Revista Exame

Grande e ameaçado

Por que Nestlé, Auren Energia, Reservas Votorantim — e até a rainha da Dinamarca — querem, por meio da agricultura regenerativa e do reflorestamento, restaurar o Cerrado

Cerrado: o bioma tem 2 milhões de quilômetros quadrados, que cobrem 24% do território brasileiro (Luciano Candisani/Votorantim/Divulgação)

Cerrado: o bioma tem 2 milhões de quilômetros quadrados, que cobrem 24% do território brasileiro (Luciano Candisani/Votorantim/Divulgação)

César H. S. Rezende
César H. S. Rezende

Repórter de agro e macroeconomia

Publicado em 18 de outubro de 2024 às 06h00.

Última atualização em 18 de outubro de 2024 às 16h26.

No último dia 4 de outubro, a rainha consorte da Dinamarca, Mary Donaldson, e o ministro dinamarquês do Clima, Energia e Serviços Públicos, Lars Aagaard, visitaram a Embrapa Cerrados, braço da estatal dedicado ao bioma.

A ida ao centro de pesquisa tinha um motivo especial, afinal, a Dinamarca e o Brasil avaliam fechar uma parceria público-privada com empresas dinamarquesas que pretende recuperar o Cerrado, um dos principais biomas e o mais ameaçado de extinção do país, com 51% de sua área desmatada, segundo o Sistema de Detecção de Desmatamento em Tempo Real (Deter), do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

A ideia de recuperar o Cerrado não é nova e encontra apoio também em ações de algumas empresas, que utilizam técnicas como o reflorestamento e a agricultura regenerativa para restaurar um dos maiores biomas do Brasil.    

Ele é grande. São 2 milhões de quilômetros quadrados, que cobrem 24% do território brasileiro. Ali estão oito das 12 bacias hidrográficas do país, incluindo o Aquífero Guarani, o segundo maior reservatório subterrâneo do mundo.

Em relação à biodiversidade, o Cerrado concentra 330.000 espécies — 5% de toda a biodiversidade do planeta — entre plantas, aves, répteis, anfíbios, peixes, insetos e mamíferos. Quando o assunto é o agro, o bioma concentra 60% de toda a produção agrícola do Brasil, com plantações de soja, milho, algodão, além da pecuá­ria, tanto a de corte quanto a leiteira, de acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama).

“Restaurá-lo ajuda a minimizar os impactos climáticos que temos observado, especialmente em relação aos desafios enfrentados nesse bioma”, afirma à EXAME Vinicius Del Prete, gerente corporativo de sustentabilidade da Nestlé. A empresa de alimentos se comprometeu a reflorestar, ao longo dos próximos 30 anos, 4.000 hectares nas cidades de Belo Horizonte, Curvelo, Ipatinga e Montes Claros — sim, todas elas fazem parte do Cerrado. A projeção da Nestlé é plantar 6 milhões de árvores de 100 espécies nativas, no entorno de nascentes, córregos e rios que fazem parte das bacias hidrográficas do São Francisco e do Rio Doce — a fase do plantio vai até 2027. A escolha da região é estratégica, já que os locais concentram a produção de leite, café e cacau.

“Ao promover a restauração do Cerrado, garantimos o fornecimento de água e condições climáticas estáveis, o que é fundamental para a produção de matérias-primas essenciais para nossas operações”, reforça Del Prete. Sem abrir os números de quanto foi investido, o gerente de sustentabilidade diz que o projeto de restauração do Cerrado da Nestlé faz parte do Programa Global de Reflorestamento e destaca que cada produtor, que pode ou não ser fornecedor da empresa, recebe 75 dólares por hectare. 

A iniciativa é essencial: o Cerrado perdeu 11.011 quilômetros quadrados de vegetação nativa entre agosto de 2022 e julho de 2023, segundo o último dado disponível divulgado pelo Inpe. A área suprimida é 3% superior à registrada entre os mesmos meses de 2021 e 2022. Como o Cerrado é parte fundamental do agronegócio brasileiro, o grande desafio é equilibrar a produção de alimentos com a proteção ecológica, essencial para a sobrevivência do agro na região.

