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“Ortega perdeu a batalha política na Nicarágua”, diz ex-vice-presidente

Para ex-vice-presidente da Nicarágua e escritor premiado, crise no país é sinal de que governos repressivos não são mais viáveis na América Latina

Demonstrators take part in a march to demand the ouster of Nicaragua's President Daniel Ortega in Managua, Nicaragua, July 23, 2018. REUTERS/Jorge Cabrera (Jorge Cabrera/Reuters)

Demonstrators take part in a march to demand the ouster of Nicaragua's President Daniel Ortega in Managua, Nicaragua, July 23, 2018. REUTERS/Jorge Cabrera (Jorge Cabrera/Reuters)

Gabriela Ruic

Gabriela Ruic

Publicado em 2 de agosto de 2018 às 06h00.

Última atualização em 2 de agosto de 2018 às 06h00.

A conturbada situação política da Nicarágua chegou às manchetes depois da morte da estudante brasileira Raynéia Gabrielle Lima. Porém, o conflito vem desde 18 de abril, quando manifestantes começaram a tomar as ruas em protesto contra o presidente Daniel Ortega e sofreram uma repressão que tem sido tachada como a mais grave desde o fim da guerra civil. Para o escritor nicaraguense Sérgio Ramirez, após a eclosão popular, não há mais volta; o consenso em torno do governo de Ortega se rompeu.

Escritor, jornalista e político, Sérgio Ramirez fez oposição à ditadura de Anastasio Somosa e liderou nos anos 70 o Grupo dos Doze, formado por intelectuais e religiosos que apoiavam a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), grupo guerrilheiro que conseguiu derrubar afinal o regime de Somosa. Depois do triunfo da Revolução Sandinista, fez parte da Junta de Governo de Reconstrução.

Foi um dos vice-presidentes do primeiro governo Daniel Ortega, entre 1986 e 1990. Desde meados da década de 90, tem sido crítico de Ortega e do partido sandinista, o FSLN. Desde 1996, não participa de política, atuando como intelectual crítico a Ortega . “Como escritor, o que eu posso usar é a minha voz”, diz o autor de livros como Adiós, Muchachos e Margarita, está linda la mar e vencedor do último Prêmio Cervantes, o mais importante em língua espanhola.

Sergio Ramirez, ex-vice-presidente da Nicarágua

Sergio Ramirez, ex-vice-presidente da Nicarágua (Rodrigo Fernandes)

Nesta entrevista para a Agência Pública, ele explica como vê a situação atual do seu país, que viu nos últimos meses os maiores protestos de sua história, com um saldo de mais de 400 pessoas mortas.  Para ele, a rebelião popular é um sinal, que “os governos repressivos estão deixando de ser viáveis” na América Latina. “Projetos como a ALBA estão de saída”. Leia a entrevista.

Como está a atmosfera na Nicarágua?

Neste momento, o governo se sente triunfante, já que conseguiu retomar as ruas. Eles sentem como se tivessem ganhado a batalha militar. Retiraram as barricadas das favelas e desde então têm se dedicado a uma caçada aos jovens que estão na lista dos envolvidos. Segundo a Comissão Permanente de Direitos Humanos [CPDH], foram detidos nos últimos dias mais de 800 jovens, que foram retirados de suas casas pelos paramilitares e levados ao 5º Centro de Detenção em Manágua [a capital].

Alguns têm sido rapidamente processados em grupos de 10, 15, 20, por terrorismo, por causa de uma lei que foi aprovada em caráter de urgência na Assembleia Nacional que tipificou o delito de terrorismo ou de ajuda a terroristas, ou seja, dar alimentos aos muchachos, coisas assim. Faz uma semana que passaram essa lei.

É uma lei muito esquisita porque ela trata do financiamento do terrorismo, e aí inseriram um artigo que não tem nada a ver com financiamento, sobre levar alimentos e medicamentos a grupos terroristas. Por isso, alguns jovens devem ser condenados a dez anos de prisão por construírem coletes à prova de balas caseiros – eles fazem isso com velhas radiografias, não sei o quanto funcionam. Mas simplesmente fazer isso está listado entre os delitos previstos na lei.

Ou seja, o que o governo está fazendo agora é descabeçar o movimento e semear o terror entre os manifestantes.

Mas você concorda com a visão de que o governo conseguiu silenciar as ruas?

Eles pensam que estão vencendo, mas eu sinto que não podem reconquistar as pessoas nem intimidá-las. Há muitas marchas programadas, as pessoas sempre saem às ruas, as pessoas não têm medo de dar sua opinião. Mas vamos ver. O que eu acredito é que Ortega perdeu a batalha política, e o país não vai regressar ao que era antes de 18 de abril.

Ele não vai conseguir recompor o consenso passivo que existia, no qual havia um acordo com as empresas privadas, a Igreja Católica não falava, as pessoas das favelas guardavam silêncio, Ortega controlava tudo sem nenhum percalço. Isso se rompeu por completo por causa do número de mortos, são mais de 400, além de 2 mil feridos e mil e tantos presos.

Muitos críticos chamam o governo de Ortega de uma ditadura. Você concorda?

Sem dúvida alguma é uma ditadura. Aqui não existe separação de poderes, as instituições são cadáveres de instituições, Ortega controla o Ministério Público, a polícia, os grupos paramilitares, controla a maioria das estações de televisão… E agora realiza uma repressão desmedida aos protestos. Sangrenta. E a única coisa que faltava era repressão violenta. Uma repressão seletiva, voltada para manter as pessoas silenciadas.

