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Distribuir a ajuda humanitária, o desafio de Juan Guaidó na Venezuela

Para Ted Piccone, ex-assessor de política externa no governo Clinton, a ajuda humanitária é importante para convencer os venezuelanos a apoiar Guaidó

O presidente interino Juan Guaidó: ele marcou para o dia 23 de fevereiro a entrada da ajuda humanitária internacional no país (Carlos Garcia Rawlins/Reuters)

O presidente interino Juan Guaidó: ele marcou para o dia 23 de fevereiro a entrada da ajuda humanitária internacional no país (Carlos Garcia Rawlins/Reuters)

FS

Filipe Serrano

Publicado em 17 de fevereiro de 2019 às 06h50.

Última atualização em 18 de fevereiro de 2019 às 12h23.

SÃO PAULO - Desde que assumiu como presidente interino da Venezuela, o líder da oposição Juan Guaidó vem fazendo campanha para que o país consiga receber a ajuda humanitária internacional. A entrada de carregamentos de  alimentos e remédios tem sido barrada nas fronteiras da Venezuela por grupos que apoiam o regime de Nicolás Maduro, e ela é fundamental para aliviar as condições de vida dos venezuelanos de forma emergencial.

Guaidó marcou para o dia 23 de fevereiro a data para que a ajuda humanitária entre pelas fronteiras do país com a Colômbia e o Brasil. Mas ainda é uma incógnita como o presidente interino e a oposição vão conseguir distribuir os alimentos para a população, por toda a Venezuela.

Na opinião de Ted Piccone, ex-assessor de política externa no governo de Bill Clinton e pesquisador especializado em América Latina, o sucesso de Guaidó em distribuir a ajuda humanitária na Venezuela será um passo importante para que ele consiga convencer a população a apoiá-lo. "Enquanto os militares, Maduro e seus aliados controlarem as agências governamentais, os ministérios, a infraestrutura, a produção de petróleo etc, há um número limitado de ações que Guaidó pode tomar", disse o pesquisador em entrevista a EXAME por telefone.

Para Piccone, que também é pesquisador no instituto Brookings, em Washington, o passo seguinte de Guaidó deve ser garantir um empréstimo de instituições multilaterais, como Fundo Monetário Internacional. Isso ajudaria o presidente interino a garantir uma ajuda financeira para combater a hiperinflação no país e fazer a economia venezuelana se recuperar. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

O presidente interino Juan Guaidó tem os meios para instalar um novo governo na Venezuela?

Não. Em termos práticos, Guaidó não tem esta habilidade, mas ele conseguiu algo importante. Ele ofereceu uma alternativa viável e legítima, que teve origem na Assembleia Nacional venezuelana, eleita democraticamente. E tem muito apoio entre os grupos que fazem o oposição ao governo Maduro. Acho que isso é algo que não víamos há muito tempo na Venezuela. E sem algum tipo de oposição unificada não é possível tomar nenhuma medida. É um importante passo em direção a alguma saída negociada para Maduro.

O fator mais crítico nisso tudo são as Forças Armadas. Elas claramente ainda estão apoiando Maduro. Portanto, enquanto os militares, Maduro e seus aliados controlarem as agências governamentais, os ministérios, a infraestrutura, a produção de petróleo etc, há um número limitado de ações que Guaidó pode tomar. Mas a nomeação como presidente interino foi um marco no sentido de mover o país na direção de uma solução negociada para a crise. 

O que diferencia a estratégia atual de Guaidó de outras tentativas da oposição de enfrentar o chavismo?

A oposição aprendeu algumas lições com o passado. Quando eles tentaram em 2002 retirar Hugo Chávez do poder, por meio de um golpe, foi um desastre. Foi totalmente contraproducente. Depois, eles tentaram outras medidas, seguindo a Constituição. E a cada ocasião, Chávez e Maduro conseguiram os bloquear. Houve somente uma única exceção: a eleição para a Assembleia Nacional, em 2015. A oposição ganhou uma maioria esmagadora e a Assembleia é a única instituição do país democraticamente eleita que restou na Venezuela. É nisso que a oposição precisa se apoiar (para manter sua legitimidade). E eles estão usando o argumento jurídico, sob as regras da Constituição, de dizer que as eleições de maio foram ilegítimas, a favor da reeleição de Maduro. Portanto, ele não poderia reivindicar o poder. A presidência do país ficou vaga. É papel da Assembleia chamar novas eleições. É tudo lógico e legal. É um argumento sensato. Não é um esquema ilegal, bolado por debaixo dos panos, para derrubar o governo e este tipo de coisa. A oposição também está estendendo a mão para alguns grupos dentro dos militares, dentro dos grupos chavistas, dizendo: "vamos trabalhar juntos, vamos dar anistia". Isso é o tipo de atitude necessária para quebrar o apoio a Maduro. 