Viveiro de mudas da Reservas Votorantim: a empresa desenvolveu ações para restaurar o Cerrado levando em consideração a realidade local (Luciano Candisani/Votorantim/Divulgação)

É o que tem buscado a Reservas Votorantim. Por meio da agricultura regenerativa, a companhia, que compõe o ­portfólio do grupo Votorantim, faz a gestão de um território da Companhia Brasileira de Alumínio (CBA) de 32.000 hectares, batizado como Legado Verdes do Cerrado, no estado de Goiás, a primeira reserva privada de desenvolvimento sustentável do bioma no país.

Em parceria com universidades e centros de pesquisa, a empresa desenvolveu ações para restaurar o Cerrado levando em consideração a realidade local. A agricultura regenerativa é um sistema que visa restaurar a saúde do solo, a biodiversidade e os ecossistemas, indo além da sustentabilidade. O método envolve práticas como a rotação de culturas, que melhora a qualidade do solo, e o uso de plantas de cobertura para evitar a erosão e aumentar a fertilidade.

Além disso, busca minimizar insumos químicos ao reduzir o uso de fertilizantes e pesticidas sintéticos. “Descobrimos características geológicas interessantes e informações valiosas que nos ajudaram a identificar áreas que exigem cuidados especiais, permitindo um manejo do solo mais adequado para nosso projeto de Integração Lavoura-Pecuária-Floresta [ILPF]”, diz o CEO da Reservas Votorantim, David Canassa.   

A ILPF é um sistema de produção agropecuária criado no Brasil que combina, de maneira harmoniosa, atividades de cultivo (lavoura), criação de animais (pecuária) e plantio e conservação de mata nativa (floresta) em uma mesma área — a abordagem­ busca otimizar o uso da terra e melhorar a produtividade. Em geral, a parte de floresta é feita com eucaliptos, que crescem rapidamente e têm fácil mercado.

No caso da Reservas Votorantim, a ideia é utilizar espécies nativas para aumentar o potencial de regeneração. “Um exemplo é o baru, uma castanha nativa do Cerrado que, segundo pesquisas, tem um preço de mercado internacional equivalente ao da castanha-do-pará”, diz Canassa. O baru tem várias vantagens, conta, pois é uma espécie que permite a interação com o gado — a primeira camada da castanha é consumida pelos animais, o que facilita essa convivência.

“Plantamos o baru ao redor das áreas de cultivo, onde também cultivamos soja e milho. Após a colheita, introduzimos o capim, que serve como pasto. Assim, o gado se alimenta da palhada e, quando os frutos do baru estão prontos, ele pode aproveitar as castanhas”, diz. “Essa abordagem não só promove a integração entre a pecuária e a agricultura, mas também valoriza a biodiversidade do Cerrado.” 

O bioma abarca importantes regiões produtoras, como o oeste da Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, onde, inclusive, a Auren Energia atua, na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) de Cisalpina — uma unidade de conservação privada, que é uma área protegida estabelecida de forma voluntária e permanente. 

As ações da empresa se concentram em um dos seus principais ativos, a Usina Hidrelétrica Engenheiro Sérgio Motta, com capacidade de 1.540 megawatts, próxima do município de Primavera, entre os estados de Mato Grosso do Sul e São Paulo — ou seja, uma área de transição que abrange, além do Cerrado, a Mata Atlântica. Desde 1998, quando a Usina de Primavera ainda era estatal (da Companhia Elétrica de São Paulo), a empresa já restaurou 3.000 hectares do Cerrado, com um investimento de 4,5 milhões de reais por ano — a meta é chegar a 7.919 hectares até 2030.

A Auren passou a gerir a operação em 2019 e ampliou o programa. “Acompanhamos o processo de restauração, atendendo tanto fazendeiros que desejam revitalizar suas propriedades quanto comunidades que buscam restaurar parques em suas regiões”, diz Alexsandro Antonio Cota, gerente-executivo de sustentabilidade da Auren Energia.

