Para Piero Minardi, diretor da Warburg Pincus e presidente da ABVCAP (Leandro Fonseca/Exame)
Graziella Valenti
Publicado em 18 de agosto de 2022 às 06h00.
Última atualização em 18 de agosto de 2022 às 09h49.
Klarna. A fintech sueca, fundada em 2005, é bem pouco conhecida por aqui, mas virou exemplo global deste mercado azedo de 2022. Apesar de ser quase uma veterana da inovação financeira, a companhia conquistou fama global com algo para lá de trivial na rotina dos brasileiros: o crediário digital, estratégia vencedora da Casas Bahia que se tornou glamourosa mundo afora como buy now, pay later — “compre agora, pague depois”.
Rapidamente, a empresa chamou a atenção. Chegou a ser avaliada em 45 bilhões de dólares, mais do que os 41 bilhões que o Nubank conseguiu com sua oferta pública de ações no fim do ano passado, seu IPO, na Bolsa de Valores de Nova York, a Nyse. Mas, ao sair em busca de investidores neste 2022 por precisar de capital — precisamente, 1 bilhão de dólares —, a companhia encontrou um cenário totalmente diferente.
Na largada, ouviu que teria de ajustar sua avaliação para 30 bilhões de dólares, um tombo de 30%. Só que o resultado prático assustou muito mais todos os fundadores de startups, no Brasil e no mundo: conseguiu 800 milhões, avaliada em 6,5 bilhões de dólares. Uma queda de 85% no valor.
Tornou-se, assim, um expoente do que aconteceu — ou pode acontecer — com as famosas startups, na esteira da perda de 10 trilhões de dólares de valor de mercado das companhias listadas na Nasdaq. Entre as empresas em bolsa, o aumento da taxa de juro, que traz a perspectiva de um crescimento econômico menor e com dinheiro mais caro, deixou o valor de mercado bem mais magro.
Quem se arriscou a acessar o mercado privado, ou a farejá-lo, viu a mesma coisa. O ajuste da Nasdaq e o episódio da Klarna levaram todos a se questionar se os últimos anos de euforia, marcados pelo excesso de liquidez promovido pelos governos para combater uma recessão devido à pandemia, foram uma bolha. Em 2021, os investimentos em capital de risco no Brasil chegaram a 46,5 bilhões de reais — três vezes o total do ano anterior e 4,5 vezes o volume de 2019.
Piero Minardi, presidente da Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (ABVCAP) e também diretor da Warburg Pincus, uma das mais renomadas investidoras em empresas de tecnologia, acompanhou de perto esse vaivém. Como investidor, ele tende a adotar um tom mais cauteloso e analítico. Como analista do mercado e representante do setor, ele diz que, apesar de exageros aqui e ali, o mercado de startups não viveu uma bolha. Entenda.
A queda do valor da Nasdaq e o que aconteceu com a Klarna são sinais de que vivemos uma bolha?
De fato, vivemos um círculo virtuoso nos últimos cinco anos. Mas motivado por fundamentos: a digitalização da economia. Estávamos atrasados nisso por uma série de fatores, incluindo falta de infraestrutura tecnológica mesmo. As empresas tinham um problema da porta para fora. Então, com algumas melhorias nos últimos anos, o cenário mudou e elas encontraram um terreno fértil. Como ocorreu com as fintechs, que encararam um mercado concentrado em cinco bancos. Era um mercado perfeito para ser desruptado. Mas há outros setores, como educação e saúde, em que esse movimento está apenas no começo.
Então esse ajuste que estamos vivendo é o estouro dessa bolha?
Não, não era uma bolha. Diferentemente do ano 2000, aqui há setores que mudaram para sempre, como o financeiro, e outros que ainda têm muito a mudar. Houve exageros, é verdade, mas é muito diferente, porque houve mudanças de fundamento, de verdade.
Nas bolhas, quando acaba o ciclo de valorização, o estouro deixa um vazio. É essa a diferença?
A euforia criou um cenário de exageros. Os mercados sempre dão um jeito de exagerar, para cima e para baixo. Todo mundo começou a procurar a próxima Apple, a próxima Amazon. Havia um excesso de capital, dinheiro barato, com juro real negativo. Empresas fazendo três rounds por ano, um seguido do outro, com valores cada vez mais altos do que os anteriores. Mas a mudança promovida por essas novas empresas, essa digitalização, tem valor e continuará criando oportunidades. Quando penso em educação, vejo que vai acontecer uma mudança que a gente nem tocou ainda. Vai mudar a forma de ensinar tudo. Claramente, a tecnologia vai transformar para sempre o setor. Na saúde, a mesma coisa. Logo, não é uma bolha.
Muita gente acha essa correção importante. Essas crises têm função?
