Sergio Herz, da Livraria Cultura: nova aquisição faz parte da estratégia da rede em se firmar no comércio eletrônico (Leandro Fonseca/Exame)
Camila Almeida
Publicado em 19 de julho de 2017 às 16h22.
Última atualização em 19 de julho de 2017 às 18h27.
São Paulo – No dia 23 de junho, Sergio Herz, presidente da Livraria Cultura, recebeu EXAME Hoje em seu escritório, na Avenida Paulista, para uma entrevista franca sobre a enxurrada de problemas da empresa fundada há 70 anos. No prejuízo desde 2012, a livraria dava como certo mais um ano no vermelho para 2017. Herz falou que havia passado a hora de ganhar terreno no digital, e de deixar suas lojas tradicionais mais inteligentes.
Também deixou a possibilidade de um negócio em aberto: “se a Amazon vier aqui dizendo que vai me comprar, eu vou avaliar”. Outra possibilidade, que surgiu em forma de boato no início deste ano, era uma fusão com a concorrente Saraiva. “Não dá para dizer ‘eu nunca beberei dessa água'”, disse Herz. Eis que, nesta terça-feira 19, a Cultura anunciou a compra da operação da francesa Fnac no Brasil. De 17 lojas, vai passar a 29.
Mas o mais importante é a participação de mercado. A Cultura conta com 11% e, com a nova aquisição, passa para 16%. Ainda continua como a segunda livraria do país, mas diminui a diferença em relação à Saraiva, que conta com cerca de 25%. A Saraiva, inclusive, havia saído na frente na negociação para aquisição da Fnac, quando a empresa anunciou que queria deixar a operação no Brasil. Vencer esse páreo foi crucial para a sobrevivência da Cultura no mercado. A operação ainda vai ter custo zero. A Fnac vai aportar 150 milhões de reais para deixar o país, conforme adiantou o jornalista Lauro Jardim, d’O Globo, com informações confirmadas por EXAME Hoje.
A verba vai ajudar a cobrir o fluxo de caixa negativo das duas empresas, além de outras pendências, e a dívida da Cultura com os bancos, que está em cerca de 60 milhões de reais. Deixando essas dívidas para trás, a empresa ganha mais potencial para investir, e os retornos para a Fnac virão nos termos do contrato de licenciamento. Com o negócio, a Cultura adquiriu os direitos de utilização da marca Fnac no Brasil, que ainda será vista por um tempo no país.
De acordo com a consultora Ana Paula Tozzi, que assessora a Cultura, as lojas devem passar por uma remodelação, para se adequar ao modelo da tradicional livraria, que aposta no glamour e na experiência para atrair os clientes.
Além disso, a Cultura vai conseguir ampliar os centros de distribuição, ter ganhos no comércio de eletro-eletrônicos, em que ainda não atua de forma consistente, e que representam 47% das vendas globais da Fnac no mundo, ou 3,5 bilhões de euros ao ano. E, de certa forma, a companhia ainda encurta o caminho para o plano de cinco anos da Cultura: ser uma empresa mais digital e com lojas cada vez mais desejadas. A meta da Cultura era ampliar a participação do e-commerce de 22% para 70% até 2020, mas Herz afirmou a EXAME Hoje que queria “fazer mais rápido”. No Brasil, cerca de 50% da receita da Fnac vem do e-commerce.
Segundo nota divulgada pela Fnac Darty, a Cultura “apresentou um projeto industrial ambicioso para a Fnac Brasil”. O negócio, segundo o comunicado, vai “permitir à Livraria Cultura diversificar suas atividades com os produtos tecnológicos da Fnac”. A Cultura, por sua vez, afirmou em nota que “a união entre os dois grupos criará valores e sinergias, compartilhando culturas similares… e permitirá que a Livraria Cultura diversifique seus negócios adicionando novas linhas dos produtos e serviços”.
O negócio era disputado, e alguns outros pontos também pesaram a favor da Cultura. “É uma empresa com boa reputação no mercado, bem estruturada, com boa capacidade de operação e com tradição de ser boa pagadora. Acabou sendo mais eficiente na negociação”, afirma a consultora Ana Paula Tozzi.
No Brasil há cerca de duas décadas, a Fnac opera com 12 lojas e o negócio representa 2% das vendas anuais do grupo, estimadas em 7,4 bilhões de euros. Com a queda das vendas nos últimos anos, a operação tem caixa suficiente para se manter com seus atual capital de giro, mas precisa de recursos de fora para conseguir expandir o negócio. A venda das operações no Brasil é parte do plano global da Fnac Darty de focar os investimentos diretos na Europa, e buscar investidores para expandir as operações em outros mercados.
Outro ponto que afastou a empresa de permanecer no Brasil foi a dificuldade para consolidar uma liderança. Desde a saída da presidente Claudia Elisa Soares, em fevereiro deste ano, após apenas um ano no cargo, o processo para tentar sair do país se acelerou. Executivos afirmaram na época de que ela não conseguiria reestruturar a empresa com a velocidade necessária para fazer a operação ser rentável no Brasil.
A Cultura enfrenta queda nas receitas há dois anos — em 2016, o faturamento ficou em 380 milhões de reais, ante 460 milhões em 2014. Em dezembro, a Cultura comprou a participação de 25% que o fundo Neo detinha no negócio. O Neo havia adquirido a participação em 2009, injetando capital para acelerar o processo de expansão física da rede, que passou de um faturamento de 220 milhões para 440 milhões entre 2008 e 2013, antes de estagnar junto com a economia brasileira. A meta de faturar 500 milhões de reais em 2014 nunca foi alcançada.
Desde que herdou de seu pai o comando da empresa da família, em 2009, Sergio Herz tinha planos de dar uma guinada na estratégia de negócios da Cultura. A ideia era parar de abrir livrarias, e incrementar ainda mais as unidades existentes para servirem como polos culturais (assim como já acontece há muito tempo na principal loja da rede, no Conjunto Nacional, em São Paulo). O motivo é evidente: livrarias que vendem basicamente livros estão em frangalhos no mundo todo.
Alguns testes dessa loja do futuro estão em andamento. Desde o ano passado a loja do Shopping Market Place, em São Paulo, começou a usar um sistema que precifica os produtos de acordo com o horário de compra e com o perfil do cliente. Um livro específico poderá ter preços diferentes para clientes diferentes. É a mesma lógica que a Amazon levou para suas livrarias físicas. EXAME Hoje visitou a primeira loja da rede em Nova York em maio, e constatou que apenas os livros mais populares no site da companhia têm vez em suas prateleiras.
Para não ficar para trás, a Cultura fez o negócio mais ousado em seus 70 anos.