Robô em hospital no México: máquinas inteligentes auxiliam no tratamento de pacientes com covid-19 (Claudio Cruz/AFP/Getty Images)
Da Redação
Publicado em 12 de fevereiro de 2021 às 08h00.
“Há décadas em que nada acontece. E há semanas em que décadas inteiras acontecem.” Foi assim que Roy Schoenberg, fundador e presidente da Amwell, empresa que oferece tecnologia de teleconsultas médicas, definiu o impacto do coronavírus na digitalização da medicina. “Estávamos esperando a queda de um raio e, infelizmente, ela veio.”
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A oportunidade de aumentar a eficiência da saúde é discutida há muito tempo, mas o progresso nunca acompanhou o de outros setores. Nos Estados Unidos, antes de consultas médicas, os pacientes ainda têm de preencher à mão uma pilha de formulários, que depois serão digitados. Quer encontrar aparelhos de fax ainda em uso? Basta ir a um hospital da maior economia do mundo, onde fichas médicas são transmitidas por uma tecnologia que ficou obsoleta há quase 30 anos.
A pandemia do coronavírus — o raio descrito por Schoenberg — colocou em primeiro plano as muitas deficiências do setor. Nada vai acontecer do dia para a noite, mas a boa notícia é que, depois de uma longa hibernação, a medicina e a saúde estão se preparando para chegar ao século 21.
O impacto mais visível foi no uso das teleconsultas. Com uma simples conexão de internet, centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo passaram a buscar o atendimento à distância para problemas de rotina.
Na Cleveland Clinic, um dos centros médicos mais respeitados dos Estados Unidos, o número de atendimentos virtuais saltou de 3.000 para mais de 60.000 por mês na fase inicial da pandemia.
No Brasil, a telemedicina só foi liberada em caráter emergencial em março passado, mas a procura também foi expressiva. “No auge, quando as pessoas estavam com mais receio de sair de casa, de 15% a 20% de nossos atendimentos foram feitos online”, diz Renato Velloso, presidente da Dr. Consulta, uma rede de 45 clínicas de atendimento ambulatorial na região metropolitana de São Paulo.
Hoje, esse número caiu, pois os pacientes gostam de estar na presença física do médico, afirma Velloso. “Mas costumo brincar que é a briga do Uber contra os táxis. A telemedicina veio para ficar.”
Com base em uma análise dos pedidos de reembolso feitos a seguradoras americanas, a consultoria McKinsey estimou que 20% das visitas a prontos-socorros e 24% de todas as consultas presenciais poderiam ser resolvidas com uma chamada de videoconferência.
Esse impacto vai muito além da pandemia, pois a economia de tempo e dinheiro com deslocamentos é um número raramente incluído quando se calcula o custo da medicina — sem falar, é claro, na parcela da população que tem problemas de mobilidade.
Mas a transformação digital vai muito além do atendimento via Zoom. A McKinsey também calcula que todas as áreas ligadas à medicina digital movimentaram globalmente 350 bilhões de dólares em 2019 e vão chegar a 660 bilhões em quatro anos.
Até o fim da década, o negócio da medicina digital — que inclui a telemedicina e também automatização do fluxo de informações, aparelhos inteligentes para acompanhamento de pacientes, uso de inteligência artificial em diagnósticos e assim por diante — deve superar 1 trilhão de dólares.
Em meados de dezembro, a holandesa Philips anunciou a aquisição da americana BioTelemetry por 2,8 bilhões de dólares. A BioTelemetry desenvolveu um equipamento portátil usado por mais de 1,2 milhão de pessoas para monitorar o coração. Os dados são enviados em tempo real para os servidores da empresa, que processa mais de 4 bilhões de batimentos cardíacos por dia usando sistemas de inteligência artificial.
O objetivo é detectar arritmias e outros problemas que possam representar risco à saúde. O CEO da Philips, Frans van Houten, afirmou que a aquisição faz parte da estratégia de oferecer produtos “para os hospitais e para as casas”.
Ou para os pulsos. Há alguns anos surgiram os primeiros aparelhos pessoais para contar passos, como o Fitbit. Hoje, esses relógios inteligentes, como o Apple Watch, são equipados com sensores que medem a oxigenação do sangue, a frequência cardíaca e são capazes até mesmo de realizar eletrocardiogramas.
O objetivo principal é permitir um monitoramento da performance atlética, mas os usos podem ser muito mais amplos e têm consequências importantes para a medicina preventiva.
Em 2019, a Apple realizou, em conjunto com a escola de medicina da Universidade Stanford, o maior estudo virtual da história. Mais de 400.000 usuários do Apple Watch concordaram em submeter seus dados de batimentos para análise.
O objetivo era identificar possíveis fibrilações atriais, um tipo comum de arritmia. Em janeiro deste ano, a Apple anunciou outro estudo clínico, em parceria com a empresa Biogen, para a detecção de problemas cognitivos, com a ajuda do relógio e do smartphone.
