Revista Exame

As lições de gestão Jorge Paulo Lemann

O empresário fala sobre sua trajetória e seu estilo de gestão, num depoimento a que EXAME teve acesso com exclusividade

Lemann: a cultura de eficiência atraiu a atenção de Warren Buffett, atualmente seu sócio na Heinz (Divulgação)

Lemann: a cultura de eficiência atraiu a atenção de Warren Buffett, atualmente seu sócio na Heinz (Divulgação)

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Da Redação

Publicado em 14 de fevereiro de 2014 às 12h57.

São Paulo - Hoje mais de 180 000 pessoas em todo o mundo trabalham sob o estilo de gestão forjado pelo senhor da foto acima. Aos 74 anos, o empresário Jorge Paulo Lemann está à frente, junto com seus dois sócios, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, de um império de marcas globais.

Faz parte dele a maior cervejaria do mundo, a AB InBev, a segunda maior rede de lanchonetes do mundo, o Burger King, e uma das maiores fabricantes de alimentos, a Heinz. Esta última foi arrematada em fevereiro deste ano, por 23 bilhões de dólares, com a ajuda do megainvestidor americano Warren Buffett.

Em novembro, Lemann falou sobre sua trajetória e suas crenças nos negócios num evento interno da consultoria Falconi, de Vicente Falconi, em São Paulo, a que EXAME teve acesso exclusivo. A seguir, os principais trechos.

Formação

"Em Harvard, comecei a ter um olho para pessoas. Não gostava da Universidade Harvard quando estava lá. Surfista, tenista, carioca, eu adorava o Arpoador. E, de repente, estava em Harvard. Não era nada confortável para mim. Terminei o curso de economia, nos anos 60, porque minha família achava que era importante.

Minha mãe, filha de um imigrante suíço que se tornou comerciante de cacau na Bahia, teve a oportunidade de estudar fora e era ambiciosa. Ela me tirou da vida de surfista, insistiu para que eu terminasse o curso e abriu meus olhos. Ela sempre me incentivava a fazer coisas maiores.

Em Harvard, vi um mundo muito maior, passei a ler livros que nunca teria lido, de filósofos antigos, coisas desse tipo. E estava num ambiente que pensa grande. Convivia, teoricamente, com algumas das pes­soas mais brilhantes dos Estados Unidos e do mundo. Uma das principais características dos meus negócios foi sempre atrair gente boa e ter um olho bom para as boas pessoas.

Isso também veio um pouco de lá porque eu convivia com os melhores. É como arte: quando você está perto de boa arte, você começa a ter um olho bom para arte. Comecei a ter um olho bom para pessoas porque convivia com a nata da nata.

Penei para passar, suei pra burro, descobri métodos de estudo. Comecei a usar a regra de tentar reduzir todas as disciplinas a cinco pontos essenciais. Eram as coisas básicas que eu tinha de saber bem. Hoje em dia é algo que usamos em nossas empresas.

Todas têm cinco metas essenciais, cada profissional tem cinco metas essenciais. Terminei o curso em três anos, embora normalmente dure quatro. Eu queria ir embora, começar a vida, fazer as coisas.”


Longo prazo

"Para construir algo duradouro, não dá para pensar só no próximo semestre ou no próximo ano. A verdadeira história começa em 1971, dez anos depois que me formei. Antes disso, patinei um pouco. Trabalhei um ano no Brasil. Fui trabalhar no exterior. Quando voltei, me juntei a outras pessoas que também tinham estudado nas melhores universidades americanas para montar uma financeira.

Depois de uns três ou quatro anos, falimos. Foi traumático para mim. Tinha 26 anos, me achava bom mesmo e descobri que não era tão bom assim. Tive ofertas de emprego em empresas grandes, mas preferi ficar no mercado financeiro e tocar um negócio menor, com mais liberdade de atuação e talvez mais chance de crescimento rápido. Comecei de novo.

O Marcel Telles veio logo no início, seis meses depois que eu tinha criado o banco Garantia. Foi contratado como todo mundo naquela época. Era liquidante, tinha de entregar títulos, ir para o “balé do asfalto”, como chamávamos. O Beto Sicupira chegou mais tarde. Era meu amigo, companheiro de pesca. Tivemos sucesso, as coisas cresceram. O Garantia foi construído quando éramos jovens, muito fominhas, não tínhamos dinheiro nem nome.

