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Crime sem castigo? Saiba quem pode ser punido pelas 157 mortes da Vale

Responsabilidade pelo desastre em Brumadinho (MG) pode recair sobre qualquer um na companhia - de técnicos ao presidente da empresa

Operação da Vale em Brumadinho: engolida por rejeitos na tarde de 25 de janeiro. (Douglas Magno/AFP)

Mariana Desidério

Publicado em 8 de fevereiro de 2019 às 06h00.

Última atualização em 8 de fevereiro de 2019 às 06h24.

Encontrar o culpado pela morte de uma pessoa é importante para garantir a punição do criminoso e inibir novos crimes. Identificar os responsáveis por um desastre que matou mais de 150 pessoas é pelo menos 150 vezes mais urgente. Porém, especialistas são unânimes em dizer que atribuir a alguém a culpa pelo desabamento da barragem da mineradora Vale em Brumadinho (MG) será uma tarefa árdua. A barragem ruiu no dia 25 de janeiro, e as buscas por corpos continuam – ainda há 182 desaparecidos.

De acordo com especialistas ouvidos por EXAME, a responsabilidade pelo desastre da Vale pode recair sobre qualquer um na companhia que tenha agido ou se omitido no caso – dos funcionários menos graduados até o presidente da empresa, Fabio Schvartsman, e os membros do conselho de administração. Para isso, será preciso provar uma atuação direta da pessoa no caso.

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“Qualquer um pode ser responsabilizado, inclusive o conselho de administração. Mas, para isso, é preciso que o risco concreto do rompimento da barragem tenha sido colocado para o tomador de decisão. Se o risco foi apresentado a alguém de nível hierárquico mais baixo e essa pessoa tomou a decisão errada, por exemplo, é possível que a responsabilidade sobre o desastre se encerre aí. O presidente de uma empresa não pode ser responsabilizado por qualquer ato ilícito cometido por seus subordinados”, explica Davi Tangerino, professor de direito penal da FGV.

Com centenas de trabalhadores desaparecidos, e a área administrativa da mina do Córrego do Feijão enterrada debaixo da lama, atribuir essas responsabilidades é um trabalho complexo. “Existe uma dificuldade em atribuir essa culpa. A lei penal é rigorosa e para condenar alguém tem que existir prova concreta do crime, por ação ou omissão. No Brasil infelizmente não temos a prática de prender altos executivos de grandes empresas, embora a lei assegure essa possibilidade”, afirma Raimundo Simão de Melo, procurador regional do trabalho aposentado e especialista em direito trabalhista.

Quatro dias após o desastre, a polícia prendeu três funcionários da Vale e mais dois engenheiros da companhia alemã Tüv Süd, que avaliou a segurança da barragem em Brumadinho. São eles: André Yassuda, diretor da Tüv Süd, Makoto Namba, engenheiro da companhia, Rodrigo Artur Gomes de Melo, gerente executivo operacional da Vale, Ricardo de Oliveira, gerente de meio ambiente da Vale, e Cesar Augusto Paulino Grandchamp, geólogo da Vale. Acusados de homicídio qualificado, crime ambiental e falsidade ideológica, eles foram soltos na terça-feira (4), após pedido de habeas corpus no STJ (Superior Tribunal de Justiça).

“Com o máximo respeito, eu vejo aqui uma prisão pelo resultado. Uma prisão em que não se indica sequer se houve modalidade culposa, se foi uma negligência da vistoria, se houve uma imperícia nos exames técnicos ou se houve uma efetiva fraude”, disse o ministro do STJ Nefi Cordeiro ao iniciar seu voto pela liberdade dos acusados.

A prisão dos profissionais foi avaliada como tentativa de resposta rápida à sociedade, um remédio pouco eficaz para a sensação de impunidade que paira desde o episódio de Mariana (MG), onde uma barragem da mineradora Samarco desabou em 2015 deixando 19 mortos pelo caminho. Vinte e um executivos da Samarco foram denunciados por homicídio doloso eventual, quando se assume o risco de provocar mortes. Dentre eles o ex-diretor presidente da Samarco, Ricardo Vescovi de Aragão. O processo está na Justiça Federal. Testemunhas e acusados ainda estão sendo ouvidos e até agora ninguém foi punido.

Se é de algum consolo, a sensação de impunidade que ficou após a tragédia da Samarco pode ajudar a acelerar as investigações e a tramitação do processo no caso de Brumadinho, avalia o procurador aposentado Raimundo Simão de Melo.

No mundo

Responsabilizar pessoas físicas por crimes e desastres de uma empresa não é tarefa simples em nenhuma parte do mundo. Em 2010, uma plataforma de petróleo no Golfo do México, operada pela britânica BP, explodiu e afundou, matando 11 funcionários. Quase 5 milhões de barris de petróleo foram despejados no oceano, no que é considerado o maior vazamento acidental de petróleo da história.

