Tênis de borracha amazônica e algodão do Ceará conquista a Europa
Marca fundada por franceses usa borracha extraída de seringueiras nativas do Acre e algodão orgânico cultivado por pequenas comunidades rurais do Ceará.
Mariana Desidério
Publicado em 31 de dezembro de 2016 às 08h00.
Última atualização em 31 de dezembro de 2016 às 08h00.
Confortáveis e cheios de estilo, os tênis da marca franco-brasileira Vert (ou Veja, como é chamada na Europa) estão longe da perfeição quando o assunto é sustentabilidade .
Não é qualquer empresa que tem coragem de listar seus pontos fracos no próprio site (e-commerce) da marca. Mas é exatamente isso que fazem os franceses François-Ghislain Morillion e Sébastien Kopp, fundadores da Vert Shoes.
Transparência é um dos atributos que eles querem ver associados aos tênis que escolheram fabricar no Brasil utilizando borracha extraída de seringueiras nativas do Acre e algodão orgânico cultivado por pequenas comunidades rurais do Ceará. Tudo feito dentro das regras do comércio justo (fair trade) – a principal delas é o contato direto entre o produtor e o comprador, eliminando a dependência de atravessadores.
Os dois franceses, amigos de infância, percorreram muito chão até 2005, quando tiraram de uma pequena linha de produção, no polo calçadista do Vale dos Sinos, no Rio Grande do Sul, os primeiros 5 mil pares de tênis com design urbano parisiense.
Cerca de um ano antes, eles haviam se demitido do emprego no mercado financeiro de Wall Street, em Manhattan, nos EUA, para mergulhar em um período sabático. Deram quase uma volta ao mundo em busca de um negócio inovador que lhes desse satisfação. Pesquisaram China, Índia, África do Sul e Brasil.
O destino dos futuros empresários começou a se definir quando, no Rio de Janeiro, conheceram a ecoempreendedora Bia Saldanha – ela se estabeleceu no Acre nos anos 1980/1990 e apresentou ao mundo o couro vegetal, uma matéria-prima produzida por seringueiros na Floresta Amazônica que ganhou fama internacional ao ser usada em coleções de grandes marcas da moda, como a francesa Hèrmes.
Em Rio Branco, Saldanha apresentou Morillion e Kopp ao químico e professor da Universidade de Brasília (UnB) Floriano Pastore, que há cerca de 20 anos desenvolve tecnologias para agregar valor ao látex nativo e com isso aumentar trabalho e renda dos seringueiros da floresta.
Diante da certeza de que os trabalhadores de Curralinho (AC) conseguiriam fornecer uma produção regular de folha defumada líquida – a borracha já processada naturalmente dentro da floresta e apropriada ao solado dos tênis –, os dois amigos começaram a acreditar que tinham finalmente encontrado o lugar certo e o negócio que queriam.
A comunidade que lhes forneceria o algodão livre de agrotóxicos estava do outro lado da floresta, já na Caatinga. Foi encontrada por intermédio do projeto Dom Helder Camara, em Tauá, no Ceará.
O couro, que completa o trio dos principais insumos usados na confecção dos tênis, tem uma cadeia mais complexa quando se busca sustentabilidade.
Segundo o diretor comercial da Vert no Brasil, Leandro Elias Miguel, é possível à empresa garantir que o material não provém de fazendas em regiões desmatadas da Amazônia, mas ainda não foi possível abrir um canal direto com os pecuaristas para garantir, por exemplo, bons tratos no manejo dos rebanhos.
A Vert consegue fazer o acompanhamento do couro a partir de sua chegada ao curtume. Para curtir as peles, em lugar dos sais de cromo, altamente tóxicos para o meio ambiente e para quem os manipula, a Vert utiliza o tanino vegetal à base de extrato de acácia.
Desde 2005, a empresa, cuja sede fica em Paris, já comprou 75 toneladas de borracha nativa da Amazônia e 120 toneladas de algodão agroecológico, sempre por meio do comércio justo. A cadeia da borracha envolve 100 famílias de seringueiros e a do algodão, 700 famílias.
A produção atual é de 250 mil pares de tênis comercializados em 900 pontos de venda espalhados por 15 países, quase todos europeus. A marca começou a entrar no mercado brasileiro somente há três anos e hoje está presente em 50 pontos de venda. A Vert terceiriza da marca Ramarim de calçados as instalações e a mão de obra para a fabricação dos tênis.
O aumento de escala de produção, de acordo com o diretor comercial, tem de se dar “organicamente”, uma vez que os principais fornecedores trabalham de forma artesanal ou comunitária.
Para se prevenir de uma crise de crescimento (ou de uma eventual quebra de safra do algodão), a Vert vem agregando novas matérias-primas dentro do mesmo escopo de cadeias inclusivas e atenção com o meio ambiente: tecidos feitos de garrafas pet recicladas, juta natural, couro de tilápia etc. Entre os principais desafios da empresa estão estabelecer um plano de reciclagem dos tênis e passar a só utilizar tinturas vegetais não poluentes e cadarços de algodão orgânicos.
FICHA:VERT
Microempresa
Setor: Moda/Calçadista
Faturamento em 2015: Vert (Brasil) R$ 900 mil
Funcionários: 11 no Brasil
Fundação: 2005
Principais clientes: Empresas do setor de moda (multimarcas e monomarcas), sites de moda e galerias de arte e design.
O que faz: Tênis de design minimalista e urbano com a utilização de matéria-prima natural, dentro das regras do comércio justo, com o intuito de impactar de forma positiva os trabalhadores da cadeia produtiva e o meio ambiente.
Inovação para a sustentabilidade: Trabalha com pequenas comunidades da Amazônia que fazem extração de borracha nativa, utilizada nas solas dos tênis. Sem intermediários, consegue remunerar os trabalhadores com valores acima dos de mercado, incentivando a conservação da floresta. O pagamento diferenciado também na cadeia do algodão estimula a agroecologia. Na confecção dos tênis, utiliza fábricas auditadas e que respeitam os direitos dos trabalhadores.
Potencial: A empresa está em expansão mundial, o que deverá gerar mais benefícios ambientais e sociais.
Destaques da gestão: Existe uma proximidade entre os sócios-fundadores, funcionários e trabalhadores das comunidades que propicia um envolvimento maior em torno do projeto. Reuniões periódicas definem claramente os objetivos da empresa, sem deixar de lado o bem-estar dos parceiros envolvidos.
Texto publicado originalmente no Página22, no Guia de Inovação para a Sustentabilidade em MPE 2016.