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Banco Central: vivemos na era em que a solução seria privatizar os heróis?

Se não vai ter picanha, precisamos de um culpado. O vilão da vez é o BC herdado de Bolsonaro. Contra esse vilão, emerge um falso herói

Todas as vezes que uma figura personalista tenta apontar o caminho da virtude a partir do monopólio da vontade política, toma-se a direção errada (MirageC/Getty Images)

Todas as vezes que uma figura personalista tenta apontar o caminho da virtude a partir do monopólio da vontade política, toma-se a direção errada (MirageC/Getty Images)

Publicado em 16 de fevereiro de 2023 às 06h00.

André Lara Resende tem contribuições poderosas à literatura da economia brasileira, sendo a mais importante delas a proposta Larida, escrita com Pérsio Arida e base para o Plano Real. Meu texto favorito de André Lara, no entanto, transborda o escopo da economia. Falo da preciosidade Em Busca do Heroísmo Genuíno.

A essência da coisa é que o Iluminismo, ao diminuir a importância de Deus ou até mesmo matá-lo a partir da luz da razão, deixou-nos um vácuo de heróis relevantes. Tentamos substituir essa grande referência, seja por meio do Império da Lei, da ciência, do dinheiro, seja da tecnologia, mas, sabe como é, nunca será a mesma coisa se comparado a Ele — onipotência, onisciência e onipresença não são para qualquer um.

A lei, principalmente em países emergentes, não vale exatamente igual para todos? A razão, por sua vez, é uma grande emoção, é o desejo de controle, como nos ensina Nietzsche; além de ter perdido protagonismo quando até a Universidade de Chicago, berço da racionalidade perfeita, aderiu às finanças comportamentais. O dinheiro é legal, claro, mas, embora nos ajude a chorar em Paris, está mais para o escopo do profano do que do sagrado. E a tecnologia pode nos distrair com curtidas, ChatGPTs e direção autônoma, mas ainda não foi capaz de lançar nada à altura de um bom jantar com a família sob a harmonia de um vinho seco, tânico e ácido.

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Em busca de nossos heróis, primeiro rola aquele lance meio edípico-freudiano. O sujeito tem no pai biológico sua principal referência. Um herói repressor sobre o qual se tem inveja, contra o qual haveremos de irromper em certo momento da adolescência em prol da nossa própria constituição. É engraçado como essas relações mitológicas transbordam a questão estrita da família. Sérgio Buarque de Holanda, em Visão do Paraíso, já trazia como pano de fundo a ideia de que faltava aos brasileiros uma noção clara de paternidade e identidade. O europeu pobre e excluído veio nos colonizar porque a mãe Europa já estava interditada pela nobreza e pela alta burguesia. Assim, podia gozar sem limites no paraíso tropical. Contardo Calligaris vai por caminho semelhante em Hello, Brasil!

O jogador de futebol e o cantor de rock são boas representações aos adolescentes. Então, entramos naquela fase da ideologia e dos políticos de estimação, sob a célebre frase, inadequadamente atribuída a Delfim Netto: “Se você não é socialista até os 25 anos, você não tem coração; se continua socialista depois disso, não tem cérebro”. Curioso como a busca por um grande pai está em alta na política, algum mito para ocupar a figura divina ou paterna. Quando parecia pacificada a vitória definitiva da democracia liberal e dos valores ocidentais clássicos sobre as alternativas, encontramos Putin, Erdogan, Orbán, Trump. Nós mesmos tivemos o próprio mito local.

Todas as vezes que uma figura personalista tenta, acima da ciência e das instituições, apontar o caminho da virtude a partir do monopólio da vontade política, toma-se a direção errada. Estamos diante de um exemplo sintomático neste momento: o debate sobre as metas de inflação. Diferentemente de parte do mercado, que procura interditar a conversa a priori, entendo que uma reavaliação dos parâmetros do sistema neste momento poderia ensejar um diálogo enriquecedor.

Há poucos anos, vivíamos a perspectiva da estagnação secular. O mundo era desinflacionário. Agora, a coisa é outra. O tal “reshoring”, a reorganização das cadeias produtivas globais para reduzir a dependência de autocracias ou países menos confiáveis, força uma dinâmica inflacionária. Em reforço, o fluxo imigratório para os Estados Unidos foi dificultado por Trump, aumentando o custo de mão de obra, e o Brexit seguiu caminho parecido. A inflação é mais alta no mundo todo, e forçar uma convergência acelerada para níveis recordes de baixa do centro da meta num país emergente pode ser excessivamente custoso.

Muitas empresas se alavancaram com a Selic a 2%. Com o juro básico em 13,75% por bastante tempo, muita gente pode ficar pelo caminho. O evento Americanas trouxe o temor de um “credit crunch”. A Oi voltou para a recuperação judicial, caminho que, segundo jornalistas, poderia ser seguido também pela Light, enquanto Lojas Marisa já contratou a BR Partners para reestruturar sua dívida. Os gigantes Santander e Bradesco apresentaram resultados trimestrais assustadores, mostrando a deterioração do cenário de crédito.

A discussão sobre a necessidade de caminharmos para recordes de baixa na meta de inflação neste momento poderia ser rica e construtiva. Infelizmente, porém, quando o presidente Lula e/ou Gleisi ­Hoffmann criam um antagonismo maniqueísta contra o presidente do Banco Central, politizam um debate que deveria ser técnico. Perde-se a legitimidade da conversa, que começa a se prestar a interesses eleitoreiros de quem ainda não desceu do palanque.

Estamos todos velhos para ingenuidades. Políticos precisam de suas retóricas para manter a base engajada. Se não vai ter picanha neste ano, precisamos de um culpado. O vilão da vez recai sobre o Banco Central herdado de Bolsonaro. Contra esse vilão, emerge um falso herói. Ao cobrar a queda dos juros na marretada, Lula colhe desconfiança com a condução da política econômica, dólar mais alto, piora das expectativas de inflação e juros maiores.

A solução, então, seria privatizar os heróis? A ideia poderia soar tentadora, mas, quando olhamos para o Olimpo do capitalismo brasileiro e enxergamos aqueles três senhores que se negam a salvar a Americanas depois da escandalosa fraude contábil, lembramos de nossa natureza macunaímica: “Ai, que preguiça…”. Os heróis da 3G morreram de overdose de cinismo. O risco maior é cairmos no vale da desesperança. Essa seria a pior resolução. A verdade é que, entre um sonho grande e a realidade objetiva, a segunda sempre foi e sempre será o melhor caminho, além do único possível. Como resume Woody Allen, “a realidade é dura, mas ainda é o único lugar onde se pode comer um bom bife...”   


(Arte/Exame)

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