Victor Fiss, fundador da Cia da Consulta: empreendedor decidiu apostar no setor de clínicas populares de saúde (Cia da Consulta/Divulgação)
Beatriz Correia
Publicado em 27 de novembro de 2019 às 11h00.
Última atualização em 28 de novembro de 2019 às 10h44.
Duas tentativas de abrir um negócio fracassadas, um contrato de aluguel com 14 meses de carência e cerca de R$ 55 mil foi o cenário que Victor Fiss, 23 anos, ofereceu a grandes investidores ao pedir dinheiro para tentar abrir seu próprio negócio pela terceira vez, em 2017. Mas o plano era bom. Dois anos depois, ele já conseguiu um investimento de R$ 46 milhões na rede de clínicas populares Cia da Consulta.
Um ano antes, foi nas salas vazias e nos consultórios abandonados da Faculdade de Medicina do ABC (FMABC) que Victor viu a primeira oportunidade de abrir o próprio negócio. O setor da saúde já era uma opção há um tempo, uma influência do pai, pneumologista e professor na FMABC. E as visitas ao centro acadêmico, com ambulatórios e clínicas em desuso e espaços ociosos, evidenciaram para o estudante de administração do Insper a demanda por um modelo diferente de atendimento ao paciente.
A Cia da Consulta é uma rede de clínicas populares que oferece atendimento médico e exames a preços acessíveis. As unidades atendem às classes B e C, e geralmente estão localizadas perto de pontos de transporte público para facilitar o acesso dos clientes. A ideia da clínica surgiu quando Fiss se deu conta de um gap na área da saúde. De um lado havia as demoradas filas de espera do Sistema Único de Saúde (SUS) e, de outro, a rede de planos e convênios médicos, o chamado setor de saúde suplementar, com custos mais altos, além de uma despesa recorrente.
No Brasil, 70% da população não tem planos de saúde particular, e, desse total, 77% compõem as classes C, D e E. Os dados são de um levantamento feito em 2018 pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL).
A pesquisa mostra ainda que desse grupo, apenas 45% recorre ao SUS para buscar atendimento. O restante arca com dinheiro do próprio bolso para pagar pelos serviços necessários. A média que essa parcela da população gasta com procedimentos médicos por mês é de R$ 439, 54. Por outro lado, nos últimos dois anos, o número de beneficiários de planos diminuiu de 51 milhões para 47 milhões de pessoas, segundo o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS).
A Cia da Consulta começou de uma parceria de Fiss com a FMABC, quando ele propôs usar os espaços subutilizados para construir uma clínica, e a faculdade aceitou. Mas antes de começar o negócio, o estudante foi buscar sua principal referência a quase 3 mil quilômetros. A Super Clínica, em São Luís, no Maranhão, foi o modelo de inspiração que Fiss usou para montar o próprio empreendimento na capital paulista.
Com 17 anos, a unidade de saúde maranhense é pioneira em oferecer atendimento a preços mais acessíveis em comparação a planos privados. Depois de uma semana no Nordeste conhecendo as instalações e o funcionamento, Fiss voltou decidido a fazer algo similar em São Paulo. Depois de três meses, a primeira tentativa não deu certo e a FMABC desistiu da parceria.
A segunda tentativa contou com a aposta de investidores. Com um aporte em mãos e algumas premissas do negócio reformuladas, Fiss decidiu reabrir a Cia da Consulta no marco zero de São Paulo, a Praça da Sé, um lugar que ele considerou ser de muito movimento e de fácil acesso ao grupo social que inicialmente ele acreditava ser seu público alvo, as classes D e E. Mais uma vez, deu tudo errado. “Tinha mais gente que entrava na clínica entregando currículo em busca de um emprego do que pacientes a procura de atendimento médico”, conta o fundador.
Depois de duas tentativas que fracassaram, Fiss entendeu que algo estava errado e decidiu ajustar pontos-chave do negócio. O público alvo mudou das classes D e E para B e C. Outra questão revista foi a localização. A região do Centro de São Paulo concentra pouca população residente e é um local de passagem.
