Revista Exame

Por que a Natura trocou mais uma vez de presidente

O executivo João Paulo Ferreira é a terceira aposta da fabricante de cosméticos Natura para resolver o maior dilema de sua história

João Paulo Ferreira, da Natura: missão de retomar o brilho perdido  (Germano Luders/Site Exame)

João Paulo Ferreira, da Natura: missão de retomar o brilho perdido (Germano Luders/Site Exame)

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Raphaela Sereno

Publicado em 5 de novembro de 2016 às 05h55.

Última atualização em 5 de novembro de 2016 às 05h55.

São Paulo — Trocas na presidência das empresas tornam-se cada vez mais corriqueiras. Em 2015, quase dois em cada dez presidentes das 2 500 maiores companhias do mundo deixaram seu posto. É o maior índice desde que a pesquisa passou a ser feita pela consultoria Strategy&, da PwC, em 2000. Nesse sentido, a fabricante de cosméticos Natura se manteve como uma exceção por muito tempo. De 1996 a 2005, os três controladores — Luiz Seabra, Guilherme Leal e Pedro Passos — dividiram-se no comando da companhia.

Naquele ano, o trio passou para o conselho e promoveu o paulista Alessandro Carlucci, que permaneceu no comando por uma década. Uma cerimônia com direito a participação surpresa de sua mulher, Renata, e de seus dois filhos marcou a despedida do executivo. Pouco mais de dois anos depois chegou a vez de seu sucessor dizer adeus. Roberto Lima renunciou ao cargo no dia 25 de outubro. A notícia pegou o mercado de surpresa.

A despedida, dessa vez, foi bem menos efusiva e restringiu-se a uma discreta reunião com os principais executivos da companhia. Em seu lugar assume o executivo João Paulo Ferreira, de 48 anos. “Tudo aconteceu de forma natural”, disse Ferreira, em entrevista exclusiva a EXAME. A instabilidade no comando é apenas a dimensão mais visível dos dilemas internos enfrentados pela empresa. O maior deles é ir além de um modelo de negócios que, sozinho, não parece suficiente para impulsionar um novo salto de crescimento.

Basta olhar os números da companhia. Em 2015, as vendas cresceram cerca de 5% — a menor taxa da década. Por sua vez, o lucro líquido encolheu quase 30% — a maior queda do período. Em 2016, as notícias não melhoraram. Em abril a companhia anunciou o primeiro resultado negativo desde a estreia na bolsa, em 2004. Além do prejuízo de 69 milhões de reais entre janeiro e março, as vendas caíram 10% em comparação com o mesmo período do ano anterior.

É verdade que quase todo o mundo corporativo brasileiro sofreu no último ano. Mas a Natura apanhou mais do que a concorrência: depois de perder a liderança do mercado de produtos de higiene e beleza para a Unilever, corre o risco de ser ultrapassada pelo Grupo Boticário. De acordo com a consultoria Euromonitor, a Natura perdeu um quarto de participação de mercado desde 2010 e hoje detém 11,1% das vendas do setor. O Grupo Boticário avançou 58% no mesmo período e hoje possui um quinhão equivalente a 10,9%.

“Há um ano e meio a Natura não consegue aumentar a produtividade de suas revendedoras”, diz Guilherme Assis, analista do Banco Plural. “E o ritmo de expansão de novas frentes de crescimento tem sido muito lento.” A Ferreira cabe reverter essa tendência — algo que seus antecessores, por razões diferentes, não conseguiram. Se ele tem alguma vantagem, é ter sido testemunha do que deu certo e, sobretudo, do que deu errado na gestão de cada um deles.

Ele é o membro mais antigo do comitê executivo da Natura, o qual passou a integrar em 2009. Todos os seus colegas dessa época já deixaram a companhia. Hoje ele divide o comando da empresa com recém-chegados, como Andrea Álvares, vice-presidente de marketing e inovação, que veio da Pepsico em janeiro. Formado em engenharia eletrônica pela Universidade de São Paulo, Ferreira ingressou na Natura como vice-presidente de logística, após quase 20 anos de trajetória na fabricante de bens de consumo Unilever.

Na época, a Natura começava  a ter dificuldade para entregar produtos a consultoras em estados mais distantes. Com sua chegada, teve início a montagem da atual estrutura com nove centros de distribuição país afora. Embora isso tenha lhe conferido credibilidade entre os pares e com os acionistas, a atuação numa área com menos visibilidade externa fez com que se tornasse pouco conhecido fora da empresa. Só há pouco mais de dois anos ele assumiu a vice-presidência comercial.