O foco estava totalmente em resultados. Assim todos ganharam muito dinheiro. Mas, na crise asiática, nos anos 90, o banco levou um tranco. Nunca correu o risco de desaparecer ou coisa desse tipo, mas levou um tranco depois de mais de 20 anos de sucesso. E isso coincidiu com alguns outros fatos.

Estive muito doente em 1994 e fiquei totalmente ausente. E 1994 foi um ano de grande sucesso. Quando estava por lá e ganhava muito dinheiro, aplicava em outras áreas. Em anos anteriores, compramos a rede varejista Lojas Americanas e depois a cervejaria Brahma. Mas o que ganhamos em 1994 foi distribuído.

Ficou todo mundo muito rico e, quando bateu a crise, o banco já não era mais o mesmo. Era um grupo acostumado com lucros de curto prazo e poucos construtores de um sonho maior no longo prazo. A melhor solução para todo mundo naquele momento foi vender o banco.

A Brahma estava pintando como um sonho maior, melhor. Foi triste, de certa maneira, mas foi a melhor solução. E aprendemos que, para construir algo duradouro, você tem de pensar sempre no que vai dar resultado no longo prazo, e não simplesmente no próximo semestre ou no próximo ano.”

Foco

"Não jogue para a plateia. O esporte é importante na vida de qualquer pessoa e ajuda muito nos negócios também. Ao competir, você começa a relacionar o esforço ao resultado. Não tem resultado sem esforço, sem suor. E, quando você perde, tem de parar e analisar a razão para tentar melhorar na próxima vez.


O tênis foi uma das principais influências na minha vida. Tive um professor chileno  que me influenciou muito na maneira que eu vejo as coisas. Ele tinha dois ditados. O primeiro era ‘mucha ropa, poco juego’.

Quer dizer, o cara que aparecia todo bem-vestido e com muitas raquetes, em geral, não jogava nada. O segundo: não jogue para a plateia, mas para ganhar o jogo. Até hoje, muito elogio me deixa preocupado.”

Meritocracia

"Se você não for justo na maneira como avalia as pessoas, a cultura não cola. Construir uma cultura não acontece do dia para a noite. Demora mais de dez anos até que os primeiros trainees pratiquem o que aprenderam, ganhem experiência e estejam prontos para formar a próxima geração.

Estamos sempre tentando escolher gente melhor do que nós. Ninguém é promovido na nossa organização se não tiver alguém tão bom para substituí-lo. Isso gera mais gente boa. Quando fizemos a associação com os belgas e criamos a cervejaria InBev, mandamos 80 brasileiros para lá.

A Ambev tinha 80 brasileiros prontos para exportar, todos vindos desses programas de formação. Depois compramos a cervejaria americana Anheuser-Busch e também tínhamos um exército de gente para mandar para lá e introduzir nossos métodos. 

É fácil falar. Mas, para criar essa cultura de verdade, é preciso conversar com trainees o tempo todo, ver se as pessoas são realmente avaliadas de um jeito meritocrático. Isso demanda um esforço grande, tem de acreditar e buscar ser sempre razoável e justo. Se você não for justo na maneira como avalia as pessoas, a cultura não cola. Não adianta enrolar.

Tem de ser correto, fazer o que fala, dar bom exemplo. É aí que você forma uma cultura capaz de mobilizar 140 000 pessoas, como é o caso da AB InBev hoje em dia. Fico surpreso quando vou à China e converso com trainees que nunca vi antes. Eles falam daqueles mesmos valores que já tínhamos há 30 ou 40 anos. 

Para chegar a esse ponto, você tem de ter uma certa constância e acreditar naquilo que faz. Tem de acreditar porque funciona e dá certo. E tem de melhorar. Tudo que fizemos, aprendemos e demos uma melhorada.”

Estratégia

"A sorte passa na frente de todo mundo. Alguns agarram e outros não. O sonho de comprar a cervejaria Anheuser-Busch existia 20 anos antes de fecharmos o negócio. Perseguíamos o sonho de chegar ao posto de maior cervejaria do mundo. Aí apareceu a oportunidade. Era uma questão de honra.