Mas o maior argumento do governo é que Ortega foi eleito há dois anos com uma grande margem, com mais de 72% dos votos?

Sim, ele foi eleito pela terceira vez. Já está no poder há 11 anos, além dos dez que passou logo depois da Revolução Sandinista.

Mas esse apoio, agora, ele perdeu. Veja, nas últimas eleições houve uma enorme abstenção, uma taxa de abstenção brutal de 70%. Depois do final de abril, o Instituto Gallup fez uma pesquisa que mostrou que 63% das pessoas queriam que Ortega se fosse do poder.

O governo alega também que há em curso uma tentativa de golpe de Estado, liderada pelos Estados Unidos…

Bom, em primeiro lugar esse é um governo que sempre teve uma retórica muito anti-imperialista, sempre muito antioligárquica. Mas o que mantinha a estabilidade de Ortega era um pacto com os grandes capitalistas do país. Ortega sempre disse a eles: “Vão fazer seus negócios, mas não se metam com a política”. E os empresários aceitaram a falta de liberdade por uma economia liberal, sem restrições.

A economia sempre foi recomendada pelo próprio FMI, o FMI sempre deu boas notas a Ortega; é um governo de uma ortodoxia liberal muito clara. E as suas relações com os EUA sempre foram muito pacíficas. Ele confrontava os EUA em seu discurso, mas a política anti-imigratória sempre foi muito dura, de deter aqui os imigrantes de outros países centro-americanos. O governo da Nicarágua fez a política de “Muro de Contenção”, inclusive, para conter a imigração para os EUA.

Eu não creio que é um governo de esquerda, como eu sempre concebi a esquerda, baseada em valores éticos e humanos. Nesse sentido, é uma vergonha a declaração do Foro de São Paulo [convenção de líderes da esquerda latino-americana, ocorrida em Cuba em meados de julho] defendendo esse governo, encobrindo crimes e identificando como se fosse uma articulação das elites com os EUA.

Isso é uma mentira. O que houve aqui foi uma manifestação multi-ideológica e sem partidos. Se não, teria que haver milhares de pessoas de ultradireita saindo às ruas. Esse argumento me parece totalmente infantil, de uma esquerda obsoleta. Por isso chamei-a de “O Parque Jurássico” em um artigo recente para o El País, porque falo dessa esquerda que se compromete com a Venezuela, com Ortega, e oculta o que fazem dizendo que se trata de manobras do imperialismo.

Como a situação da Nicarágua se compara com a situação da Venezuela?

São parecidas em termos de autoritarismo, e de dois governos que estão dispostos a tudo para se manterem no poder indefinidamente.

Mas a diferença está no tamanho da economia. Apesar de estar quebrado, é um país rico. Já a Nicarágua é um país pobre e quebrado. Em uma situação de crise econômica, a Nicarágua não conseguiria se aguentar por tanto tempo como a Venezuela está aguentando, porque é um país sem recurso, sem petróleo.

E o que você acha que vai acontecer agora?

Virão novas ondas de protestos, mais gente nas ruas. O que não falta aqui é imaginação, vão criar novas formas de luta desarmada. A arma letal contra esse governo é a luta desarmada. Não estamos vivendo de nenhuma maneira uma guerra civil. É uma luta desarmada, de resistência civil.

Neste país temos experiência em guerra civil, mas vai ser a luta desarmada que vai terminar derrotando o Ortega. Tem que haver uma saída cívica que obrigue a chamar novas eleições. Neste momento não vejo essa perspectiva ainda, porque o Ortega está firme na ideia de que não vai sair. Mas uma coisa é o que ele pode dizer, e outra é o que a realidade vai exigir.

Por que Ortega não conseguiria se manter no poder, na sua opinião?

Se eu penso em um panorama em que ficamos com Ortega até 2021, e depois ele seja reeleito… Isso é impossível. Seu pacto com os empresários rachou, são seus adversários agora, e estão contra ele de maneira radical. E não romperam com ele porque deixaram de lucrar, mas eu digo que foram de fato sensibilizados pelos assassinatos.

Ortega também tem a Igreja Católica contra ele. O governo começou a atacar igrejas católicas, como no caso do tiroteio de 15 horas na Igreja da Divina Misericórdia, em Manágua [em 13 de julho, estudantes refugiados na Igreja sofreram 15 horas de tiros da polícia]. Estão atacando padres, quebrando templos católicos. Parece-me que se meter contra a Igreja Católica em um país eminentemente católico como o nosso é uma guerra perdida.

E há locais onde estão matando filhos de militantes sandinistas históricos. Então o governo foi perdendo apoio, foi perdendo as ruas. O consenso que havia se rompeu, e imaginar que possa ser reconstruído é impossível.

O que esta crise atual na Nicarágua ensina sobre o momento político na América Latina?

Que agora as ditaduras, os governos repressivos, estão deixando de ser viáveis. E projetos como a Alba [Aliança Bolivariana dos Povos das Américas] estão de saída. Na OEA, 21 países condenaram a violência de Ortega, conclamaram a antecipar as eleições e desmantelar os paramilitares.

E apenas o governo da Venezuela e de uma ilha no Caribe [São Vicente e Granadinas] votaram contra. O delegado da Bolívia se levantou na hora de votar, El Salvador se absteve. Isso é um sinal de que a força da Alba não era ideológica nem política, mas vinha das doações de petróleo presenteado pela Venezuela. Uma vez que o petróleo desaparece, essa aliança se afrouxa.

Entrevista publicada originalmente na Agência Pública.

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