Ferreira não é exatamente um executivo carismático. Diferentemente de Carlucci, que despertava simpatia não só entre as mais de 1 200 revendedoras da marca no país como também entre os cerca de 5 000 funcionários, ele é um sujeito bem menos extrovertido. Sempre que tem chance, enfatiza que é apenas mais um “em um time com muitos líderes”, num discurso em sintonia com a aspiração dos acionistas. É nessa sintonia, aliás, que está seu atributo mais valioso neste momento.

Ferreira é visto internamente não só como um executivo detalhista e competente mas também como alguém que conhece a fundo os valores da companhia. Não é um atributo trivial. Segundo EXAME apurou, foi cometendo pequenos deslizes nessa seara que Lima deu subsídios para que se tornasse clara a pouca ou nenhuma afinidade que tinha com a cultura da empresa. Num evento para dezenas de gerentes, logo que assumiu, o executivo egresso da Vivo usou sem cuidado a expressão “explorar a Amazônia” e gerou mal-estar na audiência.

“Não é dessa maneira que costumamos falar da floresta, com a qual temos uma relação tão profunda”, afirma um gerente presente na ocasião. Num jantar em homenagem aos funcionários com dez anos de casa, Lima azedou o clima de festa ao lembrá-los em seu discurso sobre o programa de redução de custos que estava em vigor. Ninguém espera que Ferreira cometa gafes assim. “Ele está bem mais desenvolto desde que entrou na companhia e se transformou num defensor de sua cultura”, diz um ex-executivo da Natura.

Roberto Lima também era visto como centralizador, em contraste à cultura de decisões por consenso predominante na companhia. Procurado por EXAME, Lima negou qualquer conflito com os acionistas. “Eles já me conheciam bem dos tempos em que ocupei um assento no conselho da Natura”, diz. “Meu mandato estava previsto para terminar quando houvesse um time capaz de assumir o comando. Foi o que aconteceu.”

Presença dos controladores

A aderência de Ferreira aos discursos e às práticas da empresa deverá ajudá-lo numa tarefa espinhosa: transitar entre os controladores num momento em que todos se reaproximaram do negócio. Em 2015, os três passaram a dividir novamente a presidência do conselho de administração da companhia — algo que tinha deixado de acontecer em 2012. Ao mesmo tempo, Pedro Passos, o mais jovem do trio de acionistas, passou a ser visto com mais frequência na companhia.

Mais especificamente em reuniões do comitê de produto, que decide o que será e o que não será vendido dali para a frente. Ele participou da última divulgação de resultados — dois dias após o anúncio da troca de comando — e andava pela sede ao lado de executivos da companhia no dia em que Ferreira concedeu a entrevista a -EXAME. Segundo EXAME apurou, espera-se que essa reaproximação encerre um ciclo que desgastou mutuamente a relação entre o antigo time de executivos e os próprios controladores.

No início da década, na gestão de Carlucci, diversos projetos iniciados pelo comitê executivo acabaram engavetados em fase adiantada. Um dos exemplos foi uma linha de produtos para cabelos destinados a salões de beleza, a Ginga. Após mais de um ano em desenvolvimento, já com embalagem desenhada, o projeto foi suspenso. “Na última hora algum dos sócios aparecia para opinar e o projeto ia por água abaixo”, diz um ex-executivo da companhia.

A maior frustração ocorreu após uma tentativa em 2013 de adquirir o controle da fabricante de cosméticos americana Avon, que fatura 6 bilhões de dólares. O episódio foi marcante por duas razões. Primeiro, pelo que poderia ter representado em ganho de escala. Segundo, por ter dividido a opinião dos acionistas. Pedro Passos defendeu o negócio até o final. Os demais sócios, Seabra e Leal, que juntos detêm a maioria das ações com direito a voto, desembarcaram na undécima hora.

Já havia consultorias contratadas para analisar sinergias e até mesmo para cuidar das relações públicas caso a informação vazasse. “O episódio gerou uma enorme frustração entre os envolvidos”, afirma um executivo que esteve próximo às negociações. “E tornou claro como pode ser difícil a tomada de decisões importantes por três sócios tão diferentes.” Procurados, os acionistas não deram entrevista.

Para a sorte de Ferreira, seu antecessor, Roberto Lima, já quebrou alguns paradigmas. Foi durante sua gestão que a Natura finalmente fincou pé no varejo tradicional. Em abril, a primeira loja da marca foi aberta no MorumbiShopping, na capital paulista. Antes disso, em setembro de 2015, a Natura colocou uma de suas linhas de produto, a Sou, nas gôndolas da RaiaDrogasil, maior rede de farmácias do país. Recentemente, a empresa também ampliou sua presença no mundo digital ao romper o vínculo com suas consultoras.