O mercado financeiro não estava pintando bem, mas não parecia trágico. Fomos em frente. Assumimos uma compra de mais de 50 bilhões de dólares, a maior parte por dívidas, e depois veio a crise financeira.

Nem sabíamos se os bancos que tinham prometido financiamento estariam lá ainda. Mas já estávamos ali, não tínhamos como pedalar para trás. A solução era rodar para a frente mesmo, fazer o melhor possível e sobreviver. Tentar transformar aquilo que era um momento extremamente difícil em algo muito bom.

Foi um transtorno enorme, um pavor durante quase um ano. No fim conseguimos quase dobrar a rentabilidade da cervejaria logo após os dois primeiros anos. E até nos beneficiar de uma situação crítica. Diante da crise financeira, os juros baixaram enormemente. Tínhamos feito a compra de um ativo que rendia bem, que melhorava rapidamente e passamos a pagar juros baixíssimos, num patamar histórico.

Risco faz parte da vida, você tem de correr risco. Já tínhamos feito isso antes, na compra da Lojas Americanas num setor sobre o qual não entendíamos absolutamente nada. Depois compramos a Brahma, um negócio maior.

A mensagem: é preciso correr alguns riscos na vida e o melhor é ir praticando pouco a pouco. No caso da Anheuser-Busch, o risco talvez estivesse num patamar acima do que deveríamos ter aceito. Mas graças a Deus sobrevivemos e estamos aí. Se fosse para correr um risco daquele tamanho novamente, talvez pensássemos melhor diante das circunstâncias gerais do mercado. 

Na vida é preciso ter um pouco de sorte também. Diz o meu guru, Jim Collins, que a sorte existe nos negócios, mas em geral ela sorri para quem está pronto para arriscar um pouco. A sorte passa na frente de todo mundo. Alguns agarram e outros não. Nós tivemos sorte e agarramos a oportunidade.”

Sócios

"Temos aí um bando de gente melhor do que nós hoje em dia. Descobrimos cedo que, numa sociedade, é bom ter pessoas diferentes. Não pode ser todo mundo igual. Pessoas diferentes têm habilidades diferentes. Tem gente que se sai muito bem na retaguarda. Outros são ótimos em vendas.

O Marcel, o Beto e eu temos características diferentes, mas princípios similares. Acreditamos em meritocracia, em atrair o melhor talento. Em manter custos no nível mais baixo possível, até por ser o único elemento de um negócio que você realmente consegue controlar. E basicamente queremos encontrar sempre pessoas melhores do que nós. Temos aí um bando de gente melhor do que nós hoje em dia. 

Sempre tentamos administrar tudo com simplicidade, objetividade. Nada é muito enrolado nas nossas coisas. É preciso ter muita comunicação sempre, todos trabalham em espaços abertos.


Estamos aí, 40 anos depois: nos damos bem, cada um com suas habilidades, e todos aceitam as habilidades do outro. E nossos sonhos grandes sempre foram bastante similares. Nunca estamos satisfeitos, queremos sempre chegar a algum lugar melhor. Por isso vamos tentar continuar.”

Método

"Não teríamos chegado até aqui sem disciplina. Não teríamos conseguido chegar aonde chegamos sem disciplina, algo que o consultor Vicente Falconi trouxe para nós. Viemos do mercado financeiro e nele ganhava-se tanto dinheiro que não era preciso ser muito eficiente. Tínhamos todos aqueles princípios de meritocracia, de não gastar muito. Mas não tínhamos muita racionalidade no método operacional.

E o Marcel foi lá para a Brahma e introduziu os princípios que existiam no banco, de meritocracia, de atrair as melhores pessoas. Mas não tínhamos talento nem disciplina de racionalizar a parte operacional ou dissecar as coisas para ver como poderiam ser feitas mais eficientemente.

Essa foi a grande contribuição do Falconi, que tinha estudado métodos japoneses de just in time e outras coisas. Com 300 pessoas, no máximo, isso não era tão importante no banco Garantia. Numa empresa como a AB InBev, porém, foi essencial.”

Governança

"O conselheiro é um defensor da cultura. O papel dos conselheiros é basicamente representar os acionistas para que a companhia seja melhor lá na frente. O conselheiro é um defensor da cultura. Ele deve escolher quem serão os executivos no futuro e atrair outros conselheiros bons para trabalhar com ele.

