Risco em usina da Ucrânia pode ser pior que Chernobyl? Veja o que se sabe
De acordo com autoridades ucranianas, projéteis atingiram complexo nuclear de Zaporizhzhia, mas incêndio foi controlado. Ucrânia tem um passado doloroso com o acidente nuclear de Chernobyl, em 1986
Da redação, com agências
Publicado em 4 de março de 2022 às 08h17.
Última atualização em 4 de março de 2022 às 09h26.
Com nove dias de guerra na Ucrânia , os olhares estão voltados na manhã desta sexta-feira, 4, para os desdobramentos na usina nuclear de Zaporizhzhia, que teve um incêndio registrado na noite de ontem.
Não houve vazamento radioativo identificado, segundo as autoridades afirmaram até o momento. Mas quase 36 anos após o acidente nuclear de Chernobyl, também na Ucrânia, o mundo volta a se preocupar com a possibilidade de um desastre nuclear na região.
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De acordo com o governo ucraniano, o incêndio foi provocado por projéteis que atingiram Zaporizhzhia nas primeiras horas da sexta-feira, danificando um edifício e um laboratório. Mas o incêndio foi controlado nesta madrugada sem atingir partes sensíveis da usina.
A informação mais importante até agora é de que não houve danos aos seis reatores do complexo nuclear.
É um dano a esses reatores, podendo ocasionar vazamentos, que gerou desastres nucleares como os de Chernobyl, onde houve uma explosão no conhecido "reator 4" em 1986, e de Fukushima, no Japão, que registrou dano em quatro dos seis reatores após um tsunami em 2011.
O complexo hoje desativado de Chernobyl, também tomado pelas tropas russas ainda no começo da guerra, fica no norte do país - mais próximo à capital Kiev e quase na fronteira com Belarus. São cerca de 700 quilômetros de distância entre Chernobyl e Zaporizhzhia.
O que se sabe sobre os riscos nucleares
Autoridades ucranianas afirmaram durante a madrugada que quase a maior parte dos blocos da usina estavam sendo desconectados, com somente a unidade 4 em operação, e que a segurança nuclear está "agora garantida".
Após os embates da noite, as tropas russas controlam todas as entradas para a usina e funcionários que operam no processo de segurança dos reatores têm precisado ter a passagem autorizada.
Oleksandr Kharchenko, um conselheiro próximo do ministro de Energia da Ucrânia, disse ao jornal britânico Financial Times nesta sexta-feira que, além do acesso à área, um dos riscos segue sendo eventuais impactos nos geradores, o que pode prejudicar o resfriamento do sistema. "Se isso for danificado, ninguém pode prever as consequências".
Em atualização nesta sexta-feira, a Agência Internacional da Energia Atômica (AIEA) citou as autoridades ucranianas afirmando que não há alteração nos níveis de radiação após os ataques.
"A entidade regulatória da Ucrânia afirmou que um incêndio no local não afetou equipamento 'essencial' e funcionários da planta estavam tomando medidas de mitigação", disse a agência. "Não há mudanças nos níveis de radiação reportadas na planta."
Mas o presidente da AIEA, Rafael Mariano Grossi, sugere uma visita a Chernobyl e um acordo entre Ucrânia e Rússia para que não haja novos ataques em áreas de usinas nucleares, o que segue sendo um risco.
Mais cedo, a secretária de Energia dos Estados Unidos, Jennifer Granholm, afirmou em seu perfil no Twitter que conversou com o ministro de Energia da Ucrânia sobre o assunto e que o departamento americano estava também monitorando a situação.
"Os reatores da planta estão protegido por estruturas de contenção robustas e os reatores estão sendo desligados com segurança", escreveu.
O complexo nuclear de Zaporizhzhia é o maior da Europa, e mensagens das autoridades ucranianas nas últimas horas vinham causando preocupação a respeito dos potenciais riscos na usina.
"O exército russo está atirando de todos os lados contra a usina nuclear de Zaporizhzhia, a maior usina nuclear da Europa. O fogo já começou. Se explodir, será dez vezes maior que Chernobyl!, escreveu na noite de quinta-feira em rede social o ministro das Relações Exteriores, Dmytro Kuleba.
