Mundo

Falta de chance transforma africanas em escravas no Oriente

Centenas de mulheres afetadas pela pobreza e pela falta de oportunidades foram capturadas pelas redes de tráfico que prometem um bom trabalho no Oriente Médio


	Mulheres no Quênia: governo calcula que mais de cem mil trabalhadores não qualificados emigraram à região do Golfo, principalmente mulheres para o serviço doméstico
 (Tony Karumba/AFP)

Mulheres no Quênia: governo calcula que mais de cem mil trabalhadores não qualificados emigraram à região do Golfo, principalmente mulheres para o serviço doméstico (Tony Karumba/AFP)

DR

Da Redação

Publicado em 4 de julho de 2015 às 10h24.

Nairóbi - Após mais de um ano trabalhando em troca de um salário miserável e repetidas humilhações, Faith deixou a Líbia e retornou ao Quênia, onde, como centenas de mulheres afetadas pela pobreza e pela falta de oportunidades, foi captada pelas redes de tráfico que prometem um bom trabalho no Oriente Médio.

Embora seja difícil contabilizar, o governo queniano calcula que mais de cem mil trabalhadores não qualificados emigraram à região do Golfo, principalmente mulheres para o serviço doméstico.

A maioria é transferida por agências de contratação para Arábia Saudita ou Emirados Árabes, mas também há destinos como Jordânia, Líbano e até mesmo a Líbia, para onde Faith foi enviada.

Faith, que não quis revelar seu verdadeiro nome, contou que era maltratada pelo marido, por isso só queria se afastar dele e começar do zero. Ela acabou se tornando vítima das redes criminosas.

"O tráfico de pessoas é uma nova forma de escravidão. A escravidão nunca terminou, só evoluiu", afirmou Sophie Otiende, do Centro para a Conscientização Contra o Tráfico (HAART).

Os novos "traficantes" se ocultam entre agências de contratação sem licença, amigos, conhecidos ou inclusive a própria família da vítima.

Foram amigos que disseram a Faith sobre uma agência com uma proposta tentadora: 500 euros (R$ 1750) por mês por um trabalho de camareira em Dubai.

Em escritórios itinerantes ou hotéis, as agências conseguem passaporte e visto para as jovens quenianas, a maioria mães solteiras com filhos - as vítimas mais vulneráveis - como Mary.

"Eles nos deram passaportes e disseram que tínhamos que usar o nome desse passaporte, não o nosso", relatou.

O processo estava lento demais para Faith. Certa noite, apanhou com tanta violência do marido que acabou internada, e a necessidade de fugir para Dubai com esse contrato de camareira se tornou mais urgente que nunca.

"A agência se aproveitou da minha situação", denunciou Faith. Quando tudo estava preparado para a viagem e bastava assinar o contrato, ela percebeu que não seria levada a Dubai, e sim para a Líbia, onde trabalharia em uma casa por menos de 200 euros (R$ 700) ao mês.

Já Mary foi convencida pela tia, que passou uma imagem positiva sobre tudo o que poderia acontecer.

"É um país africano, te tratarão bem e é melhor do que a Arábia Saudita", disse à sobrinha, que sem assinar contrato algum embarcou rumo à Líbia.

Mary acabou em Trípoli e Faith em Zuara, uma pequena cidade perto da fronteira com a Tunísia.

"Quando você trabalha para um árabe, trabalha para toda a família", comentou Faith. A experiência é parecida com a de Mary, que tinha que limpar as casas do chefe, da irmã e da mãe dele, tudo por 160 euros (R$ 560) ao mês.

O salário era baixo, mas não tinha outra opção, embora não tenha durado muito. Após seis meses de trabalho e três de atraso no salário, Mary não aguentou mais: "Eu disse que ou me pagavam ou eu saía".

A dona da casa devolveu seu passaporte e a deixou na rua, sem a possibilidade de ligar para a agência e abandonada em um país em guerra, onde não tinha como se comunicar, e sem dinheiro para voltar ao Quênia.

As ruas de Trípoli, aonde a luta entre as milícias líbias já tinham chegado, eram perigosas demais para uma mulher negra. Sabendo de sua situação, vários soldados a prenderam e um a estuprou.

"Eu não disse nada, e quando ouvi um programa sobre um 'resgate' para os quenianos na Líbia através da embaixada e da Organização Internacional para as Migrações (OIM), eu fui", relatou.

Agora, de volta ao Quênia, Mary fica em estado de alerta cada vez que escuta um barulho alto: "Acordo com os tiros dos militares na rua".

Após mais de um ano de trabalho na Líbia, Faith também conseguiu retornar, mas seu chefe se negou três vezes antes de deixá-la emigrar.

No entanto, Faith conseguiu ficar com o passaporte graças a um esquema - pois as agências ou os próprios chefes costumam tomá-los, e após mais de um ano trabalhando 24 horas por dia e sem dias livres, "sem liberdade" alguma, entrou em contato com Otiende, que ajudava mulheres em situações semelhantes.

Tanto Faith como Mary, assim como outras 200 mulheres, agora recebem em Nairóbi apoio psicológico e financeiro do HAART, que ajuda vítimas do tráfico de pessoas a começarem uma nova vida.

Muitas outras não tiveram a mesma sorte. Os jornais quenianos reproduzem histórias como a de Fatma Athman, de Mombaça, cuja patroa a empurrou pela janela.

"Voltar? Não para a Líbia, mas...", divagou Mary, que tem dúvidas. O motivo é que no Quênia, sem trabalho e sem renda, a vida também não é fácil para elas.

Os traficantes sabem disso e tiram proveito. Enquanto houver fome, desemprego e pessoas sem nada a perder, continuarão a vencer a esperança de um bom trabalho no Oriente Médio.

Acompanhe tudo sobre:MulheresOriente MédioTrabalho escravo

Mais de Mundo

Putin sanciona lei que anula dívidas de quem assinar contrato com o Exército

Eleições no Uruguai: Mujica vira 'principal estrategista' da campanha da esquerda

Israel deixa 19 mortos em novo bombardeio no centro de Beirute

Chefe da Otan se reuniu com Donald Trump nos EUA