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Dominante ou recessivo?

Ainda há tempo para evitarmos a dominância fiscal, mas isso precisa ser feito sem cloroquina econômica

A esquizofrenia de pisar ao mesmo tempo no acelerador fiscal e no freio monetário pode nos levar a uma grave crise (Melpomenem/Getty Images)

A esquizofrenia de pisar ao mesmo tempo no acelerador fiscal e no freio monetário pode nos levar a uma grave crise (Melpomenem/Getty Images)

Publicado em 19 de dezembro de 2024 às 06h00.

Todos os países ricos se parecem, mas cada país pobre é pobre à sua maneira. Instituições inclusivas, bom nível de educação, respeito aos contratos e obediência à sinalização do sistema de preços agrupam grosseiramente os desenvolvidos. E, sem apelar para o determinismo geográfico, clima temperado, saída para o mar, eixo longitudinal, presença de mamíferos, frutas e sementes domesticáveis na origem também dão uma boa dose de contribuição.

Para dar certo, cada um dos trilhos da ferrovia precisa estar alinhado. Basta um deles em más condições para o empreendimento desandar. A pobreza tem várias origens distintas.

O Brasil possui uma particularidade: insiste em não dar certo, sempre do mesmo jeito. Na aplicação do princípio da contraindução de -Mário Henrique Simonsen, repetimos o que deu errado na esperança de um resultado diferente. É uma das definições de loucura.

Desde as mais profundas raízes do Brasil, preferimos a pessoabilidade e a proximidade à frieza da lei e da regra, numa manifestação elementar da predominância de instituições extrativas. Abençoamos o dirigismo e o intervencionismo estatal, enquanto torcemos o nariz para as regras de mercado. Selecionamos a priori amigos do rei e da corte para fazê-los campeões nacionais, ao mesmo tempo que não matamos o que dá errado, perpetuando a baixa produtividade. Impedimos a meritocracia na educação para valorizar o sindicato dos professores. Negligenciamos boas práticas internacionais e a mensuração da eficiência da política pública. Substituímos importações para subsidiar a indústria local, que perde competitividade nas cadeias de suprimento global sem a abertura da economia e o acesso às melhores técnicas e aos melhores insumos.

Criamos uma nova taxonomia: somos o país em que 93% dos magistrados ganham acima do teto constitucional e o PIB cresce muito acima do potencial, sob a máxima de “crescer a qualquer custo” diante do pé na tábua dos gastos públicos. A atividade corrente acelera, assim como a dívida pública — para esta, não há restrição alguma, porque o lobby das gerações futuras ainda não existe no Congresso. Será mesmo que gostamos de nossos filhos e netos? Se sim, por que estamos fazendo com que eles paguem essa conta?

O assunto do momento é a dominância fiscal. Flertamos na prática com a hipótese teórica originalmente formalizada por Thomas Sargent e Neil Wallace no paper Some Unpleasant Monetarist Arithmetic, de 1981.

Entre as várias definições possíveis, gosto daquela que associa a expressão à situação em que os formuladores de política econômica perdem a capacidade de fazer o certo. Sob ela, o Banco Central não consegue mais subir a taxa básica de juro como deveria. O volume da dívida pública é tal que a despesa financeira muito elevada impõe pressão demasiada sobre o endividamento. O maior gasto com juro empurra a trajetória da dívida além do razoável. O capital foge, o câmbio dispara, a moeda perde valor, a inflação escapa bastante da meta, o que deveria forçar nova alta de juro. Cria-se um círculo vicioso. O juro alto, em vez de combater a inflação, acaba acelerando a alta dos preços. As variáveis nominais passam a ter pouca importância. Perde-se a moeda.

Ainda não estamos lá. Faça a Coisa Certa é uma boa recomendação de filme, mas também válida prescrição de política econômica. O Copom acertou ao elevar a taxa Selic em 100 pontos-base, para 12,25% ao ano, e sinalizar outros dois aumentos de igual magnitude. Também fez o certo ao anunciar 4 bilhões de dólares em leilão no mercado. Com isso, reafirmou a efetividade da independência do Banco Central, reancorou um pouco as expectativas de inflação, tirou os excessos do mercado de câmbio, sob volatilidade além da internacional e com pequenas disfunções. Se a âncora fiscal é falha, a monetária ainda funciona.

Crescendo muito além do potencial diante do gasto público muito alto e de um consumo das famílias estimulado pelo elevado volume de transferências de renda, a economia precisa desacelerar, sob o risco de desancoragem adicional das expectativas de inflação ou de um aumento excessivo das importações. Se a demanda agregada cresce mais rápido do que a oferta, este é o corolário: mais inflação e mais déficit em conta-corrente. A era Dilma oferece a evidência empírica ao argumento teórico.

O caminho do aperto monetário e do menor impulso fiscal é adequado para o momento. Há um grande risco, no entanto. À medida que a economia desacelera, cedo ou tarde isso bate no emprego e na massa salarial. Qual é a reação dos formuladores de política econômica? Se não aceitarmos o arrefecimento da atividade e insistirmos no crescimento a qualquer custo, a esquizofrenia de pisar ao mesmo tempo no acelerador fiscal e no freio monetário pode nos levar a uma grave crise.

Não devemos subestimar quanto as coisas podem ficar ruins. A deterioração acontece de forma súbita, em grandes saltos não lineares. A dívida pública, já muito alta, superior à de pares emergentes e com custo elevado, assumiria caráter incontornável, o resto da confiança iria embora, o câmbio dispararia. O ajuste fiscal seria feito via inflação, da pior forma possível, massacrando o pobre, que não consegue se defender em títulos indexados à inflação ou em investimentos em dólar. Sua renda é quase inteiramente destinada à cesta de consumo.

Como em qualquer outra gestão heterodoxa da política econômica, morreríamos em algum tipo de controle de capitais. O Brasil passaria a ser ininvestível. Olhe para os exemplos históricos da Turquia ou da Argentina — em pouco tempo, a moeda local perde 95% de seu valor. Para evitar uma natural suavização do ciclo econômico, contrataríamos uma severa recessão mais à frente, com grande empobrecimento da população.

Ainda há tempo para evitarmos o pior, mas isso precisa ser feito sem cloroquina econômica. O respeito à ciência, à ortodoxia e à aritmética elementar das contas  públicas precisa prevalecer. A alternativa representaria, aí, sim, a dominância fiscal e a seleção de um gene recessivo.

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