Netflix: no primeiro semestre deste ano, assinantes consumiram 94 bilhões de horas de conteúdo (Demaerre/Getty Images)
Repórter Especial
Publicado em 29 de outubro de 2024 às 06h00.
Última atualização em 30 de outubro de 2024 às 09h39.
Quando a primeira temporada de Making a Murderer estreou na Netflix, em dezembro de 2015, nem a plataforma de streaming esperava tamanha repercussão. “Eu definitivamente fiquei surpreso”, disse Reed Hastings, cofundador e então CEO da empresa, em diferentes entrevistas da época. Antes do sucesso, o projeto, que passou 13 anos sendo estruturado pelos criadores, foi rejeitado por outras companhias, incluindo a HBO.
Na Netflix, porém, o material foi transformado em uma série documental com dez episódios que mostram a saga de um homem americano que passou 18 anos preso e foi libertado depois de um exame de DNA provar sua inocência. A produção foi um sucesso instantâneo e um dos primeiros conteúdos virais da plataforma a ultrapassar nichos de espectadores: (quase) todo mundo viu Making a Murderer. Eu também vi.
E, nove anos depois de acompanhar a série, que foi o primeiro conteúdo no estilo true crime ao qual assisti na plataforma, o gênero continua entre as principais recomendações que o streaming me oferece. Isso porque, de lá para cá, foram diversos conteúdos consumidos com a temática, incluindo o sucesso mais recente da plataforma, Monstros: Irmãos Menendez, minissérie de Ryan Murphy que alcançou 12,3 milhões de visualizações em seu fim de semana de estreia, em setembro deste ano.
Uma “bolha de consumo”
Para muitos especialistas da cultura e da tecnologia, o que explica essa fidelidade que desenvolvemos com um gênero específico no streaming, ou mesmo com uma temática nas redes sociais, é uma tecnologia discreta, mas que há anos é o foco de investimento das big techs: os algoritmos.
“Existe uma discussão constante sobre os algoritmos serem os responsáveis por nos manter dentro de uma bolha de consumo. Realmente, eles funcionam como um cercadinho, nos oferecendo cada vez mais sobre um tema de que gostamos”, analisa Carlos Rafael Neves, professor do curso de ciências de dados e negócios da ESPM. “Mas existe um truque: os algoritmos também conseguem diversificar as sugestões com base em análises de usuários com gostos similares aos seus. Então, ocasionalmente, você vai ampliando o seu nicho de consumo, mas sem sair da bolha.”
Fidelização é realmente o porquê de empresas como Meta, Netflix e Spotify, líderes em seus respectivos mercados, investirem pesado na tecnologia para impulsionar os seus negócios. Segundo Kefreen Batista, vice-presidente de tecnologias da consultoria digital Globant, a ideia é que, ao personalizar a experiência do usuário, “essas empresas conseguem aumentar o engajamento e a fidelização, o que se traduz em receitas, seja por meio de assinaturas, seja por publicidade, seja por vendas de conteúdo”.
Decisões orientadas
Dentro das plataformas de streaming e das redes sociais, os algoritmos são utilizados para processar grandes volumes de dados, realizar análises, identificar padrões e tomar decisões com base nessas informações. Com esses insights, as plataformas conseguem entregar conteúdos, anúncios e experiências específicas para cada usuário.
“De forma geral, todos os algoritmos são semelhantes quanto ao seu modus operandi técnico. Funcionam de forma sequencial e com base na análise das repetições do usuário. Mas cada plataforma vai ter as suas particularidades sobre quais informações são analisadas”, explica Neves.
É difícil estimar quanto as big techs investem exatamente no desenvolvimento de algoritmos, uma vez que as empresas não revelam dados tão específicos. Mas é possível ter uma ideia. No caso da Meta, o CEO Mark Zuckerberg revelou recentemente que a empresa deve investir até 40 bilhões de dólares em tecnologia, especialmente em inteligência artificial, até o fim de 2024.
Parte desses investimentos retorna para a empresa na forma de orientações estratégicas. Como destaca o executivo da Globant, da mesma forma que os algoritmos ditam qual conteúdo as plataformas entregarão para um usuário, eles funcionam como uma bússola que, ao identificar tendências e oportunidades de mercado, orienta sobre onde alocar recursos para desenvolvimento e inovação.
“Ao perceber um aumento no consumo de determinado tipo de conteúdo ou funcionalidade, a empresa pode investir em aprimorar essa área ou desenvolver novas ferramentas relacionadas. Isso permite que as empresas inovem e se adaptem mais rapidamente do que concorrentes menos orientados por dados”, conclui Batista.