Convencer investidores a apostar em um negócio que estava na sua terceira tentativa, com dois fracassos como histórico não parecia um cenário muito promissor, mas foi com isso, um contrato de aluguel e um powerpoint que ele conseguiu mais uma rodada de investimentos.
Para o empreendedor, foi a própria natureza do negócio que o ajudou. “A proposta é algo que faz sentido. Eu mostrei aos investidores o porquê de ter dado errado no começo, cheguei com um projeto pronto depois de entender todos os erros anteriores e eu já tinha invalidado premissas que não funcionaram. Boa parte deles foram empreendedores também e viram potencial no que eu estava apresentando”, explica.
Em um jogo de tentativa e erro, foi apenas na terceira vez que a Cia da Consulta deu certo e Fiss conseguiu abrir quatro clínicas em regiões estratégicas da capital paulista, como os bairros de Santa Cruz, República e Pinheiros. A empresa fecha o ano de 2019 oferecendo mais de 40 especialidades em oito clínicas. Para Fiss, o êxito do negócio está relacionado à qualidade do serviço oferecido. “Não é preciso pagar pelo luxo na saúde, você pode pagar pela qualidade, e ela não é tão cara quanto as pessoas imaginam”.
A ideia de montar um modelo de negócio para suprir a demanda de um gap entre o SUS e os planos de saúde não é recente, muito menos exclusiva de Fiss. O crescimento das clínicas populares é um fenômeno que merece atenção. Na última década, o boom no setor fez surgir dezenas de opções para quem não pode pagar um plano particular e não quer esperar a fila do SUS. Clínica Fares, Dr. Atende, Dr. Família, Dr. Consulta, Dr. Agora e Meu Doutor são apenas algumas das concorrências em São Paulo.
Todas têm a mesma proposta: um atendimento médico rápido e eficiente a um preço acessível. As clínicas oferecem consultas que custam entre R$ 80 e R$ 200 para especialidades diversas como ortopedia, fisioterapia e clínicos gerais.
Segundo Fiss, o destaque da Cia da Consulta está no modelo de remuneração dos médicos, que reflete no atendimento ao paciente. A clínica paga os cerca de 100 profissionais do corpo clínico com um valor fixo, e não de acordo com a quantidade de consultas ou procedimentos realizados.
O modelo de negócio é promissor na visão de Marcelo Abrahão, consultor de saúde e CEO da Clínica Fares, uma das clínicas populares pioneiras em São Paulo. "Vai ter espaço para todos os modelos de negócio na área da saúde, em intensidades diferentes. E as clínicas populares vão ocupar um grande espaço porque visam o paciente. O que está em foco é a resolução do problema e a eficácia", aponta.
Já para Marcelo Carnielo, diretor técnico da Planisa, consultoria de gestão de resultados em saúde, as clínicas estão longe de resolver o problema do setor como um todo, mas atuam em um mercado com boas perspectivas. "Os gestores dessas clínicas trabalham com margens operacionais muito apertadas, o que torna necessário ter uma eficiência para diminuir ao máximo possível o custo operacional", diz.
Ele explica que ao considerar a conta do valor médio de uma consulta a R$ 100, é preciso retirar o que é repassado ao profissional do corpo clínico, em torno de 50% a 60%, além dos custos de aluguéis e impostos. A margem de lucro seria, então, apertada e os custos com pessoal e operação devem ser reduzidos para garantir um rendimento. Para Carnielo, quem saiu na frente tem uma vantagem. "O mercado não é tão recente, é promissor, mas também cada vez mais competitivo dentro de uma necessidade mandatória de reduzir custos. É promissor, mas não é um ganho fácil", diz.
Neste cenário, a Cia da Consulta registra um crescimento médio de 20% ao mês, considerando as clínicas abertas em 2018 e 2019. Em outubro deste ano, a empresa apresentou um avanço de 25%. Hoje, a rede não busca mais investimentos e tem caixa para manter a expansão, com a previsão de abrir mais seis clínicas em 2020.