O poder da combinação de sensores sempre conectados à internet com software na nuvem só começa a mostrar o impacto potencial na saúde. A Livongo Health, empresa do Vale do Silício que desenvolve aparelhos para monitoramento contínuo de doenças crônicas como diabetes, foi adquirida em agosto passado pela Teladoc Health, companhia especializada em telemedicina. O tamanho do negócio — 18,5 bilhões de dólares — não deixou dúvidas sobre a expectativa em relação ao futuro digital da medicina.
Depois de anos ofuscadas por empresas puramente digitais ou de serviços baseados na internet, as startups de medicina digital estão passando por um boom. A consultoria CB Insights aponta um número recorde de investimentos de risco em companhias iniciantes desse setor.
Nos primeiros nove meses de 2019, foram realizados 326 aportes em startups de telemedicina. No mesmo período do ano passado, o número passou para 454. O valor registrado no terceiro trimestre de 2020 também foi recorde: 2,8 bilhões de dólares, o dobro em relação ao ano anterior.
Um exemplo de negócio que atrai interesse dos investidores é a israelense TytoCare, que já recebeu 107 milhões de dólares em capital de risco. A companhia desenvolveu um aparelho portátil que é capaz de auscultar o coração, o abdome e os pulmões e investigar a garganta e o canal auditivo (o usuário recebe orientação para realizar esses exames remotamente).
A TytoCare já fechou parceria com mais de 150 empresas de saúde nos Estados Unidos, e o dispositivo também pode ser comprado no varejo por 299 dólares.
Uma startup fundada por brasileiros e baseada em Nova York quer levar a ideia dos exames caseiros ainda mais longe. A Ponto Care, que começa a operar em fevereiro, vai realizar exames mais complexos onde o paciente estiver. “A ideia é resolver dois problemas. O primeiro é o da conveniência, pois a clínica vai até você”, diz Cláudio Garcia, diretor de operações da empresa. “O segundo é o da mobilidade.
Na cidade de Nova York, 14% da população tem problemas que dificultam a locomoção, de obesidade a idade avançada. Existe até mesmo uma indústria de transporte dessas pessoas para clínicas e hospitais.”
A Ponto Care vai se concentrar inicialmente em Nova York. A principal inovação da companhia é a adaptação dos equipamentos médicos para o transporte. A empresa criou um equipamento — mais ou menos do tamanho de um frigobar — que pode ser transportado numa van e que conta com a ajuda de robôs para subir escadas, pois três quartos dos edifícios da cidade não têm elevador.
O sistema também conta com conexão 5G: “Não dá para pedir a senha do Wi-Fi para os pacientes”, diz Garcia. O foco inicial será em exames oftalmológicos, e a ideia é expandir para testes cardíacos e de cuidados primários. “Mas o potencial é enorme: pulmonologia, oncologia e assim por diante.” Fundada em 2019, a Ponto Care, por enquanto, só recebeu recursos dos próprios fundadores e de investidores anjos.
Outra área da medicina que está mais longe dos olhos dos pacientes, mas que é igualmente importante para o setor da saúde, é o desenvolvimento de novas medicações. A sino-americana XtalPi é uma das startups observadas mais de perto no nascente campo da inteligência artificial aplicada à descoberta de moléculas potencialmente promissoras para a indústria farmacêutica.
De acordo com um estudo divulgado no ano passado, o custo de desenvolver um novo remédio (considerando dados de 2009 a 2019) foi de quase 1 bilhão de dólares. Economia de tempo significa potencialmente uma enorme redução de custos, e esse é o negócio da XtalPi.
A empresa usa técnicas de machine learning para realizar simulações digitais — reduzindo os prazos entre a concepção e os testes clínicos. Num comunicado, o fundador e presidente da startup, Shuhao Wen, afirma que “a inteligência artificial é a chave para resolver o desafio da produtividade da indústria farmacêutica”.
O Vision Fund, do banco japonês SoftBank, liderou há quatro meses um grupo de investidores de risco que apostou 320 milhões de dólares na ideia.
O passo seguinte, que são os testes clínicos, também caminha para a digitalização. Tradicionalmente, o acompanhamento das populações testadas era realizado presencialmente. A ideia de descentralização — com a ajuda de smartphones, apps e aparelhos de monitoramento remoto — é outro conceito antigo, mas que ganhou força no último ano.
A Medable, startup fundada na Califórnia, desenvolveu um sistema para desenhar, recrutar participantes e coletar dados de testes clínicos. No ano passado, por causa da pandemia do coronavírus, as receitas da companhia quintuplicaram.
É impossível desviar a atenção do custo humano da pandemia — 2 milhões de mortos e 92 milhões de infecções no mundo inteiro até o fechamento desta edição. Mas, como se viu com o desenvolvimento em tempo recorde das vacinas, a ciência nos dá motivos para ter esperança.
Num artigo recente, Eric Topol, médico e pesquisador do Scripps Research Institute, aponta que a pandemia acelerou a transição para um modelo de saúde entregue remotamente, que incorpora os benefícios das tecnologias digital e de dados. “Não será a solução da crise atual, mas será uma de suas consequências duradouras”, diz o pesquisador.