A Meta usa bastante essa orientação dentro de seus negócios, especialmente com o Instagram. Você lembra como era o seu feed da rede social há cerca de dez anos? Ao abrir o app, provavelmente você veria postagens de amigos e familiares, todas no formato de fotos e em ordem cronológica. A visão é bem diferente da que temos hoje, com conteúdos que mesclam fotos e vídeos de conhecidos, desconhecidos, influenciadores, celebridades e assuntos que a plataforma sabe que agradam ao usuário.
“Ao identificar tendências como o aumento do consumo de vídeos curtos, a Meta direcionou investimentos para aprimorar recursos como o Reels, competindo diretamente com plataformas como o TikTok. Isso conecta a análise algorítmica com a decisão de investir em formatos que mantenham os usuários engajados”, analisa o executivo da Globant.
Rafael Campos, head de marketing para parceiros da Meta na América Latina, conta que, nos últimos anos, a empresa tem feito mudanças estratégicas com foco nos criadores de conteúdo, especialmente para garantir que criadores de todos os tamanhos tenham a oportunidade de alcançar novos públicos dentro do Instagram. “Um exemplo é a introdução de uma nova forma de classificar recomendações, que favorece a distribuição de conteúdo original e dá mais visibilidade a criadores menores”, conta.
O executivo também explica que o Instagram utiliza uma variedade de algoritmos, classificadores e processos para moldar as ferramentas e experiências dentro do aplicativo. “Não existe um único algoritmo responsável por todas as decisões. Cada área do app, como o Feed, o Explorar e os Reels, conta com algoritmos específicos que são projetados para responder à maneira como os usuários interagem com esses recursos”, explica.
As estratégias têm dado certo. Com mais de 2 bilhões de usuários, o Instagram continua crescendo apesar da rivalidade com seu principal concorrente, o TikTok. Segundo a empresa de análise de mercado Sensor Tower, em 2023 a rede social da Meta teve um crescimento de 20% no número total de downloads, somando 768 milhões.
“Esses impactos estão interconectados, criando um círculo virtuoso onde a melhora da experiência do usuário alimenta o crescimento do negócio, que por sua vez permite mais investimentos em tecnologia algorítmica”, ressalta Batista.
Déjà vu cultural
Entre as tomadas de decisões que orientam as empresas, os algoritmos também ajudam a definir as próprias produções culturais. Desde os seus primeiros conteúdos originais, a Netflix utiliza os dados coletados na plataforma para decidir quais programas e filmes produzir, quais devem ou não ser renovados e com quem eles devem ser compartilhados.
Segundo a companhia, no caso de House of Cards, o primeiro grande hit original da plataforma, a companhia já esperava que a produção seria um sucesso, justamente porque o seu algoritmo havia previsto a popularidade do conteúdo entre os assinantes. Antes mesmo de criar o roteiro, a tecnologia da plataforma indicou o interesse de muitos espectadores por produções com temática política e informou, inclusive, que David Fincher era o nome ideal para produzir e dirigir a série.
Os insights do algoritmo deram certo: em seu lançamento, House of Cards foi a série mais vista nos Estados Unidos e em outros 40 países. Alguns especialistas afirmam que esse hiperfoco na personalização é, na verdade, um problema para a indústria cultural. No livro Filterworld: How Algorithms Flattened Culture, o jornalista e crítico cultural Kyle Chayka afirma que as recomendações algorítmicas alteraram fundamentalmente a forma como consumimos música, cinema, artes visuais, literatura, moda, jornalismo e até comida.
Para ele, os algoritmos não apenas influenciam o que vemos ou ignoramos mas criam um tipo insosso de déjà vu cultural, no qual estamos sempre consumindo conteúdos semelhantes. “A cultura dos algoritmos é, em última análise, homogênea”, escreve Chayka, “marcada por um senso generalizado de mesmice, mesmo quando seus artefatos não são literalmente os mesmos”.
Podemos ver coisas vindas de diferentes fontes de conteúdo, diz ele, mas elas são cada vez “mais do mesmo”. Isso, portanto, seria o oposto da personalização que as plataformas de streaming e as redes sociais prometem, observa Chayka.
Francisco Chang, VP sênior para a América Latina da Kore.ai, concorda com Chayka. “À medida que mais empresas adotam a personalização, há o risco de saturação. Quando tudo é personalizado, a diferenciação se torna mais difícil, e as expectativas dos consumidores aumentam. As empresas precisam encontrar maneiras de oferecer personalização de valor que vá além do básico e realmente ressoe com as necessidades individuais dos usuários.”
