Revista Exame

Está difícil conviver com a CLT

Walter Orthmann tinha 21 anos quando Getúlio Vargas criou a lei trabalhista. Ao longo de 70 anos, a carreira de Orthmann, ainda na ativa, evoluiu. Já a CLT continua a mesma — e hoje prejudica trabalhadores e o país

Testemunha ocular: Orthmann, de 91 anos, está na mesma empresa desde os 15; ele viu a CLT envelhecer e perder sentido (Michel Teo Sin/EXAME.com)

Testemunha ocular: Orthmann, de 91 anos, está na mesma empresa desde os 15; ele viu a CLT envelhecer e perder sentido (Michel Teo Sin/EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 1 de maio de 2013 às 08h36.

São Paulo - A carreira de Walter Orthmann impressiona. Em janeiro, ele completou 75 anos a serviço da mesma empresa, a RenauxView, uma indústria têxtil em Brusque, no interior de Santa Catarina. Oficialmente, aposentou-se em 1978, mas nem agora, aos 91 anos de idade, pensa em parar: “Gosto do que faço e vou até os 100 trabalhando”, diz.

A atípica longevidade profissional faz dele um privilegiado observador do século 20, em particular das transformações no trabalho, sua paixão confessa. Ele é testemunha ocular dos benefícios e das desvantagens da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), arcabouço legal que completa 70 anos em 1º de maio.

Orthmann começou a trabalhar em 1938, aos 15 anos, logo depois de concluir o primeiro grau. Ficava na empresa das 6 às 18 horas, de segunda a sexta-feira, e até as 14 horas aos sábados. Não tinha direito a férias, 13º salário ou outros benefícios hoje corriqueiros — tudo o que a empresa oferecia era café da manhã, almoço e lanche, servidos lá mesmo.

Essa rotina arcaica terminou em 1943 com a CLT. “Veio o Getúlio Vargas e mexeu na coisa toda”, diz Orth­mann. Ele e os demais trabalhadores, claro, adoraram a novidade. 

De lá para cá, as transformações foram profundas. Orthmann trabalhou na expedição, foi office boy, funcionário da contabilidade e representante comercial até chegar a gerente de vendas, nos anos 70. Viajou o país inteiro, primeiro de ônibus e depois de avião.

Prestou contas a 16 diretores. Em sua carteira de trabalho estão registrados seis cortes de zero no salário, fruto de ajustes monetários contra a inflação. A CLT, porém, praticamente não mudou.

Há 70 anos, a lei limita o fracionamento das férias, mas Orthmann já não vê sentido em ficar um mês sem visitar os clientes, principalmente os do Nordeste, que formam uma base cativa de compradores.

“Não é bom ficar longe dos clientes com os chineses por perto”, diz. Outro anacronismo: a lei foi criada quando o telefone fixo era um luxo e desconhece novas tecnologias. Há uma polêmica discussão legal sobre o pagamento de horas extras para quem lê e envia e-mails e mensagens fora do expediente.

Como milhões de trabalhadores, Orthmann tem um computador e dois celulares — um da empresa e outro particular. 

A falta de sintonia entre o dia a dia da economia e a lei é o sinal da urgência, para o país, de rever as regras que regem o trabalho. “A CLT precisa passar o bastão para outra legislação”, diz André Portela, professor da Fundação Getulio Vargas e especialista em economia do trabalho. “Ela foi importante nos primórdios do capitalismo brasileiro, mas não cabe mais no século 21.”

O problema é que a reforma trabalhista está à deriva, principalmente no Congresso Nacional, onde são feitas as leis. Na Câmara dos Deputados há quase 5 000 projetos sugerindo mudanças na CLT.

A pedido de EXAME, a área trabalhista do escritório Demarest & Almeida Advogados avaliou o conteúdo e o andamento dos principais projetos que ocupam a atenção dos parlamentares. A conclusão é preocupante. “A maioria das propostas ou é irrelevante ou piora a atual legislação”, diz Cássia Pizzotti, sócia do Demarest. 

