e o Brasil querem, no caso, as mesmas coisas. Mandelson propõe uma redução de 70% na ajuda que os governos europeus dão atualmente a diversos setores de sua agricultura e a supressão, a médio prazo, dos subsídios às exportações agrícolas da UE. Ao mesmo tempo, sua proposta inclui baixar entre 20% e 50% os impostos de importação hoje em vigor nos países da comunidade e limitar a 160, num total de 2 000, os produtos agrícolas que, na condição de "especiais", teriam reduções menores nas tarifas aduaneiras. O comissário de comércio defende essas medidas a partir de uma convicção básica: o custo do atual sistema de proteção à agricultura na Europa é dividido pelos 25 membros da UE, mas o beneficiário praticamente único é a França, em sua posição de maior produtor agrícola da comunidade. A França, naturalmente, é contra -- e se realmente usar seu poder de veto, como está prometendo, bloqueará a proposta de Mandelson, pois o estatuto da UE exige unanimidade nesse tipo de decisão.

Quem protege mais
Saiba quanto foi gasto no ano passado com subsídios agrícolas
em bilhões de dólares
União Européia
133
Japão
49
EUA
46
Fonte: OCDE

E o Brasil, como é que fica nisso? Em sua aula mais recente sobre política externa, o presidente Lula ensina que o segredo de tudo está em não entrar numa negociação de "cabeça baixa". Ele sabe disso, segundo revelou em sua última viagem ao exterior, pelas experiências que teve mais de 20 anos atrás negociando com as montadoras de automóveis nas greves do ABC. Ter uma "atitude", como recomenda o presidente, sempre pode ajudar, claro, mas para o Brasil o importante mesmo, em qualquer negociação, é saber quais são os seus interesses e trabalhar por eles. É aí que as coisas freqüentemente se complicam na política externa do governo brasileiro. Em vez de se concentrar na busca de resultados objetivos para o balanço de pagamentos do país, que deveria ser sua prioridade, ela se preocupa com a defesa de causas -- a criação de um "mundo multipolar", a aposta no eixo Sul-Sul, a procura de um "novo equilíbrio" para o mundo em geral, a disputa de cargos em organismos internacionais, o combate à fome mundial, e assim por diante. A conseqüência é um passeio ao acaso no qual o Brasil pode até caminhar de cabeça alta, mas quase nunca vai para o lugar certo. O atual conflito em torno do mercado agrícola europeu é um bom exemplo. Na teoria geopolítica do Itamaraty, o Brasil deveria estar do lado da França, que em geral aplaude as causas brasileiras, e não do lado dos Estados Unidos, que em geral as ignora. Na prática, tem de fazer o oposto, para não acabar ficando numa posição contrária a seus próprios interesses materiais -- que, nessa questão, são os mesmos dos americanos e dos demais grandes exportadores agrícolas.

Esse tipo de coisa tende a continuar acontecendo enquanto o governo brasileiro insistir numa política externa cuja principal preocupação, em vez de obter resultados, é fazer bonito para o presidente da República. Como o presidente não tem um programa de metas objetivas a ser atingidas, e sim um conjunto de sermões para oferecer à sua platéia, a diplomacia brasileira fica tentando se adequar à pregação que sai do palanque presidencial -- coisas vagas, como a necessidade de viver de "cabeça erguida", ter "vergonha na cara", criar "um mundo mais justo" etc. São questões sobre as quais nenhum país ou órgão têm nenhuma divergência com o governo brasileiro. Quem está pedindo que o Brasil ande de cabeça baixa, ou quem está querendo um mundo mais injusto? Da mesma forma, ninguém é a favor da fome ou da existência de apenas um pólo no poder mundial. Nisso estão todos dispostos a concordar com o Brasil, ou a não perder tempo discordando.

Os problemas e as divergências de verdade estão no mundo das realidades: tarifas punitivas para os produtos brasileiros, cotas de importação, subsídios para agricultura, patentes, propriedade intelectual, febre aftosa. Aí, sim, o mundo está cheio de gente que discorda do Brasil. Acham uma beleza os discursos de Lula sobre a miséria, mas, quando chega a hora de discutir interesses concretos, estão do outro lado da mesa. A mesma coisa ocorre quando condenam a corrupção na máquina pública, o fracasso do Estado brasileiro em deter a violência num país onde mais de 100 pessoas são mortas diariamente por armas de fogo ou as queimadas na Amazônia. É para a negociação desses problemas que a política externa do Brasil deveria estar preparada; é para isso que ela deveria estar realmente treinada, equipada do ponto de vista técnico e apoiada por recursos materiais.

O Brasil ganharia muito, também, se o seu governo deixasse um pouco de dizer como o planeta deve se comportar e passasse a resolver pelo menos parte das questões urgentes que tem a obrigação de enfrentar dentro de sua própria casa. Progressos reais na redução da violência, por exemplo, ou para permitir um funcionamento mais eficaz da economia, fariam bem mais para melhorar a posição do Brasil no mundo do que a soma de todo o apostolado de Lula em favor da virtude internacional e de toda a estratégia do Itamaraty em multipolaridade, blocos e eixos.

Em vez de tentar ganhar o respeito internacional por seus atos concretos, porém, o governo brasileiro acha que pode ganhar a parada no falatório sobre princípios e no marketing. Está convencido de que é uma grande vitória, por exemplo, ter o apoio da França na idéia de criar uma sobretaxa nas passagens aéreas para combater a fome no mundo -- uma espécie de "Fome Zero, o Retorno", que Lula tenta emplacar depois que o Fome Zero original desapareceu de cena, pela combinação fatal de sua inépcia como projeto com a descoberta de que, em matéria de alimentação, o real problema do país é a obesidade. Mas, onde o apoio da França ao Brasil realmente faria diferença -- ou seja, na questão das exportações agrícolas, por exemplo --, nada. Aí, naquilo que interessa por gerar divisas, renda e empregos, as grandes teorias do governo brasileiro sobre a solidariedade entre os povos não resistem a 5 minutos de papo.

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