Historiador e autor de best-sellers como Sapiens: Uma Breve História da Humanidade e 21 Lições para o Século 21, Yuval Noah Harari é ainda mais crítico sobre a influência dos algoritmos na cultura. “Eles têm o poder de manipular seus sentimentos e substituir completamente as suas decisões. No TikTok e no Facebook, é um algoritmo que decide quais mensagens receberão mais atenção. E isso molda a opinião pública, a cultura humana”, disse recentemente em entrevista ao jornal espanhol La Vanguardia.
Milhares de usuários, bilhões de dados…
Em setembro, a Netflix revelou em seu Relatório de Engajamento, com dados do primeiro semestre, que os seus assinantes consumiram um total de 94 bilhões de horas de conteúdo na plataforma durante o período. No documento, a empresa atribui o número ao sucesso de suas histórias que, segundo ela, têm mantido os assinantes engajados e satisfeitos — no total, são mais de 18.000 títulos entre filmes, séries e reality shows no streaming.
Anteriormente, ao divulgar os resultados do segundo trimestre de 2024 em julho, a Netflix informou que atingiu a marca de 277,7 milhões de assinantes globalmente. A empresa adicionou mais de 8 milhões de assinantes no segundo trimestre, superando as expectativas de analistas que projetavam metade desse número para o período.
Desde o ano passado, quando implantou uma nova política de cobrança pelo compartilhamento de senhas e um plano mais barato subsidiado por anúncios, a companhia vê o número de assinantes crescer consideravelmente a cada balanço: foram 13,1 milhões de novos usuários no último trimestre de 2023 e 9,3 milhões nos primeiros três meses de 2024.
No caso do Spotify, os números são ainda maiores. De acordo com o último balanço da empresa, divulgado em julho, o streaming de áudio totalizou 626 milhões de usuários ativos mensais (gratuitos e pagos). O número representa um aumento de 14% em relação ao mesmo período de 2023 e alta de 2% em relação aos três primeiros meses do ano.
Desse total de usuários, 246 milhões são assinantes da versão premium da plataforma, número 12% maior em relação ao mesmo período de 2023.
E o dinheiro?
Apesar dos números superlativos, gerar lucro não é tão simples para essas companhias. Por muito tempo, a estratégia de negócios das empresas com base em algoritmos era bastante clara: crescimento, aceleração e domínio. Para conquistar os usuários, essas companhias gastaram bastante para oferecer testes gratuitos ao público, criar campanhas de marketing icônicas, encorpar o seu catálogo de produtos e investir muito em pesquisa, desenvolvimento e aprimoramento de seus algoritmos.
A teoria era de que o lucro viria em escala, juntamente com os usuários. Criou-se, então, uma corrida para atingir essa magnitude. No entanto, alcançar milhares de pessoas mostrou não ser exatamente uma garantia para gerar rentabilidade. O streaming continua sendo um negócio caro e com baixa receita por assinante. “Essa é uma equação realmente difícil de fechar, especialmente porque o custo operacional dessas empresas é surreal”, analisa Neves.
O Spotify, por exemplo, está há 18 anos no mercado, mas caminha para ter o seu primeiro ano de lucro apenas agora em 2024. Em declaração no início do ano, a empresa revelou que paga cerca de 70% de sua receita aos detentores de direitos autorais. O valor teria triplicado nos últimos seis anos, segundo a empresa, e em 2023 totalizou 9 bilhões de dólares em pagamentos da plataforma à indústria musical.
O ano de 2024 pode representar uma virada nesse cenário para o Spotify. Somando os dois primeiros trimestres do ano, a companhia, avaliada em 74 bilhões de dólares, teve mais de 500 milhões de dólares em lucro líquido registrado. A projeção de Wall Street é de que mais 630 milhões de dólares sejam somados no segundo semestre, o que faria a companhia finalmente ter o seu primeiro ano lucrativo.
Essa lucratividade está diretamente ligada aos assinantes premium do serviço. Para o CEO do Spotify, Daniel Ek, o atual bom momento da empresa se deve aos aumentos de preços em todos os principais mercados e à expansão de “ofertas de assinatura para consumidores que podem estar procurando por diferentes tipos de conteúdo”, como destacou o executivo durante a teleconferência de resultados do segundo trimestre.
A companhia também fez mudanças importantes, incluindo diversas demissões entre 2022 e 2023. A meta é atingir 1 bilhão de assinantes até 2030.
