TRAVIS KALANICK, COFUNDADOR DO UBER: ele se afastou do cargo de executivo-chefe após casos de assédio na empresa / Stephen Lovekin/Getty Images for OurTime.org
Da Redação
Publicado em 13 de junho de 2017 às 17h27.
Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h00.
David Cohen
Menos de quatro meses depois de ordenar uma “investigação urgente” sobre o que chamou de atos “repugnantes” descritos por uma ex-funcionária, o cofundador e executivo-chefe do Uber, Travis Kalanick, se tornou a principal vítima de suas próprias medidas. Nesta terça-feira, 13 de junho, ele anunciou num email aos funcionários que entrará em licença por tempo indeterminado do comando da empresa.
O afastamento de Kalanick é a mais importante consequência do relatório entregue à empresa pelo ex-procurador-geral dos Estados Unidos Eric Holder – contratado justamente para dar uma demonstração de que o Uber estava levando a sério a necessidade de investigar e, se preciso fosse, mudar a sua cultura.
O relatório de Holder foi discutido pelo conselho de administração da empresa no domingo. Segundo um representante do conselho, naquela reunião ficou decidido, por unanimidade, que todas as suas 47 recomendações seriam acatadas – incluindo a criação de um comitê de supervisão, a reformulação dos valores da empresa, a redução do consumo de álcool durante eventos de trabalho e a proibição de relacionamentos íntimos entre chefes e subordinados.
Mas, de acordo com algumas publicações, até poucas horas antes de apresentar aos funcionários as conclusões do relatório, Kalanick não havia decidido se deixaria o papel de CEO ou não.
É provável que uma tragédia pessoal tenha contribuído para a decisão de se afastar. Há duas semanas, a mãe de Kalanick morreu em um acidente de barco, e seu pai ficou hospitalizado. Isso o fez tirar alguns dias de folga e considerar, segundo pessoas próximas a ele, se não era hora de descansar um pouco – algo que ele não faz desde 2009, quando ajudou a fundar a empresa e torná-la a startup mais valiosa do mundo, a líder do grupo de “unicórnios”, empresas privadas com valor acima do 1 bilhão de dólares.
Para o bem e para o mal, o estilo de Kalanick – sua competitividade, sua disposição de confrontar regras que julga obsoletas, sua energia e criatividade – ajudou a elevar a empresa de transporte alternativo ao valor estimado de 70 bilhões de dólares. Há sérias dúvidas se sua saída, mesmo que temporária, fará mais bem ou mais mal à empresa.
Por enquanto, a empresa será comandada por um comitê de gestão. Quando Kalanick voltar, ele terá menos responsabilidades — e a empresa vai contratar um executivo independente para limitar sua influência.
Os rumos do Uber sem Kalanick – que, como qualquer fundador de startup bem-sucedida, é uma espécie de ídolo na companhia – são uma incógnita. No entanto, é opinião corrente que, se a companhia fosse pública, Kalanick já teria sido demitido há muito tempo.
A sucessão de escândalos em que ele se meteu parece infindável: um apoio ao presidente Trump lhe rendeu um movimento de boicote com mais de 200.000 cancelamentos do aplicativo; as acusações da ex-funcionária Susan Fowler, uma engenheira que se queixou de sexismo e uma cultura em que cada chefe puxava o tapete do outro; um vídeo em que Kalanick xingava um motorista do Uber após este reclamar da política de pagamentos da empresa; a descoberta de que a empresa é investigada por ter manipulado seu aplicativo para ludibriar autoridades que avaliavam se ela estava infringindo leis locais; a acusação de que ela usava um programa para espionar os concorrentes; a revelação de que o Uber infringiu as regras da Apple, que hospeda seu aplicativo.
Em março, a jornalista e empresária Arianna Huffington, membro do conselho do Uber, definiu Kalanick como um “empreendedor determinado”, mas alguém que precisava promover “mudanças em si mesmo e na maneira como lidera”.
Foi exatamente isso que ele anunciou agora que pretende fazer. Em seu comunicado, disse que a licença vai servir para que ele trabalhe para mudar a si mesmo e reflita sobre como construir “uma equipe de liderança de classe mundial” para o Uber. Ninguém sabe quanto tempo isso vai levar.
