Bento XVI: renúncia foi um terremoto que revelou a verdadeira natureza de um papa consciente da importância de um bom Governo em uma Igreja doente (Gabriel Bouys/AFP)
Da Redação
Publicado em 8 de fevereiro de 2014 às 11h57.
Cidade do Vaticano - O declínio da "era Ratzinger", marcada por escândalos e vazamentos de informações, culminou de forma inesperada com as palavras pronunciadas em latim por Bento XVI com as quais renunciou como papa, um acontecimento histórico que na próxima terça-feira completará um ano.
Bento XVI foi o papa da fumaça cinza que, em uma tarde de abril de 2005, emanou da chaminé colocada no telhado da Capela Sistina e que sumiu na incerteza aos fiéis congregados na Praça de São Pedro. Eles não conseguiam confirmar se era branca ou preta, se o conclave havia escolhido o papa ou não.
Os sinos da basílica anunciaram finalmente a resolução do primeiro conclave do terceiro milênio e acompanharam Bento, que, assomado à sacada central do templo, cumprimentava exultante e com os braços para o alto os fiéis e peregrinos.
O então papa - e hoje papa emérito - não demorou a demonstrar sua personalidade minuciosa que caracterizou seu pontificado, no qual lembrou que o inferno existe e facilitou a celebração litúrgica segundo o rito tridentino, em latim.
Bento não tinha a personalidade midiática de seu antecessor, João Paulo II, nem de seu sucessor, Francisco, mas sua indiscutível altura intelectual lhe levou a protagonizar históricos debates e discursos como o pronunciado na Universidade de Regensburg, em 2006.
No entanto, o líder religioso, humanista de gostos refinados, teve que enfrentar terremotos que eclodiram no seio da Igreja, como os abusos sexuais de religiosos a menores e o roubo e a difusão de documentos privados das residências pontifícios, que indicavam conflitos internos na Santa Sé.
Estas cartas privadas foram publicadas pelo jornalista italiano Gianluigi Nuzzi e fornecidas por um dos homens mais próximos a Bento XVI, seu mordomo, Paolo Gabriele, que passou a ser conhecido como "o Corvo" da Santa Sé.
Sua revelação provocou um escândalo de grandes dimensões que entrou para a história com o nome de "Vatileaks" e que o próprio Nuzzi explicou em seu livro "Sua Santità" (2012).
Em umas declarações à Agência Efe, Nuzzi afirmou que o livro contribuiu para acelerar um processo de mudança que, no entanto, encontrou muitas resistências escondidas na Cúria. Na opinião dele, "o papa estava só e nem sempre bem informado".
"Os documentos publicados não só revelam escândalos, mas evidenciam a fragilidade do pontificado de Bento XVI", destacou o jornalista.
Além disso, Nuzzi afirmou à Efe que a revelação dos documentos fez com que todos os integrantes da Igreja se perguntassem por que essas situações aconteciam e por que o papa não entrava em ação.
O próprio Tarcisio Bertone, que fora secretário de Estado durante o pontificado de Bento, lamentou recentemente não ter sido capaz de frear os ataques "impiedosos" contra o papa.
"Ele (Bento) viveu uma época de sofrimento", afirmou Bertone, que completou dizendo que espera que o "Vatileaks já seja um episódio fechado na história da Igreja.
Ratzinger também teve que abordar a explosão dos escândalos de abusos sexuais a menores por parte de membros do clero, um feito do qual já tinha conhecimento e investigou quando era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, como o caso dos Legionários de Cristo.
Em 2006, ele exigiu ao fundador dessa congregação, Marcial Maciel, que renunciasse "a todo Ministério público" por ser investigado por abusos sexuais a seminaristas, e em 2010 ordenou que a congregação fosse investigada.
Em 19 de novembro de 2010, o papa convocou em Roma todos os membros do Colégio Cardinalício para tratar dos casos de pedofilia em uma "cúpula" sem precedentes na história da Igreja.
No âmbito econômico, também adotou medidas contra a lavagem de dinheiro no Instituto para Obras de Religião (IOR), conhecido como banco vaticano, também envolvido no caso Vatileaks.
Como disse Nuzzi, Bento XVI estava solitário, cansado e muito lúcido. Então, em uma nebulosa manhã de fevereiro de 2013, na Sala Clementina do Vaticano e diante dos cardeais que assistiam ao anúncio de novos canonizações, anunciou em latim que, "pelo bem da Igreja" e dada sua "idade avançada", renunciava a seu pontificado.
A decisão foi um terremoto que revelou a verdadeira natureza de um papa consciente da importância de um bom Governo em uma Igreja doente.