LIONEL PUECH, EM SEUS VINHEDOS EM LA ROUVIÈRE: com custos de mão de obra e impostos quase duas vezes mais altos do que na Espanha, os produtores franceses batalham para competir no preço / Roberto Frankenberg/The New York Times
EXAME Hoje
Publicado em 2 de setembro de 2017 às 06h42.
Última atualização em 2 de setembro de 2017 às 08h49.
Béziers, França – No final de uma noite de março, um grupo de viticultores usando balaclavas negras abriu caminho até uma das maiores vendedoras de vinho da França e acendeu três coquetéis molotov. Em minutos, a Passerieux Vergnes Diffusion, estava em chamas.
Produtores militantes já haviam atacado dois grandes distribuidores da vizinhança, na região de Languedoc, destruindo escritórios e fazendo correr um rio de vinho tinto nas ruas.
As empresas tinham uma coisa em comum: haviam fechado acordos para importar vinhos baratos da Espanha, causando uma reação dos vinicultores locais, que temiam que seu meio de subsistência estivesse ameaçado.
“Fiquei estupefato. Destruíram tudo”, afirma René Vergnes, nativo de Languedoc que administrou o Passerieux Vergnes por 35 anos.
A Vergnes foi o alvo mais recente de uma guerra dos vinhos que acontece na maior região vitivinícola da França e coloca os produtores locais contra os de outros países da União Europeia e as empresas que lidam com eles.
O movimento causou indignação na Espanha, onde o governo exigiu a repressão do que chamou de violação das regras de livre comércio da União Europeia. Os produtores espanhóis também temem que essas ações distraiam a atenção de ameaças mais graves à indústria de vinhos da Europa, entre elas a decisão da Grã-Bretanha de deixar a União Europeia, o que é capaz de diminuir as exportações para o maior comprador de vinhos europeus do bloco.
E, à medida que os Estados Unidos sob o presidente Donald Trump caminham para um maior protecionismo, os vinicultores europeus deverão enfrentar uma maior competição da Austrália e de outros países, enquanto a União Europeia busca novos acordos comerciais para compensar.
Apesar de a França nos trazer a imagem de vinicultores ricos em castelos reais, muitos deles na verdade são pequenos produtores que batalham muito, especialmente nesta região, conhecida também como Pays d’Oc, que há mais de um século se firmou como produtora de vinhos de mesa de baixo custo.
E afirmam estar enfrentando competição injusta, principalmente da Espanha, onde a recente crise econômica diminuiu os preços dos vinhos. As regras europeias, afirmam eles, aprofundam as suas dificuldades, exigindo a movimentação livre de bens que, às vezes, não têm os padrões de produção e qualidade do país importador. As regras de rotulagem da União Europeia também fazem com que seja mais fácil para os vendedores oferecerem produtos estrangeiros como se fossem franceses – um problema que afeta outros países europeus e seus produtos.
Os rebeldes do vinho executaram dezenas de ataques de protesto no último verão, entre eles emboscar de caminhões com vinho espanhol na fronteira e despejar a carga nas rodovias.
Os militantes mais agressivos são parte de uma organização secreta que tem como alvo companhias como a Vergnes, que negociou vários contratos de vinhos espanhóis para clientes franceses.
“Muitas pessoas estão apenas sobrevivendo, mas ninguém está prestando atenção”, afirma Lionel Puech, um dos presidentes da Associação dos Fazendeiros Jovens, um sindicato que admite ter participado de algumas das ações dos militantes, mas nenhuma que tenha resultado em processos judiciais.
A França tem procurado acalmar os nervos. No mês passado, o governo organizou uma reunião entre representantes dos produtores de vinho e ministros franceses e espanhóis, que condenaram a violência e concordaram em fortalecer as relações.
No território de Languedoc, onde os vinhedos se estendem do Vale do Rhône até a fronteira com a Espanha, essas declarações não fazem muita diferença.
Enquanto algumas vinícolas investiram em produtos de alta qualidade, muitas ainda produzem alguns vinhos de mesa baratos para o mercado que se preocupa com o orçamento.
No entanto, com custos de mão de obra e impostos quase duas vezes mais altos do que na Espanha, os produtores franceses batalham para competir no preço. A França também impõe regras estritas para o cultivo das uvas, cujo cumprimento é mais caro do que as espanholas e as de outros países europeus.