A batalha da imagem
Kalanick está longe de ser o primeiro líder a ser afastado da empresa que criou. O exemplo mais citado é sempre Steve Jobs, que foi demitido da Apple, cresceu com outras experiências e voltou para guiar a empresa por novos rumos e torná-la a mais valiosa do planeta. Mas há vários outros, desde Andrew Mason, do Groupon, até David Neeleman, que foi expulso da JetBlu nos Estados Unidos e veio fundar a Azul no Brasil, passando por Jack Dorsey, que voltou ao Twitter um par de anos atrás, e Martin Eberhard, tirado da Tesla por seu sócio Elon Musk.
A diferença é que Kalanick está saindo porque quer. E, pelo menos em teoria, pode voltar a qualquer momento, porque ainda tem, entre si próprio e seu grupo de apoiadores, uma quantidade considerável de ações com direito a voto (várias delas chamadas de ações “super-votantes”, por valerem dez vezes mais que as ações normais para efeito de tomada de decisão).
Esse mecanismo é um fenômeno recente no Vale do Silício. Com a multiplicação dos capitalistas interessados em investir nas startups, os empreendedores passaram a ter mais poder de barganha – e essa solução das ações com superpoderes é um obstáculo a que sejam expelidos de suas próprias companhias.
Isso não quer dizer que a posição de Kalanick fosse confortável. Ao contrário. Ele sabe que, na medida em que o Uber cresceu, passou a ser necessário adequar-se melhor às regras do mundo dos negócios.
Este é outro fenômeno comum no Vale do Silício, e ganhou até um apelido: “supervisão adulta”. Foi o que fizeram Larry Page e Sergey Brin, ao chamar o experiente engenheiro Eric Schmidt para ser CEO do Google (e depois devolver o cargo), ou Mark Zuckerberg, ao chamar Sheryl Sandberg para ser sua chefe de operações.
O caso do Uber, porém, é mais grave. Não só a empresa está envolvida em múltiplos conflitos de natureza regulatória, como ainda tem no horizonte a probabilidade de sofrer uma ruptura, com a chegada dos carros autônomos (para o Uber, isso seria uma solução para o conflito com os motoristas, mas abre o caminho para outras empresas lhe roubarem mercado — o que explica, aliás, sua pressa em desenvolver o próprio carro autônomo e a briga judicial com o Google, que acusa a empresa de ter-lhe roubado patentes ao contratar um de seus engenheiros).
Com tantos desafios e ainda não totalmente estabelecido, o Uber não pode se dar ao luxo de perder a batalha da imagem pública. Por isso, aliás, no mesmo dia em que anunciou a licença de Kalanick, a companhia disse que estava contratando a executiva de marketing Bozoma Saint John, ex-chefe de marketing para consumidores da Apple Music e do iTunes, com a missão de revigorar sua marca.
Quem ficou?
Kalanick não foi a única vítima do relatório de Holder. Na segunda-feira, o chefe de negócios e braço direito dele, Emil Michael, foi demitido, por recomendação de Holder. Segundo o jornal Financial Times, ele disse a colegas que foi vítima de uma caça às bruxas cujo objetivo era enfraquecer Kalanick.
Antes, dele, na semana passada, outro membro do “time A”, como Kalanick se referia a seus principais executivos, foi mandado embora: Eric Alexander, responsável pelas operações na Ásia, caiu por ter supostamente comprado os boletins médicos de uma mulher estuprada por um motorista do Uber na Índia (aparentemente, ele queria verificar se podia anular a queixa criminal dela contra a empresa).
No total, sete pessoas que se reportavam diretamente a Kalanick deixaram a empresa desde o começo do ano. Além deles, o presidente do conselho do Uber, Jeff Jones, pediu demissão em março, com menos de um ano no cargo, dizendo que suas crenças e sua visão de liderança eram inconsistentes com as da companhia.
O Uber está sem um chefe de operações, um chefe de finanças, um chefe de marketing e um chefe de negócios. O que a empresa tem, também por recomendação do relatório Holder, é mais um conselheiro, a executiva Wan Ling Martello, da Nestlé.
Antes do relatório de Holder, o Uber anunciou na semana passada os resultados de uma outra investigação, da firma de advocacia Perkins Coie, sobre 215 alegações de assédio sexual e assédio moral. Disso resultaram outras 20 demissões.
Nessas condições, a ausência de Kalanick será ainda mais sentida.
“A responsabilidade final por onde nós chegamos e como nós chegamos está sobre os meus ombros”, disse Kalanick no email enviado aos empregados. “Há muitos motivos de orgulho, é claro, mas há também muito o que melhorar.”
Com uma boa dose de pressão, ele parece ter concluído que, pelo menos neste momento, o caminho das melhoras deve ser trilhado sem ele.