O que mais se vê são projetos que criam novas obrigações para as empresas, com o argumento de que vão garantir benefícios para os trabalhadores, mas têm efeitos questionáveis. Muitos são só inúteis. É assim o projeto que obriga as empresas a pagar o exame de próstata quando o funcionário completa 40 anos.

O exame é coberto por planos de saúde e pelo SUS. Mas há um sem-número de projetos que, se aprovados, vão piorar ainda mais uma legislação trabalhista que já tem fama de ser a pior do mundo. É o caso do projeto que transfere para o empregador as custas de discussões judiciais quando o empregado vencer a causa.


Se virar lei, vai incentivar o trabalhador a buscar a Justiça por qualquer motivo, sobrecarregando os já abarrotados tribunais. Também cria um problema desnecessário o projeto que, a título de poupar os velhinhos, limita a hora extra para quem tem mais de 60 anos. O Brasil terá 35 milhões de pessoas nessa faixa etária em 2025.

Mas, se a proposta vingar, elas não poderão fazer horas extras — e receber por isso —, mesmo que estejam aptas e queiram. É também absurda a ideia de considerar como tempo trabalhado a presença de um trabalhador em um curso. Se aprovado, pode prejudicar os esforços de investimento em qualificação — isso num país notadamente carente de mão de obra.

Por outro lado, propostas capazes de modernizar a lei são levadas em banho-maria. É o caso do projeto que regulamenta a terceirização, uma tendência global dos negócios. O Brasil proíbe a terceirização da chamada atividade- fim: o coração do negócio. Ou seja, uma fábrica de móveis pode terceirizar a limpeza, mas não pode contratar marceneiros de outra empresa.

Em setores mais complexos, a dificuldade em definir o que é atividade-fim gerou um mar de processos. Empresas de telefonia, como Vivo, Oi e TIM, que possuem call center, travam constantes brigas judiciais para evitar que tenham de contratar funcionários terceirizados das centrais.

O mais comum é que as divergências gerem punições para as empresas. Em março, a Justiça do Trabalho de Matão, em São Paulo, condenou Cutrale, Louis Dreyfus, Citrovita e Citrosuco, os maiores fabricantes de suco de laranja do mundo, a pagar 455 milhões em indenizações e multas e a contratar 200 000 trabalhadores terceirizados no campo, a maioria colhedores de fruta.

Uma proposta para regular a terceirização, dando mais liberdade a esse tipo de contratação, tramita há nove anos no Congresso. 

A Justiça deixa as relações ainda mais áridas. No ano passado, uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho mandou aplicar o limite de exposição ao calor de quem trabalha a céu aberto. Setores em que isso é essencial, como o agronegócio, ainda avaliam como cumprir a medida.

Em outra decisão, o TST ratificou que o prazo máximo de permanência dos empregados nas dependências da empresa além da jornada é 10 minutos. O minuto seguinte conta como hora extra. Algumas empresas já pensam em tirar o caixa eletrônico de bancos do corredor para apressar o entra e sai dos funcionários.

“Há uma concepção cultural no Brasil de que a lei deve proteger o empregado”, diz José Pastore, professor de relações do trabalho da Universidade de São Paulo. “Por isso, as leis de hoje são tão ruins ou até piores que as antigas.”

O presidente do TST, Carlos Alberto Reis de Paula, tem outra interpretação. “Excetuando uma minoria bem preparada, a maioria dos trabalhadores está em absoluta desigualdade quando negocia com os patrões e precisa da proteção da lei”, afirma Reis de Paula. 

A Confederação Nacional da Indústria tenta organizar a construção de um novo marco legal. Um grupo de dez consultores e advogados levantou as principais lacunas da lei e propôs soluções. “Criamos um roteiro com temas que merecem atualização e entregamos a parlamentares, juízes, sindicalistas e integrantes do governo, inclusive à presidente”, diz a advogada Sylvia Loren, coordenadora do estudo.

O ponto de partida para a mudança, porém, é uma premissa que está clara para profissionais como Orthmann. Sua receita para se manter no mercado é uma só: “O trabalho ficou mais prático, mais rápido e mais simples e cheguei até aqui porque soube acompanhar as mudanças”. Ficam a dica e o exemplo de quem soube evoluir.

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