Há algum sinal que a negociação está progredindo?

Não. O México e o Uruguai se ofereceram como mediadores para um diálogo. Talvez estes países possam ter um papel em fazer os dois lados conversarem, a portas fechadas. Mas, publicamente, não acho que a oposição vai aceitar este tipo de diálogo. Eles não confiam em Maduro. Porque eles tentaram outras vezes. E Maduro apenas utilizou a negociação para ganhar tempo e consolidar o seu próprio controle.

Qual é a importância do apoio dado pela comunidade internacional a Guaidó?

O apoio vem de uma combinação entre os governos de países vizinhos à Venezuela, os Estados Unidos, o Canadá e a Europa. Esta combinação é o que se precisa. É uma coalizão muito influente e diversa. Além disso, há o apoio das instituições financeiras internacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, que têm sinalizado que estão dispostos a ajudar na transição e trabalhar com o novo governo para colocar a economia de volta nos trilhos. E isso é algo que o país precisa desesperadamente também. Então Guaidó e a oposição tem uma legitimidade política e eles têm algumas vantagens para oferecer numa eventual negociação. São recursos que não podem ser desprezados.

Por que esta ajuda internacional é importante?

É muito importante que Guaidó receba uma assistência financeira internacional para lidar com a inflação e o problema com a moeda. A Venezuela precisa ter algum fundo de reserva para reequilibrar suas contas. Além disso, se há uma ajuda dos Estados Unidos -- que ofereceu 20 milhões de dólares em assistência humanitária -- e de outros países, pode haver um alívio imediato para melhorar as condições de vida para a maioria da população que tem dificuldade para encontrar comida e remédios. Este tipo de combinação de recursos pode ser significativa para que Guaidó ganhe apoio da população e de outros grupos, como os militares. A grande questão é como a oposição vai conseguir executar este plano. Como vão de fato conseguir levar a ajuda humanitária para o interior do país se Maduro se negar a sair do poder ou a abrir as fronteiras.

Maduro tem alguma saída? O que pode fazer com que ele permaneça no poder?

A produção de petróleo da Venezuela está caindo. Mas, se os preços dos barris começarem a subir de novo, Maduro provavelmente pode administrar a situação por mais tempo. Mas se os preços ficarem baixos...

Outra questão importante é o apoio da China e da Rússia, que são basicamente os credores do governo da Venezuela. A Venezuela deve à China quase 20 bilhões de dólares. E a Rússia, outros 6 ou 7 bilhões. No passado, esses dois países aceitaram dar mais tempo e mais crédito para o regime chavista. Eles continuaram a arrastar a situação. 

Imaginando que haja uma transição pacífica na Venezuela, quais seriam as medidas iniciais para tentar reestabelecer a democracia e consertar a economia?

Além um empréstimo rápido do Fundo Monetário Internacional para recompor as reservas, o novo governo precisaria receber uma assistência humanitária e um financiamento de longo prazo para realizar obras, como medidas emergenciais. E a outra necessidade é fazer que os imigrantes que deixaram o país voltem para a Venezuela. São médicos, professores, engenheiros. Eles precisam que estas pessoas voltem ao país, para que os serviços voltem a ser prestados. E eles também precisam que o capital da diáspora venezuelana volte para o país. Para voltar a investir no país. 

Este é um desafio difícil de ser superado também, não?

Sim. Eu não acho que as pessoas voltariam para a Venezuela até que Maduro esteja fora do poder. O próximo passo, constitucionalmente, é chamar novas eleições. E eu não acho que ninguém confiaria em Maduro para organizar eleições livres e justas. É preciso ter alguma instituição crível. Os tribunais e Justiça eleitoral estão todos sob controle dos chavistas. Então é preciso criar alguma forma de realizar eleições livres e justas, que podem ser supervisionadas pela OEA (Organização dos Estados Americanos). Eu não sei se Maduro aceitaria isso. Mas este é o próximo passo. Porque sinalizaria, assumindo que a oposição ganhasse as eleições, que existe uma saída constitucional e eleitoral desta crise. Maduro pode até seguir este caminho. Mas se ele perder as eleições, não vai ter uma anistia. No momento, há uma oferta de anistia. Ele pode perder esta oportunidade. 

