Revista Exame

A fuga da humanidade da miséria - entre ricos, a estagnação

A humanidade deu um salto em direção à prosperidade do século 19 para cá. Mas, nos países ricos, o progresso das classes médias estagnou e a concentração de poder cresce

Sem-teto nos Estados Unidos: a maior economia do mundo tem desigualdade alta  (Justin Sullivan/Getty Images)

Sem-teto nos Estados Unidos: a maior economia do mundo tem desigualdade alta (Justin Sullivan/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 6 de janeiro de 2014 às 05h00.

São Paulo - Em 1944, em um campo alemão de prisioneiros de guerra, ocorreu uma fuga em massa de 76 soldados das forças aliadas, que conseguiram cavar um túnel para escapar. A busca pelos fugitivos levou semanas, mas quase todos, com exceção de três, foram recapturados, e 50 terminaram mortos em um fuzilamento sumário feito pela Gestapo.

A aventura virou livro e, na década de 60, um filme hollywoodiano de sucesso, com astros da época, como Steve McQueen. Ela também serviu de inspiração para o novo livro de Angus Deaton, professor de economia da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos.

Famoso na academia, mas pouco conhecido do grande público, Deaton usou o filme como metáfora de outra história — a porta de saída da miséria, aberta desde a Revolução Industrial, permitiu que cerca de 80% da humanidade escapasse da pobreza absoluta.

No mesmo período de 200 anos, a população dos países ricos atingiu níveis de afluência impensáveis até para reis que viveram antes desse tempo. A expectativa de vida nessas nações dobrou, e a mortalidade infantil, que ceifava a vida de cerca de um terço das crianças, caiu para quase zero.

Tal trajetória aos poucos é imitada pelos paí­ses em desenvolvimento. Mas, como em toda boa trama, há nuances e riscos. Um bilhão de pessoas no mundo ainda são miseráveis e, nos Estados Unidos, país símbolo do sucesso econômico e da mobilidade social, o progresso das classes média e pobre estagnou, enquanto os ricos dispararam na concentração de renda.

O fenômeno não é exclusividade americana. Países como China e Índia, de rápida expansão nas últimas décadas, também se tornaram mais desiguais.

No livro The Great Escape: Health, Wealth, and the Origins of Inequality (algo como “A grande fuga: saúde, riqueza e as origens da desigualdade”), Deaton faz de maneira acessível ao grande público uma culta descrição do salto humano, impensável antes do século 19, em direção à prosperidade e à saúde. E reflete se a porta continua aberta para aqueles que ainda são pobres ou se a desigualdade está aumentando.

Há dois lados da desigualdade de renda, um bom e outro ruim, segundo o autor. A parte positiva é que, sem alguma desigualdade, não há progresso. O crescimento do padrão de vida está ligado a novas tecnologias, e elas não surgem de forma bem distribuída entre os paí­ses ou ao longo do tempo.


Costumam acontecer em uma área definida, como a indústria da Inglaterra no século 19 ou as startups do mundo digital do Vale do Silício no fim do século 20. A difusão de novas tecnologias demora, não só pela velocidade de compartilhamento das novas ideias mas também porque é preciso infraestrutura e capital humano para utilizá-las.

A teoria do germe, um dos exemplos do livro, surgiu no fim do século 19 e estabeleceu que microrganismos eram a causa das doenças infecciosas. Ela gerou uma revolução em saneamento nos países ricos e, em seguida, no mundo. Entretanto, essas melhorias ainda hoje não alcançam 30% da população mundial.

Mais lobistas

O lado ruim da desigualdade é concentrar o poder político com a renda, um fenômeno americano intensificado nos últimos 30 ou 40 anos. Entre os indícios, a fatia de trabalhadores do setor privado que era sindicalizada diminuiu de 24%, em 1973, para 6,6%, em 2012.

Na direção oposta, o número de lobistas de grandes empresas registrados na capital americana, Washington, cresceu de 175, em 1971, para 2 500, em 1982. Por fim, a renda dos 5% mais ricos, em 1966, era 11 vezes maior do que a dos 20% mais pobres. Em 2010, essa proporção havia subido 21 vezes.

Deaton afirma que o fenômeno tem um lado interessante. Há 100 anos, 90% da renda dos americanos mais ricos derivava de dividendos. Hoje, 75% dela vem de salários. Os ricos contemporâneos trabalham e chegaram lá porque têm mais educação. “Se o sistema educacional se tornar flexível o suficiente para produzir novas habilidades tão rapidamente quanto elas se tornam necessárias, o aumento da desigualdade deverá chegar ao fim”, diz Deaton. 

No contexto brasileiro, sua análise dá calafrios, porque implica que temos um longo caminho na contramão de uma tendência que parece mundial. A despeito da melhoria recente na distribuição de renda, o Brasil conserva os mesmos vícios de origem: renda desigual ao extremo, Justiça cara e educação pública de baixa qualidade. Nossa fuga, na melhor das hipóteses, ainda levará tempo.

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