Para refugiados sírios no Brasil, a comida é um recomeço
Nas últimas semanas, EXAME visitou 5 famílias sírias que fazem comida para vender, e que escolheram a cidade de São Paulo para recomeçar a vida
Camila Almeida
Publicado em 12 de agosto de 2017 às 11h21.
Última atualização em 14 de agosto de 2017 às 22h37.
Quando um refugiado sírio chega ao Brasil, sem conhecer a realidade local e sem falar a língua, sustentar a família em fuga do Oriente Médio é um enorme desafio. Ao deixarem suas casas, os sírios deixam para trás também boa parte dos parentes, diplomas, empregos.
Muitos são engenheiros, médicos, administradores. Recomeçar vida nova dentro dessas atividades é quase impossível, seja por burocracia, seja por dificuldades com o idioma, seja pelo tempo que essa inserção demanda – e boa parte deles simplesmente não têm como esperar. O recomeço, para muitos deles, acaba na cozinha.
Nas últimas semanas, EXAME visitou cinco famílias sírias que fazem comida para vender no Brasil, e que escolheram a cidade de São Paulo para recomeçar a vida. Suas histórias de empreendedorismo mostram que, se continuamos acolhedores com os estrangeiros, temos muito a evoluir nas políticas de integração de refugiados.
Dos 5 milhões de refugiados sírios que se espalharam pelo mundo desde o início da guerra, em 2011, apenas 2.500 estão no Brasil, equivalente a 0,05% do total. Porém, esse número é significativo diante dos refugiados recebidos no país: entre 2010 e 2016, foram reconhecidos 9.500 refugiados pelo Ministério da Justiça, e os sírios representam cerca de 25% do total de acolhidos.
A primeira grande leva de árabes chegou ao Brasil por volta do ano de 1880, motivada especialmente pela crise do império turco-otomano. De acordo com a historiadora Samira Adel Osman, professora da Unifesp e especialista em imigração árabe, naquela época, a grande maioria dos árabes que chegaram ao Brasil eram cristãos, e sonhavam em retornar para seus países depois de terem aproveitado a oportunidade de fazer dinheiro no Brasil.
A população muçulmana só veio no segundo grande fluxo migratório, a partir da década de 1950, com o fim da Segunda Guerra Mundial, a formação do estado de Israel, que intensificou os atritos com os árabes palestinos, e com o início da guerra civil no Líbano, na década de 1970. Agora, o Brasil vive a terceira onda de imigração árabe, motivada pela guerra civil na Síria.
Somando imigrantes e seus descendentes, a comunidade árabe no Brasil soma mais de 16 milhões de pessoas, o que equivale a quase 8% da população nacional. Desses, cerca de 3,5 milhões vivem no estado de São Paulo. Com a concentração em pontos como a rua 25 de março, a capital paulista virou o ponto de partida para a incorporação da comida árabe no dia-a-dia dos brasileiros. Esfihas e kibes estão em milhares de padarias e botecos e viraram carros-chefe de redes de fast food.
O jeitinho sírio de empreender
Os refugiados que têm começado seus negócios no Brasil não apelam para o aposto “comida árabe”. Apesar de os cardápios que saem das cozinhas do Oriente Médio terem muitas semelhanças, os recém-chegados têm marcado seu espaço, e se identificam com certo orgulho com o rótulo “culinária síria”.
A cozinha tem se mostrado uma aventura para a maioria dos refugiados, que tinha outra profissão em sua terra natal — eram engenheiros, médicos, artistas, professores. Mas o empreendedorismo se mostrou como a única forma de sobreviver no Brasil.
É o caso da família do ortopedista Saeed Mourad, de 72 anos, que abriu em 2015 o restaurante Damascus, uma homenagem à capital síria no bairro de Pinheiros. Uma doceria onde também é servido almoço árabe, iniciada por seu filho, Khaldoun Mourad, primeiro a chegar ao Brasil. Ele é contador, mas, com a ajuda de outros quatro amigos sírios, conseguiu dar início ao restaurante.
Logo a família inteira veio. Chegaram a ser 18 membros, entre esposa, filhos, genros e netos. Agora, restam apenas sete. “Nós viemos com bastante dinheiro guardado, mas não deu para sustentar todo mundo por muito tempo”, explica o patriarca da família, em inglês, lamentando que as filhas tenham precisado voltar para o país em guerra.
Saeed era dono de uma clínica de ortopedia em Damasco, mas decidiu que era hora de deixar a cidade quando uma bomba explodiu em frente ao edifício. Hoje, sofre para manter o restaurante num bairro caro. Só de aluguel, a família paga mais de 6.000 reais. “Precisávamos de um negócio que desse retorno rápido. Percebemos que a comida árabe era muito apreciada pelos brasileiros, e que não tinham muitos estabelecimentos vendendo bons doces”, diz.
Ficam expostos na vitrine folhados árabes, biscoitos amanteigados e de gergelim, além de doces ainda pouco conhecidos no Brasil, à base de queijo e semolina. Há também o tradicional doce mamul, uma espécie de pastel de forno recheado com tâmaras, amêndoas ou até caju, numa adaptação bem brasileira.