Maduro tem enfrentado protestos há alguns anos. Por que esta ação da oposição aconteceu agora?

Uma das coisas é que os líderes da oposição anteriores foram presos ou colocados em prisão domiciliar, como Henrique Capriles e Leopoldo López. Isso abriu uma porta para Guaidó. A liderança da Assembleia Nacional tem sido compartilhada pelos partidos de oposição num processo de rotatividade. Isso explica porque Guaidó estava na liderança agora. Ele tem um histórico bastante humilde. O pai dele é um taxista. Ele vem de um bairro de classe baixa. As vantagens dele é que ele não tem um histórico longo. É de uma base política nova. Além disso, o simbolismo da data é importante também. Havia um novo mandato presidencial começando no dia 10 de janeiro. Este era um ponto político crítico no calendário. E havia ainda o aniversário da queda da ditadura militar, em 23 de janeiro, com uma série de protestos programados. Estes dois eventos se juntaram e a oposição parece ter acordado e decidido: "ok, desta vez vamos nos organizar, e se prepara para agir". O tempo entre as eleições em  maio passado e o mês de janeiro também os ajudou a se organizar e se alinhar ao apoio internacional.

Há um risco de a crise escalar para um conflito armado ou algo mais sério?

Este é um risco sério. Estou muito preocupado com esta possibilidade. Não se esqueça que há a polícia militar uniformizada, Maduro também conta com o apoio de milícias criadas ainda durante os governos de Hugo Chávez. E elas podem ser ativadas de uma forma que pode ser muito letal para os venezuelanos. Se Maduro usar estas milícias para atacar a oposição, isso seria muito perigoso.

Eu não acho que isso deve acontecer de modo nenhum, mas, por exemplo, se Maduro decidir prender diplomatas americanos, jornalistas ou outros estrangeiros, e fazê-los de reféns, então as coisas podem ficar feias. Porque os Estados Unidos seriam forçados a entrar para resgatá-los e poderia haver um conflito militar. Os russos acabariam entrando na disputa. Este seria o pior cenário de todos. Eu não vejo isto acontecendo. Mas é uma possibilidade remota.

Comparado a outras situações que o mundo já enfrentou, de regimes autoritários que são condenados pela comunidade internacional, você acha que o caso da Venezuela é algo novo?

É uma ótima pergunta. É por isso que estou fascinado por esta situação da Venezuela. Eu acho que se trata de algo novo. É novo porque este é um caso em que houve uma eleição e ela foi considerada fraudulenta e injusta pela comunidade internacional. Este tipo de coisa acontece o tempo todo no mundo, não é mesmo? E então nada acontece depois disso. Os governos continuam com um assento nas Nações Unidas. Nada realmente muda. Mas, desta vez, não. Desta vez o Grupo de Lima, os Estados Unidos e outros países disseram não. Não vamos aceitar este como um governo legítimo. E agora temos uma alternativa eleita democraticamente. Não fazer mais negócios com o antigo líder e só vamos fazer negócios com o novo. E vamos de fato dar dinheiro apenas para este líder novo. Isso é algo novo para mim.

Existe algum caso parecido com este na história recente?

O único caso que me vem à mente é o do Haiti. O Haiti tinha Jean-Bertrand Aristide, que era um presidente democraticamente eleito. Os militares vieram e o tiraram do poder num golpe em 1991. Ele então teve que sair do país e ficou exilado nos Estados Unidos. E os Estados Unidos e alguns países da comunidade internacional continuaram a reconhecê-lo como o presidente legítimo do Haiti, mesmo que os militares estivessem no controle. E isso continuou por um tempão, e os militares se safaram por anos. Eventualmente, os Estados Unidos tentaram reinstalar Aristide no poder em 1994 e conseguiram. Mas não muito tempo. Depois ele teve que sair do poder de novo. Este é o único caso que posso me lembrar em que os Estados Unidos e a ONU tomaram a frente e disseram: "nós só reconhecemos Aristide como presidente legítimo e vamos levá-lo de volta para o poder". Mas isso não é exatamente o que está acontecendo na Venezuela. Porque Maduro foi empossado. E não houve um golpe contra ele. Ele criou esta situação.

Talvez, se Maduro não tivesse enfrentando esta crise econômica e humanitária, ele acabaria se safando sem problemas. Acabaria assumindo a presidência, mesmo depois de uma eleição fraudada, e a vida seguiria. Mas porque há mais de 3 milhões de venezuelanos deixando o país e afetando todos os outros vizinhos, acabou sendo uma história diferente.

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