"Os russos devem cessar IMEDIATAMENTE o fogo e permitir que os bombeiros estabeleçam uma zona de segurança!"
Já a Rússia acusa as próprias forças ucranianas de terem desencadeado o incêndio, o que o Ministério da Defesa russo chamou de "provocação monstruosa".
Histórico nuclear na Ucrânia
Construída entre 1984 e 1995, com obra iniciada ainda no período da União Soviética, a usina de Zaporizhzhia possui seis reatores e fornece parte importante da energia da Ucrânia - daí sua posição estratégia para as tropas russas.
É da usina que sai a energia elétrica para 4 milhões de casas ucranianas.
Além de o incêndio até o momento sob controle, analistas têm apontado também que Zaporizhzhia é mais nova do que Chernobyl e de tecnologia mais segura, usando os chamados reatores com "água pressurizada" (PWR, na sigla em inglês).
Os danos no caso de um potencial acidente são incalculáveis. A população nos arredores imediatos é de ao menos 50 mil habitantes na cidade de Enerhodar, a mais próxima.
Na quinta-feira, diante da aproximação russa, vídeos circularam nas redes sociais com moradores da cidade fazendo uma barreira humana e barricadas para travar o acesso à usina.
O local fica a 150 quilômetros ao norte da península da Crimeia, da qual está mais próxima, além de 550 quilômetros da capital Kiev ao norte e pouco mais de mil quilômetros de Moscou, capital da Rússia. São ainda quase 2 mil quilômetros até a capital da Alemanha, Berlim.
No caso de Chernobyl, a principal área de evacuação foi a chamada zona de 30 quilômetros ao redor da planta. Mas as nuvens radioativas se espalharam por outras áreas da então União Soviética (que incluía outras repúblicas, como Rússia e Belarus), além do resto da Europa e com registros até no Canadá.
Após a explosão do reator 4, um incêndio continuou por dez dias. O acidente inicial com o reator ocorreu em 26 de abril de 1986, durante testes de segurança, mas o então líder soviético Mikhail Gorbachev só se pronunciou oficialmente em 14 de maio.
Até hoje, historiadores apontam o acidente de Chernobyl como um dos fatores que acentuou o descontentamento de parte da população das repúblicas soviéticas com o poder central em Moscou. Uma das grandes críticas é a demora das autoridades para reportar o acidente, na tentativa de escondê-lo.
Em meio à guerra com a Rússia, que chega nesta sexta-feira a nove dias, o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, acusou o governo do presidente russo, Vladimir Putin, de querer repetir Chernobyl.
"Alertamos o mundo inteiro para o fato de que nenhum outro país, exceto a Rússia, disparou contra usinas nucleares. Esta é a primeira vez em nossa história, a primeira vez na história da humanidade. Este Estado terrorista está agora recorrendo ao terror nuclear", disse.
"Dirijo-me a todos os ucranianos, a todos os europeus, a todas as pessoas que conhecem a palavra Chernobyl, que sabem quanto sofrimento e vítimas foram causados pela explosão da central nuclear", disse Zelensky, que sabidamente ligou para uma série de líderes de outros países ocidentais nas últimas horas para tratar do assunto.
O caso acontece ainda à medida em que a Otan, aliança militar que inclui as principais potências acidentais, discute a possibilidade de instituir uma zona de restrição aérea na Ucrânia, o que teria grande impacto nos avanços russos.
A possibilidade de escalamento do conflito, sem grandes avanços em uma rodada de negociação realizada ontem, fez bolsas na Europa e na Ásia abrirem em queda nesta sexta-feira.
A própria central de Zaporizhia já esteve no palco de uma crise com a Rússia, mas em 2014: na ocasião, com os embates na Crimeia anexada, grande fonte de carvão no país, houve falta de energia e geradores da usina também tiveram problemas, levando a um apagão em várias partes da Ucrânia. Mas o caso não constituiu um acidente nuclear, somente falha no gerador.
Mas as centrais nucleares seguirão sendo invariavelmente fonte de risco enquanto a guerra se desenrola no país. A Ucrânia tem ao todo quatro plantas nucleares em operação e metade de sua energia vinda dessa fonte, uma das maiores fatias do mundo.
(Com AFP)