Participei de alguns conselhos de grandes empresas com muitos acionistas, sem dono. Francamente, nesse tipo de empresa, o conselheiro é um cara que não sabe muito o que está se passando. Não gostei da experiência. Fui conselheiro da antiga fabricante de produtos de higiene pessoal Gillette, da seguradora Swiss Reinsurance e da montadora DaimlerChrysler. 

No nosso conselho, os integrantes se interessam em saber mais. Quando vamos à China tomamos café com trainees, visitamos o mercado. Tentamos falar com os executivos, mas sem interferir. Por exemplo, nunca falamos com os executivos para dar uma instrução direta a eles.


Se tivermos algum comentário, falamos primeiro com o Carlos Brito, presidente da AB InBev, e ele vai dar a instrução depois. Gostamos de ter a liberdade de saber o que está se passando, ouvir as pessoas e passear um pouco pela companhia. Saber o que está se passando para poder ser um conselheiro melhor.”

Motivação

"As pessoas querem ter um sonho grande. As pessoas gostam de participar de um sonho maior. É prazeroso ser reconhecido pelas pessoas ao redor e se sentir também dono daquilo. É prazeroso ser criativo. Nas nossas empresas, se alguém quiser fazer algo diferente, vamos tentar dar a oportunidade.

As pessoas querem ter um sonho grande, querem participar e obviamente querem ser reconhecidas também. Pode ser financeiramente, mas conheço várias instituições filantrópicas que não remuneram as pessoas, não dão nenhum centavo, só medalhinhas, e o pessoal se mata. É da natureza humana valorizar e querer reconhecimento.”

Cultura

"Copiar é muito mais prático do que inventar a roda. A originalidade de nossa cultura está em misturar uma porção de coisas ­boas que vimos em vários lugares e ter aprimorado todas elas. Copiar é muito mais prático do que inventar a roda. A primeira fonte de inspiração foi o banco Goldman Sachs, porque éramos do mercado financeiro.

O Goldman não era a potência que se tornou depois, mas já era um lugar especial. Nosso sistema de procurar talentos teve origem ali. Esse nosso princípio de que as pessoas têm de ser donas e agir como donas também trouxemos de lá. Depois, copiamos o varejista Walmart.

Ali aprendemos muito sobre eficiência e a manter os custos baixos. Quando íamos visitar o fundador, Sam Walton, conhecíamos dez lojas por dia. Essa foi a maneira que ele criou para saber o que estava acontecendo no dia a dia e para difundir a cultura. Também fomos adeptos de Jack Welch, ex-presidente da multinacional GE.


Líamos tudo o que ele escrevia. Mais tarde surgiu a influência de Jim Collins, um guru de administração, com quem convivemos há mais de 20 anos e que tem grande influência no jeito como tocamos as empresas.”

Filantropia

"Estamos construindo algo para ser duradouro. Comecei a distribuir bolsas informalmente. Devo ter dado umas 500 bolsas e nem sabia mais para quem tinha dado. Aí decidi que era hora de formalizar melhor aquilo. O Beto e o Marcel se juntaram a mim e organizamos a Fundação Estudar. O objetivo inicial era ajudar pessoas que queriam estudar, especialmente no exterior.

Depois passamos a ajudar quem queria estudar aqui também. Os bolsistas começaram a voltar e a formar uma rede de contatos. Vimos que essa rede era tão ou mais importante que o apoio financeiro. Tínhamos eventos em que eles se conheciam, trocavam figurinhas, um encontrava o outro, um ajudava o outro.

Há quase 1 000 bolsistas por aí. Temos reuniões anuais, vários eventos. Ultimamente temos dado bolsas não só para o pessoal que estuda economia ou negócios, abrimos um pouco o leque. Na fundação, assim como em outras atividades, estamos construindo algo para ser duradouro.”

Futuro

"Temos sonhos maiores. No momento estamos digerindo a Heinz. Se tivermos sucesso em colocar a empresa num rumo mais eficiente, de maior retorno, ela se tornará uma plataforma espetacular de expansão.

A Heinz em si pode ser um sonho muito grande, mas nós estamos ainda na fase de digerir a empresa, de torná-la mais eficiente. Estamos lá há poucos meses, e está indo bem. Também temos outros sonhos maiores, mas ainda não dá para falar sobre eles.”

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