Eu acho que elas têm, sim, um papel. As coisas precisam ter racionalidade. Essa euforia, causada pela falta de yield [retornos significativos, reais], inflou a oferta de dinheiro e também a demanda. Daí, começamos a ver avaliações de empresas sem sentido, de negócios não provados. Virou um cassino.
E esse ajuste serve também para ensinar os fundadores, esses novos empresários? Vimos diversas dessas startups, inclusive algumas que pareciam já provadas, anunciarem grandes demissões.
Essa geração dos últimos quatro ou cinco anos só viu alegria. Acho que está todo mundo vivendo um rito de passagem. Mas essa crise é um pouco diferente. Essa indústria da digitalização não é capital intensivo. Ela é intensiva em pessoas, mas não precisa de fábricas, estoques. Essa crise machuca de um jeito diferente: é basicamente no custo de operação. É mais fácil para o empreendedor do que se fosse fábrica, com dinheiro do BNDES, ou estoque, com pendências com fornecedores. De certa maneira, ela é menos dolorida para os empreendedores. Além disso, os fundadores estavam contratando para crescimento futuro, não para a demanda atual. Quando se descobre que a expansão contratada não vai mais chegar, é preciso ajustar. Minha opinião é que até agora o que foi cortado era a gordura. Acho que ninguém cortou na carne ainda.
Os fundadores estão tentando fazer o caixa que possuem durar mais. Mas isso vai resolver?
Foi um primeiro freio de arrumação. Existe muita gente achando que vai conseguir levantar dinheiro daqui a um ano, 18 meses, que esse tempo passará rápido. Mas há gente que pode morrer de sede por não querer começar a discutir agora uma captação para não ter uma avaliação menor. Conseguir o mesmo preço da rodada anterior agora é o mesmo que a valorização de ontem.
Você acha que essa redução de liquidez será duradoura? No primeiro trimestre, já vimos uma queda: as operações de venture capital despencaram pela metade, em comparação ao que se viu ao longo de 2021, para 6,4 bilhões de reais.
Acho que há gente que entende que o problema não é a profundidade da crise, é a duração dela. O grande desafio é esse. Não acho que depois da eleição vamos voltar para onde estávamos antes. Para esses fundadores, vai ser uma forma de aprendizado. Mas vai continuar existindo capital para as boas empresas, com unidades econômicas interessantes. A macroeconomia afeta menos as startups. Muitas vão continuar crescendo de forma relevante.
E o fluxo de investimento de grandes fundos estrangeiros, como vai ficar?
Eles claramente já tiraram o pé do acelerador. E alguns grandes nomes têm desafios internos para lidar. No mínimo, eles vão deixar de liderar as rodadas. Vão deixar o fundador das investidas encontrar outro investidor e, no melhor cenário, vão acompanhar as próximas rodadas.
Quando o mercado passa por essas correções, costuma-se dizer que é quando o private equity, que faz operações maiores, encontra as melhores oportunidades. O volume no primeiro trimestre ficou em 5,1 bilhões de reais, bem superior à média dos últimos dois anos.
O private equity sofre mais com o macroeconômico do que o venture capital. Um bom fundo dá 20% em dólar. Com a desvalorização cambial, todo mundo se machucou muito recentemente. Estão todos mais cautelosos. Mas acredito que, nesse caso, quando passar a eleição, haverá um horizonte mais claro, ainda que esse setor tenha debates importantes em andamento.
Quais debates?
A questão da Receita Federal, que decidiu reescrever o passado e está cobrando ganhos de capital de gestoras importantes. Tenho dedicado tempo nos últimos anos para essa discussão. Acredito que a indústria vai vencer essa discussão na Justiça, mas isso ainda pode levar anos, e até lá fica essa indefinição incômoda. Não quero dizer que esse é o maior problema, nem o único. Crescimento é a melhor proteção que você pode ter contra a desvalorização cambial. Para o private equity, a falta de crescimento atrapalha bastante.
Como você vê o Brasil no futuro, na atratividade para o private equity e o venture capital?
O ecossistema de private equity e venture capital do Brasil é o melhor entre os emergentes. E posso falar isso porque meu fundo investe em outros países. O grande receptor de mercados emergentes, a China, está fechando. O crescimento vai ficar entre 2% e 3% ao ano por um bom tempo lá. A questão da mão pesada do Estado pegou forte. É só ver o Alibaba. Então, o dinheiro que ia aos borbotões para a China não vai mais. Esse dinheiro tem de ir para outros lugares, e isso já começou com fluxos maiores para Indonésia, Vietnã, Filipinas. Mas o Brasil poderia ser um destino. Para isso, é preciso que os tribunais de Justiça parem de contestar arbitragens, que problemas como o da Receita Federal não aconteçam, que a Justiça também não coloque obstáculos para as privatizações. Há uma oportunidade imensa para o private equity no Brasil. No caso do venture capital, sou ainda mais otimista. Há setores que ainda nem começaram a se digitalizar.