A companhia tem um viveiro com mudas que vêm de dois bancos ativos de material genético. O primeiro está localizado em Mato Grosso do Sul e abriga cerca de 60 espécies de árvores do Cerrado, enquanto o segundo, situado em São Paulo, é dedicado a espécies da Mata Atlântica e serve ao mesmo propósito. “A estratégia assegura a adaptabilidade e a diversidade genética das espécies utilizadas. Nosso trabalho visa não só restaurar mas também promover a biodiversidade de forma integrada”, afirma Cota.

As medidas de recuperação do Cerrado não estão restritas ao setor privado. No ano passado, o governo federal lançou o PPCerrado, programa para combater queimadas e desmatamento. A iniciativa, que está em sua quarta fase, entretanto, parece não ter dado resultados significativos.

No primeiro semestre deste ano, o Cerrado foi o segundo bioma mais afetado pelas queimadas, com 27,1% do total, enquanto a Amazônia ficou em primeiro lugar, com 55,8% dos registros, de acordo com o Inpe. Além disso, em meio à onda de incêndios que atingiu o país, sobretudo de agosto até meados de setembro, mais de 54.000 focos de incêndio já foram registrados no Cerrado — um número superior aos 53.000 registrados em todo o ano de 2023, segundo o órgão. 

Nesse cenário, avalia Vinicius Silgueiro, coordenador do Núcleo de Inteligência Territorial do Instituto Centro de Vida (ICV), a consolidação de uma agenda focada na restauração do bioma passa por avanços institucionais em nível público e privado. “É preciso avançar na cadeia da restauração, na governança, na implementação da legislação, como o Código Florestal. Ainda há muito a ser feito para que essa implementação esteja alinhada com políticas públicas e em consonância com as ambições climáticas assumidas pelo Brasil”, afirma.

Na visão de Sebastião Pedro da Silva Neto, chefe-geral da Embrapa Cerrados, as ações de restauração das companhias para o Cerrado podem ter um efeito dominó dentro e fora do Brasil. “Essas empresas são referências em suas respectivas áreas e podem servir como exemplo para outras organizações. Suas atuações incentivarão um movimento maior de preservação e recuperação ambiental”, diz.

A parceria com a Dinamarca, que estabelece a produção de mudas de espécies nativas do Cerrado para repovoar áreas degradadas que se encontram em situação de insustentabilidade ambiental, também deve incentivar outros países a desenvolverem iniciativas semelhantes, acredita o chefe-geral. O otimismo de Silva Neto o leva a crer que, se a recuperação do Cerrado chamou a atenção da rainha da Dinamarca, também poderá gerar um movimento maior no Brasil — e ir além dele. O Cerrado agradece.


Operação: restaurar o Cerrado

O que as empresas estão fazendo para restaurar um dos principais biomas brasileiros

MINAS GERAIS

Empresa: Nestlé

Ações: Reflorestamento de 4.000 hectares nas cidades de Belo Horizonte, Curvelo, Ipatinga e Montes Claros, com projeção de plantar 6 milhões de árvores até 2027, com foco nas bacias hidrográficas do Rio São Francisco e do Rio Doce.

GOIÁS

Empresa: Reservas Votorantim (Legado Verdes do Cerrado)

Ações: Gestão de 32.000 hectares com técnicas de agricultura regenerativa e Integração Lavoura-Pecuária-Floresta (ILPF), incluindo o plantio de espécies nativas, como o baru.

MATO GROSSO DO SUL

Empresa: Auren Energia

Ações: Atua na Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN) de Cisalpina e já restaurou 3.000 hectares do Cerrado, com o objetivo de recuperar 7.919 hectares até 2030. A Auren Energia também mantém um viveiro no estado com 60 espécies de árvores nativas.

SÃO PAULO

Empresa: Auren Energia

Ações: Além das ações em Mato Grosso do Sul, a Auren Energia mantém um viveiro em São Paulo dedicado a espécies da Mata Atlântica para promover a biodiversidade.


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