“Eles têm alto nível educacional e dominam vários idiomas, mas, por não conseguirem validar o diploma e se inserir em suas áreas de formação, começam a pensar sobre o que mais sabem fazer na vida: e os sírios sabem cozinhar muito bem”, afirma Marcelo Haydu, presidente do Instituto Adus, ONG de acolhimento a refugiados com atuação desde 2010.
A rede Cáritas, que tem sede no Brasil desde 1956, e apoia imigrantes de 108 nacionalidades diferentes, calcula que, dentre os refugiados, 32% têm ensino médio e 22% têm ensino superior. Mas a missão aqui é árdua, mesmo para quem tem preparo. “Muitos vêm com a incumbência de se estabelecer logo para trazer os familiares que ficaram no país. Mas, se está difícil para nós, com a crise, arrumar um emprego, para eles está muito mais”, afirma Maria Cristina Morelli, coordenadora do Centro de Referência para Refugiados da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo.
O apoio para o recomeço
Com o apoio de ONGs, que ajudam a montar marca, cardápio e na gestão das redes sociais, os sírios têm entrado na gastronomia com uma página no Facebook, oferecendo comida por encomenda. “Virou uma febre. Apesar de ser difícil organizar uma logística de entregas, não é preciso um investimento inicial alto”, afirma Haydu, do Instituto Adus.
Quem começou assim foi o refugiado Talal Al-tinawi, de 44 anos. Ele veio com a esposa e os dois filhos, e tiveram mais uma menina quando chegaram ao Brasil — uma vez que se tem um filho em solo brasileiro, é mais fácil dar entrada em um visto de residência permanente. Eles chegaram ao Brasil em dezembro de 2013, depois de ficarem dez meses no Líbano.
Talal é engenheiro mecânico e tinha um escritório de engenharia em Damasco, além de três lojas de roupa infantil. Tinham carro e um apartamento, e viajavam com frequência de férias pela Europa. Chegando ao Brasil, ele começou a vender roupa para crianças no bairro do Brás, que tem acolhido uma boa parte dos imigrantes árabes por dar lugar à Mesquita do Pari desde 1995, administrada pela Liga da Juventude Islâmica.
Foi durante o aniversário de seu filho mais velho que surgiu a ideia de começar a trabalhar com comida, elogiada pelos convidados. Criaram, então, uma página no Facebook para vender os salgados. A família já participou de diversos eventos, cozinhando para festas grandes como as do Museu da Imigração, em São Paulo, e preparando refeições para 400 pessoas todos os dias durante o mês do Ramadã, além de serem frequentemente convidados para ministrar palestras e workshops.
A popularidade de Talal no meio gastronômico fez com que ele conseguisse abrir um restaurante com dinheiro arrecadado em uma plataforma de financiamento colaborativo. Em dois meses, arrecadou 72.000 reais para abrir o Talal Culinária Síria, no bairro Jardim das Acácias, na zona sul de São Paulo. O ponto não foi escolhido por acaso: após dar uma palestra para crianças em uma escola da região, recebeu bolsas de estudos para seus dois filhos.
O restaurante, inaugurado em abril de 2016 serve buffet por quilo e livre com tabule, fatuche, kafta, falafel, esfihas. Na semana em que recebeu a reportagem, Talal era o único membro da família em casa. A esposa e os filhos tinham aproveitado as férias escolares para curtir um pouco os parentes que ficaram na Síria.
Não só de amadores vive a gastronomia síria: Mazen Zwawe, de 29 anos, já era chef de cozinha em Damasco. Ele chegou a ter o próprio restaurante na cidade, mas o estabelecimento foi destruído em um bombardeio. Chegou ao Brasil, em 2013, num momento em que a guerra da Síria não tinha tomado uma dimensão global. O chef teve dificuldades para começar. “Logo que eu cheguei, vendi água na rua por dois meses, e não me envergonho, não”, afirma.
Quando conseguiu se dedicar à culinária, fez bicos em restaurantes, quitutes para feiras, abriu um quiosque atrás de uma padaria no Brás. Atualmente, trabalha no food park Armazém da Cidade, no coração da Vila Madalena, perto do Beco do Batman. Prepara os tradicionais shawarmas, sanduíches sírios, e vende uma ampla diversidade de salgados. Além disso, também faz participações no programa Mulheres, na TV Gazeta, ensinando receitas típicas da culinária árabe.
Passos pequenos, grandes ambições
Como praticamente todos os outros refugiados, Eyad Abuharb, de 26 anos, chegou ao Brasil sem saber nada sobre o país. Era a única opção com portas abertas. Deixou Damasco, sua cidade natal, em 2011, para não precisar servir o Exército durante a guerra, que tinha acabado de começar. Morou na Jordânia e no Líbano, antes de migrar para o Brasil, em 2013. Não conhecia ninguém, mas decidiu ficar em São Paulo porque sabia que era uma cidade boa para “trabalho e comércio”.