Explica-se: desde abril os consumidores que acessam a Rede Natura, canal de vendas online criado pela empresa em 2014, podem optar por comprar diretamente da companhia, sem a intermediação das consultoras. Esses movimentos têm sido bem-vistos pelos analistas e gestores de fundos. O que os angustia é a velocidade — ou melhor, a falta dela. A investida nas farmácias vai bem.

Os produtos da Sou já estão hoje disponíveis em todas as 1 370 unidades da RaiaDrogasil em 18 estados do país e, no final de outubro, a empresa começou a testar em 32 lojas da rede na capital paulista a aceitação de outra linha, a Tez, de produtos para o rosto. Em dezembro, segundo Ferreira, outras grandes redes de farmácia do país terão os produtos da Natura nas gôndolas. Por outro lado, aos olhos do mercado, a expansão das lojas próprias está devagar, quase parando: a empresa deve fechar o ano com cinco unidades na cidade de São Paulo.

“Quando a guerra se acirra, é preciso correr e marcar território”, afirma um dos maiores gestores de recursos do país. “Não vejo a empresa empenhada em fazer isso.” Ferreira tem um argumento para a toada da iniciativa até agora: rigor para aprender a fazer certo. Ele diz que a partir de 2017 a coisa deverá mudar. O ritmo que a empresa deverá imprimir à abertura de lojas, porém, continua um mistério. “Não chegaremos a 100 lojas em 2017, mas também não vai levar cinco anos para isso acontecer”, afirma.

Ferreira diz que hoje não há mais dúvida na Natura de que novas frentes de negócios sejam complementares à rede de revendedoras. Há uma referência global de que é possível ter um modelo misto e vencedor: a coreana Amore Pacific, maior fabricante de cosméticos no país e a 14a maior do mundo, abriu a primeira loja há 71 anos, durante a criação da empresa. Em 1964 começou a recrutar viúvas da guerra para fazer parte de seu time de vendas diretas — canal que continua ativo e em crescimento.

A expansão para os países asiáticos se deu principalmente por meio da venda em aeroportos, depois que o neto da fundadora assumiu a presidência da companhia na década de 90. Suh Kyung-Bae é hoje o segundo homem mais rico da Coreia do Sul, atrás apenas do herdeiro da Samsung. Nos Estados Unidos, a companhia chegou em 2003 às lojas de departamentos — hoje está presente em mais de 60 delas. Nos últimos dois anos, o preço das ações quadruplicou e o valor de mercado da companhia chegou a 20 bilhões de dólares.

Apesar de buscar uma nova saída de expansão, a meta de Ferreira é reforçar a relação com sua base de revendedoras, ameaçada por uma avalanche de novas rivais. Boa parte das concorrentes cresceu ao acenar com vantagens comerciais que a Natura nunca ofereceu. É o caso da paulista Hinode, com um portfólio de 450 produtos, como cosméticos, réplicas de fragrâncias de perfumes importados, maquiagem e alimentos. Desde 2012, a Hinode adotou o sistema de marketing multinível, como as americanas Mary Kay, de maquiagem, e Herbalife, de alimentos.

Cada revendedor tem a missão de, além de vender, recrutar novos revendedores e assim passa a ganhar parte dos lucros da equipe. Em quatro anos, o número de consultores da Hinode cresceu de 35 000 para 600 000, e o faturamento de 180 000 reais pulou para 1,3 bilhão de reais, segundo a empresa. As comissões são sempre de 50% sobre o valor do produto — no caso da Natura e da Avon as comissões chegam a 30%. Os melhores revendedores ganham viagens e prêmios, além de dinheiro.

A estratégia de reaproximação com as revendedoras da Natura começou a ser desenvolvida há um ano. A ideia é identificar os perfis de consultoras e propor algo novo a cada grupo. Àquelas com tino mais empreendedor e que estocam os produtos da marca para vendê-los num salão de beleza ou numa lojinha de bairro, a Natura começou a oferecer noções de gestão e marketing.

No ano passado, cerca de 100 consultoras com esse perfil passaram pelo projeto piloto. Ferreira também afirmou que a Natura deve tornar o programa de carreira das consultoras mais atraente, mas ainda não pode revelar o teor dessas novidades.

Ferreira sabe que, para se reconectar às revendedoras, precisará voltar a inovar. Em 2015, a Natura desacelerou o lançamento de novos itens. A empresa colocou no mercado 220 produtos inéditos, 19 a menos do que no ano anterior. O índice de inovação — percentual do faturamento obtido com a venda de produtos lançados nos últimos dois anos — caiu de 67,9% para 58,9%. Diante- da concorrência, retomar o ritmo é necessário — mas não será fácil. Resta saber quanto tempo ele terá para provar que é capaz de chegar lá.

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