“Os vinhos espanhóis não precisam seguir nossas regras, mas, pela União Europeia, temos que aceitá-los. É uma instituição que está provando ser um invólucro sem conteúdo, pois cria desvantagens competitivas dentro de um mercado comum”, explica Puech, que possui uma pequena vinícola em La Rouvière, uma vila ao norte de Nîmes.
Os produtores espanhóis veem esse argumento como uma desculpa para o protecionismo. “Podemos produzir o vinho a um preço mais barato porque nossos salários são mais baixos, mas isso não significa que estamos fazendo concorrência desleal”, explica Juan Corbalán García, que representa a Cooperativa Agro-Alimentar em Bruxelas.
Depois de toda a contabilidade, os pequenos produtores de Languedoc levam para casa um pouco mais do que o salário mínimo francês. E mesmo isso pode diminuir se a colheita não for boa ou os pedidos caírem.
A região estava começando a se recuperar da crise de produção que durou uma década e levou alguns vinicultores à falência – e um punhado ao suicídio –, quando as colheitas foram atingidas novamente, em 2015.
Dessa vez, os comerciantes de vinho como a Vergnes recorreram à Espanha para preencher o déficit – só que, quando a colheita voltou ao normal, os produtores de Languedoc se viram com grandes quantidades de vinho que não conseguiam vender.
Os produtores pensaram que os pedidos voltariam assim que o estoque espanhol acabasse, mas os comerciantes franceses estavam conseguindo uma grande margem de lucro com os vinhos espanhóis. No ano passado, a França se tornou a maior importadora de vinhos a granel da Espanha, segundo a agência de agricultura francesa, FranceAgriMer.
Então, os viticultores de Languedoc se revoltaram.
Milhares fizeram manifestações, pedindo ao governo para igualar as condições, reduzindo os impostos e os custos regulatórios. Os sindicatos se reuniram com os varejistas para exigir rótulos que deixassem mais visível o nome dos países de origem.
Quando as reuniões não trouxeram resultados, os produtores decidiram resolver o problema de outra maneira.
Puech e outros ativistas destruíram milhares de garrafas em grandes varejistas como o Carrefour, que ofereciam vinhos espanhóis baratos parecendo franceses, com fotos das vinícolas e de campos de lavandas, e os vendiam com o mesmo preço dos de Languedoc, criando margens consideráveis para os varejistas.
O Comitê Regional de Ação Vinícola, um grupo radical que usa a sigla CRAV, também entrou na briga. Conhecido por ações violentas que incluíram dinamitar alguns de seus alvos, opera na clandestinidade em Languedoc há mais de cem anos, ressurgindo quando novas dificuldades financeiras atingem os viticultores.
Em 2016, um grupo de militantes do CRAV saqueou uma grande cooperativa de vinhos franceses, a Vinadeis, que havia comprado estoques espanhóis, destruindo os escritórios com porretes e machados e incendiando tudo. Eles também assumiram a responsabilidade por esvaziar muitas garrafas de vinho da Biron, outra grande distribuidora de Languedoc, para chamar a atenção para seus problemas. As ações estão sob investigação da polícia.
Um dos militantes do CRAV, um produtor de Languedoc que quer permanecer anônimo, afirma, citando a investigação policial, que as pessoas atingiram seus limites. Ele diz que os ativistas interromperam as ações por enquanto, mas podem voltar a agir se as coisas não melhorarem.
O produtor explica que viu seu pai e outras famílias de Languedoc caírem em uma espiral de dívidas durante as crises anteriores e age para evitar novas dificuldades.
“Não faço isso por prazer”, afirma sobre sua participação nas ações, “mas, no sistema global, são sempre aqueles que estão no fundo da escala social que sofrem. Queremos ser ouvidos.”
Vergnes ainda estava cambaleante com o efeito que a situação teve sobre seus negócios. Mas, como nativo da região, ele admite que a ação causou impacto.
Além de romper os acordos com a Espanha (“Tenho que pensar na minha família”, afirma), Vergnes encomendou novos rótulos para os vinhos de Languedoc que virão estampados com logotipos com a inscrição “Fabricado na França”. “Os distribuidores locais estão discutindo a melhor maneira de rastrear as informações dos vinhos para educar os consumidores sobre a qualidade”, explica ele. O Carrefour e outros grandes varejistas também concordaram em comprar mais de Languedoc, e em dar a eles mais visibilidade na exibição, além de marcar com mais clareza os estrangeiros.
“Languedoc sempre foi um lugar de gente de sangue quente”, diz Vergnes.
“Mas eu entendo que é efeito de uma crise. Se não tivessem feito tudo isso, será que as coisas realmente teriam mudado?”, questiona.
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