Trabalhou como assistente no restaurante árabe Seu Chalita, no bairro do Itaim Bibi, e por um ano morou na casa da família dona do restaurante. Foi onde aprendeu a falar português. Depois, abriu um ponto para vender shawarma na avenida Senador Queirós, no centro, mas não conseguiu competir com a concorrência que vendia churrasquinho grego a 3 reais.
Foi quando abriu um puxadinho na frente do restaurante Ogarett, no Brás, e logo fez sucesso. Virou sócio do restaurante, que passou a contar com três pisos e 12 funcionários. Mas o negócio sofreu com a crise, e Abuharb saiu da sociedade. No dia 1º de abril de 2016, começou a fazer sanduíches de frango em sua nova empreitada, uma loja alugada em frente à Mesquita do Pari – que estava com todas as outras lojas fechadas.
O novo ponto, batizado de New Shawarma, aposta nos pratos rápidos: shawarma de frango, carne e falafel, e sucos naturais. O lanche quente e fresco, que continua custando dez reais, é acompanhado de porções generosas de pasta de alho ou gergelim e salada. “O negócio vai bem, mas ainda estou me recuperando do baque que eu levei. Agora, penso em expandir, montar uma cozinha central e criar mais algumas lojas”, conta Eyad. Assim que possível, pensa em trazer também os pais, que ficaram na Síria.
A luta para permanecer no país
Já que o governo não oferece nenhum apoio financeiro a refugiados, fica sob encargo das entidades de direitos humanos, como a Cáritas, e dos centros de cultura árabe, como a Mesquita Brasil, dar todo o apoio para as famílias de refugiados. Com apoio de doações da Sociedade Beneficente Muçulmana (SBM), a mesquita tem ajudado a integrar imigrantes árabes desde 1952. A organização, atualmente, aluga imóveis para que 80 famílias possam viver em São Paulo, dentre as cerca de 3.000 cadastradas, oferece cursos de português e inscreve os filhos de pais que estão em piores condições financeiras na escola islâmica.
“Todos chegam em situação muito difícil, praticamente só com a roupa do corpo”, afirma Nasser Fares, presidente da SBM. “No Brasil, isso é muito complicado. Não adianta acolher o refugiado e não dar condições para ele ser refugiado no país.”
A política de acolhimento a refugiados no Brasil é feita com base na lei n. 9474, de 1997, e é considerada referência em termos de direitos humanos. Todos têm direito a se inscrever no CPF, o que possibilita usufruir dos serviços públicos no país, e a uma carteira de trabalho, que lhes permite trabalhar. Porém, diferentemente de outros países do mundo, como boa parte dos europeus, não há uma política de integração. Quem chega ao país não recebe dinheiro, moradia, aulas de português ou mesmo ajuda para se inserir no mercado profissional.
Além disso, ainda há problemas em relação à acolhida. “Hoje, os refugiados e imigrantes que são recebidos no país são atendidos pela Polícia Federal no aeroporto, como se a imigração ainda fosse, antes de tudo, uma questão de segurança nacional”, afirma Emerson Andena, professor da Unicamp especialista em legislação imigratória.
A refugiada Razan Suliman, de 27 anos, é um exemplo de como a vida no país pode ser difícil. Ela veio da histórica cidade de Alepo, que se tornou o epicentro da guerra na Síria, e já havia perdido sua casa no país. Morava numa escola feita de abrigo; a mãe está refugiada na Macedônia, e os dois filhos do primeiro casamento fugiram com o pai para a Europa. Ela veio para o Brasil com o marido em agosto de 2014.
Ao chegar, Razan descobriu que estava grávida, e o marido sofria de sérias dores na coluna. Ela, que não fez faculdade e não trabalhava na Síria, é a responsável por pagar as contas da família, que mora num apartamento pago pela Mesquita Brasil, no bairro do Cambuci.
Com a ajuda de brasileiros, montou a página no Facebook Razan Comida Árabe para vender por encomenda os pratos que aprendeu a cozinhar com a mãe e a avó. Considera o kibe, bem temperado e macio por dentro, o prato que fica mais parecido com o que sua família servia à mesa, mas prepara também esfihas, falafel, pastas e pratos para jantares árabes ao gosto do cliente, basta avisar com um dia de antecedência.
Foi também com a ajuda de amigos do Brasil que montou a própria cozinha, com fornos, refrigeradores e outros equipamentos com os quais foi presenteada. Aluga o espaço por 1.000 reais, no mesmo quarteirão de casa.
Agora, tenta conseguir uma prorrogação para passar mais tempo no apartamento onde mora, porque o prazo fornecido pela mesquita já expirou. “Se eu não conseguir outro lugar para morar, vou ter que voltar para a Síria”, diz.
Ela abriu uma vaquinha online para arrecadar dinheiro, e tem reforçado a campanha para conseguir mais encomendas. Como os outros refugiados, Razan segue lutando para conseguir permanecer no Brasil, mesmo sem apoio do governo. A volta para a Síria dos tempos pré-guerra ainda é um sonho, mas, hoje, com os conflitos sem data para terminar, a possibilidade de retorno é uma ameaça constante.