A erosão da verdade
A imprensa tradicional pode contribuir para reduzir a polarização e seu próprio declínio. E ajudar a democracia
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(Ilustração/Getty Images)
Publicado em 18 de junho de 2020, 05h30.
Última atualização em 12 de fevereiro de 2021, 12h36.
As guerras e as pandemias mudam o mundo. As mudanças chegam em ritmo acelerado, trazendo enormes desafios, especialmente em um mundo polarizado e conectado. As medidas de resgate econômico tomadas pelo governo e os danos causados pela paralisação econômica nos colocaram em uma estrada árdua, ainda mais íngreme e que requer a colaboração de toda a sociedade. Mais do que nunca, o esforço conjunto é necessário e é importante uma autoavaliação crítica, para não repetirmos os erros e contribuirmos como deveríamos.
Nesse processo, a contribuição da imprensa é fundamental — amplificando e dando ressonância às pautas da nação, questionando políticas públicas, denunciando erros, apontando inconsistências de maneira isenta, ressaltando fatos e análises. Temo que, sem a devida atenção ao fenômeno da erosão da verdade, estudado pela pesquisadora Jennifer Kavanagh, da Rand Corporation, e autora do livro Truth Decay, será difícil para a imprensa cumprir o fundamental papel que lhe cabe.
Em meio a toda essa cacofonia cognitiva, é quase impossível identificar causas, estabelecer diagnósticos e remédios num ambiente de constante guerra de narrativas, em que opiniões e fatos têm fronteiras tênues ou inexistentes. Na guerra de narrativas, a imprensa tradicional foi pega no meio de uma aguda crise financeira, com seu modelo de negócios em xeque, suas receitas diminuindo, a migração para o modelo digital acontecendo e o pânico causado pelas incertezas.
Para lidar com o imenso fluxo de informações gerado pela internet, a solução encontrada pela imprensa tradicional foi se concentrar em interpretações e opiniões, afastando-se de seu papel de provedora de fatos e análises. À medida que perdia credibilidade, seus problemas financeiros se agravaram, e um círculo vicioso se criou. Na guerra de narrativas, a imprensa tradicional teve sua credibilidade abalada, e sem isso é difícil atrair clientes dispostos a pagar por um conteúdo de qualidade.
Em seu livro Davi e Golias, o jornalista Malcolm Gladwell aborda de maneira brilhante como adversários descomprometidos com o statu quo podem desenvolver estratégias e táticas de guerra criativas, que deixam o inimigo completamente impotente, por não perceber que as regras mudaram e que o jogo mudou.
Aconteceu em 2016 na eleição de Donald Trump. A imprensa tradicional foi pega de surpresa e não entendeu que o candidato Trump havia rasgado o manual das campanhas ao ir contra cada regra estabelecida e, ao contrário do que se esperava, aumentava sua visibilidade e seu apoio junto aos descontentes. Após incontáveis denúncias de todos os tipos, Trump chegou a dizer que poderia atirar em alguém na 5a Avenida e sua popularidade não seria abalada. A imprensa tradicional reagia com indignação, como se isso fosse suficiente para frear o candidato. Seria... sob as regras antigas, mas o jogo tinha mudado e Trump havia definido as novas regras.
Em seu livro, Gladwell cita como os ingleses ficavam indignados com o ataque a seus oficiais, algo proibido pelo acordo feito entre as grandes potências europeias e solenemente desconsiderado pelos revolucionários americanos, que os abatiam como patos num lago.
As regras mudaram e, a meu ver, a imprensa tradicional ainda não entendeu isso e tende a repetir seus erros na guerra de narrativas. Há 20 anos, uma autoridade ser pega em uma mentira seria embaraçoso e isso teria um alto custo. Hoje, com o exército de robôs a disseminar narrativas conflitantes, dúvidas são plantadas e, como há mais opiniões do que fatos e análises, é uma questão de tempo para o efeito da denúncia se diluir.
Como os revolucionários americanos, que simplesmente desconsideravam as regras do Velho Mundo, os políticos atuais se defendem com campanhas de contrainformação. A indignação da imprensa tradicional só aumenta a exposição deles e abre espaço para contra-ataques mais virulentos, aumentando o ruído.
É quase impossível extinguir esse círculo vicioso quando não existe um consenso sobre os fatos mais básicos. A imprensa tradicional pode (e deve) combater a erosão da verdade, comprometendo-se e promovendo fatos e análises, deixando claro quando sua posição reflete opinião e definindo claramente a fronteira entre uma coisa e outra. Ciente de que seus leitores são impactados pelo próprio viés de confirmação, ou seja, pela busca seletiva de informações que atestem a própria crença, não existe remédio além de fatos e análises, fatos e análises, repetidos como um mantra!
A guerra de narrativas cria um denominador comum muito baixo, empobrece as discussões, quase elimina a busca por soluções racionais, baseadas em dados e na ciência, provocando uma paralisia política que agrava nossos problemas. Não podemos esquecer que somos um país que lê pouco. E, sem leitura, educação e senso crítico, temos um ambiente fértil para a erosão da verdade.
O ressurgimento do Washington Post com foco no jornalismo investigativo e de qualidade, e com um apego ferrenho aos fatos e análises, mostra que é esse o caminho a seguir. Com ele, o populismo mostra os pés de barro, e a imprensa tradicional, além de atrair clientes que paguem por conteúdo de qualidade, cumpre seu papel como um dos pilares da democracia.
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