Calcula-se que, até agora, o desastre tenha custado 65 bilhões de dólares à BP, em ações judiciais e compensações às vítimas.  Apesar da salgada punição financeira, ninguém foi preso. Dois supervisores que estavam na plataforma foram acusados de não conduzir adequadamente os testes de pressão necessários. Um deles foi absolvido, e o outro, sentenciado a 10 meses de liberdade condicional.

Um ex-vice-presidente da empresa, acusado de mentir para agentes federais sobre a quantidade de petróleo derramado, também foi absolvido. Um engenheiro acusado de deletar mensagens de texto recebeu 6 meses de liberdade condicional.

Já na Itália, outro caso emblemático envolve a fabricante de telhas Eternit, que usava fibras de amianto em seus produtos. A inalação prolongada de amianto pode provocar doenças graves incluindo câncer de pulmão.

Em 2009, o ministério público de Turin, na Itália, abriu um processo contra o bilionário suíço Stefan Schmidheiny e o barão belga Jean-Louis de Cartier, responsáveis pela operação da empresa entre 1966 e 1986, ano em que a companhia fechou as portas. Eles foram acusados de causar um desastre ambiental e de não tomar as medidas de segurança apropriadas para mitigar a exposição ao amianto.

Schmidheiny foi condenado a 18 anos de prisão em 2013 pela morte de 3 mil pessoas expostas ao amianto. Cartier também foi condenado, mas morreu antes de cumprir a pena. Porém, em 2014, o Supremo Tribunal italiano anulou a decisão do tribunal de primeira instância e absolveu Stephan Schmidheiny. O caso deu algumas voltas e ainda tramita na justiça italiana, segundo informações do Business & Human Rights Resources Centre. Em janeiro de 2019 – dez anos após o primeiro processo – iniciou-se uma nova ação contra Schmidheiny.

Punição do CNPJ

A dificuldade em se estabelecer uma punição penal na pessoa física levanta a discussão sobre a possibilidade de uma responsabilização penal na pessoa jurídica, tema que de tempos em tempos surge em discussões entre especialistas do direito. A modalidade serviria em casos em que não é possível responsabilizar indivíduos.

No entanto, uma empresa não pode ser presa. Na prática, a punição penal para a companhia poderia gerar mais multas e talvez impedimentos para a empresa contratar com órgãos públicos, explica Davi Tangerino, da FGV.

“Quem defende essa alternativa tem como argumento a dificuldade de se encontrar responsáveis na pessoa física. Minha objeção é que a responsabilização penal na pessoa jurídica na prática se tornará uma pena administrativa”, afirma.

Para além da responsabilidade penal pelo desastre de Brumadinho, a mineradora Vale terá de responder em outros âmbitos, como civil, trabalhista e ambiental. Em linhas gerais, essas esferas significarão gordas multas à mineradora Vale -- pelo menos no papel. Na prática, o exemplo de Mariana (MG) também mostra a dificuldade em se conseguir que essas multas sejam de fato pagas pela empresa. Três anos após o desastre da Samarco, a companhia até agora não pagou nenhuma multa aplicada pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), segundo informações do jornal O Globo. O órgão aplicou multas que no total somam sanções de 350 milhões de reais à companhia.

A Samarco diz que até dezembro de 2018 destinou R$ 5,2 bilhões em ações de reparação dos impactos causados pelo rompimento da barragem e que já pagou multa de R$ 45 milhões aplicada pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de Minas Gerais (Semad).

O advogado Leonardo Amarante representa 9 mil impactados pelo desastre da Samarco em Mariana, sendo 4 mil pescadores. Segundo ele, o caso é um exemplo de impunidade. “Serve como precedente no aspecto negativo. Não tem desfecho no processo criminal e, na parte cível, está confuso, as indenizações não estão acontecendo de acordo com o TAC [termo de ajustamento de conduta]. Para piorar, em dezembro houve uma liminar para rever todos os acordos que já foram feitos”, afirma.

No caso de Brumadinho, o Ibama já multou a mineradora Vale em 250 milhões de reais – a companhia pode recorrer. A Justiça também bloqueou um total de 11 bilhões de reais da mineradora, como forma tentear garantir o pagamento de sanções.

A Vale prometeu doar 100 mil reais para as famílias das vítimas do desastre. Até agora 107 pessoas receberam o montante. Porém, já há disputa entre a mineradora, o poder público e os afetados pela lama. A mineradora se recusou a assinar o Termo de Ajuste Preliminar Extrajudicial proposto pelo Ministério Público com ações emergenciais a serem implementadas por conta do rompimento da barragem.

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