Uma vitória parcial
E 2024 também parece ser o ano em que a Netflix “reviveu” financeiramente para o mercado. Em janeiro, o Bank of America chegou a dizer que a companhia “venceu a guerra do streaming”, especialmente comparando a empresa com players tradicionais que tentam rivalizar com ela, como a Disney e a Warner. “Nem todas as empresas de mídia serão capazes de alcançar o nível global e a escala da Netflix em streaming”, escreveu a analista Jessica Reif Ehrlich.
Um dos grandes gargalos da companhia ao longo dos anos tem sido o alto custo de suas produções originais: em 2022, no auge dos gastos, o orçamento do streaming bateu 26 bilhões de dólares. O ano de 2022 foi crítico para a companhia. Depois de dez anos apresentando um crescimento que a tornou uma queridinha de Wall Street, a Netflix surpreendeu o mercado ao anunciar que estava perdendo milhares de assinantes.
O período marcou o início de uma mudança estratégica que acabou expandindo a liderança da Netflix sobre outros streamings. Desde que passou a proibir o compartilhamento de senhas, no ano passado, o preço das ações da empresa subiram mais de 300%, estabelecendo novos recordes para a companhia.
Com a recuperação, a Netflix lançou um negócio de anúncios do zero, investiu em sua divisão de games e expandiu as experiências ao vivo em torno de programas populares, como Bridgerton e Round 6. Tudo isso enquanto a empresa também passava por uma grande mudança de gestão: Reed Hastings se aposentou como executivo-chefe em 2023 e foi substituído por Greg Peters, que divide o papel com Ted Sarandos.
O resultado foi positivo. No último trimestre, as margens operacionais da empresa aumentaram para 27,2%, um ganho de 4,9 pontos percentuais ano a ano.
Novos desafios para o lucro
Apesar do cenário, a alta avaliação da Netflix tem levantado discussões sobre ações supervalorizadas e avaliações esticadas, especialmente porque a empresa mantém uma margem bruta (a diferença entre sua receita e o custo dos produtos vendidos) de 44%. Em comparação, a margem bruta da Meta, por exemplo, foi de 80% no ano passado.
Não ajuda a Netflix ter informado recentemente que, a partir do ano que vem, não vai mais publicar seu número de assinantes. Aos acionistas, Peters justificou a decisão dizendo que ela “reflete a evolução do negócio e é consistente com a forma como gerenciamos internamente o engajamento, a receita e o lucro”.
A chegada da IA generativa também representa um desafio para as plataformas com base em algoritmos. Neste ano, a Netflix adicionou a inteligência artificial generativa à lista de possíveis fatores de risco em seu relatório anual.
“Novos desenvolvimentos tecnológicos, incluindo o desenvolvimento e o uso de inteligência artificial generativa, estão evoluindo rapidamente. Se nossos concorrentes obtiverem vantagem ao usar tais tecnologias, nossa capacidade de competir de forma eficaz e nossos resultados operacionais poderão ser afetados negativamente”, diz o texto.
Para Kefreen Batista, da Globant, o receio da Netflix tem fundamento. “Acredito que veremos mais integração da IA e aprendizado de máquina para proporcionar experiências mais imersivas e interativas, incluindo recomendações ainda mais precisas, conteúdos adaptativos e a incorporação de tecnologias como realidade aumentada e virtual”, analisa.
As tentativas de órgãos como a União Europeia para aumentar as regulações digitais, com foco em aumentar a segurança sobre os dados dos usuários, também representam um impasse para as empresas com base em algoritmos. Para os especialistas, quanto mais as empresas pretenderem lucrar, mais elas apostarão no aprendizado de máquina. “Quanto mais dados essas empresas tiverem, melhores serão os resultados que elas emitirão”, observa Chayka.
O resultado da briga entre big techs e regulamentação é bastante incerto, mas o professor da ESPM tem sua aposta: “Para essas companhias, revelar todos os dados que os seus algoritmos analisam é revelar os seus segredos empresariais. É como oferecer o passo a passo de uma receita de bolo para os concorrentes. Isso dificilmente vai acontecer”.
Para Chang, mesmo que a transparência sobre o uso de dados não seja total, ela deve aumentar nos próximos anos. “O futuro da personalização será definido por aqueles que conseguirem equilibrar inovação com responsabilidade. As empresas que forem capazes de oferecer experiências personalizadas que respeitem a privacidade e a ética estarão em uma posição privilegiada para liderar essa nova era de interações digitais.”