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Como a pandemia quase acabou com a situação de rua no Reino Unido

Desde o início do confinamento, mais de 90% das pessoas que dormem na rua receberam oferta de um lugar para ficar

 (Tom Nicholson/Reuters)

(Tom Nicholson/Reuters)

Janaína Ribeiro

Janaína Ribeiro

Publicado em 15 de junho de 2020 às 16h19.

Última atualização em 15 de junho de 2020 às 17h15.

Londres – Não faz muito tempo, circulando de carro em Newham, município da região de East London, Ryan Anderson e Billy Tattingham mostraram alguns lugares em que já tinham dormido antes do surto do coronavírus: a passarela de uma estação de trem; uma viela; os passadiços perigosos de um centro comercial local; um elevador subterrâneo quando fazia mais frio que o normal. Mas tudo mudou para esses dois amigos de infância no fim de março.

Como parte da iniciativa de contenção da disseminação do vírus, o governo britânico exigiu que as prefeituras da Inglaterra e do País de Gales oferecessem acomodação em hotéis baratos para todas as pessoas em situação de rua. No caso de Anderson e Tattingham, foi uma revelação.

"É totalmente surreal acordar em uma cama de manhã, no meu próprio quarto, com porta e banheiro só para mim. Para falar a verdade, o corona foi a melhor coisa que aconteceu para o pessoal de rua. Ninguém se beneficiou da pandemia como nós", reflete Anderson.

Segundo as estatísticas do governo, desde o início do confinamento mais de 90 por cento das pessoas que dormem na rua receberam oferta de um lugar para ficar; ao mesmo tempo, porém, uma nova onda começa a chegar às ruas. Ainda não se sabe exatamente quem são, mas certamente a grande maioria é daqueles que perderam o emprego durante a pandemia e está sendo despejada por não ter mais condições de pagar aluguel.

Apesar disso, as instituições de caridade que cuidam desse segmento dizem que o sucesso inicial do programa do governo é a prova do que defendem há tempos, ou seja, que uma injeção de verba e apoio oficial pode tirar as pessoas das ruas de maneira rápida e eficiente.

"É um trabalho incrível, e mostra o que se pode fazer quando há vontade política e uma disposição de investir em uma causa", diz Dominic Williamson, diretor executivo de estratégia e políticas da St. Mungo's, que cuida de pessoas em situação de rua.

De acordo com as autoridades da saúde e grupos assistenciais, o número de pessoas dormindo nas ruas está bem baixo porque as Prefeituras foram rápidas em abrigá-las. Nos hotéis, cada uma recebeu um quarto próprio, ainda que as áreas comunais permaneçam fechadas e as visitas externas, estritamente proibidas.

Mas agora os especialistas temem o que pode acontecer quando a legislação de emergência expirar. "Colocar os sem-teto em hotéis não resolve o problema da falta de moradia. Eles continuam sem ter onde morar. Hotel não é casa", afirma Williamson.

Mesmo antes da pandemia, o Reino Unido já enfrentava uma crise cada vez mais séria, resultado da disparada dos preços dos imóveis e aluguéis, da falta de moradia e dos cortes de benefícios. O número de "rough sleepers", que é como os britânicos chamam os sem-teto, aumentou 141 por cento desde 2010.

Todo ano, milhares de pessoas são excluídas do registro de moradia pública pelas mais variadas razões, incluindo um histórico de atraso nos pagamentos de aluguel, pouco tempo de convívio em determinada área ou comportamento antissocial.

Com o fechamento do comércio e das empresas nas últimas semanas, em obediência à quarentena, milhões perderam o emprego, consequentemente gerando uma nova onda de sem-teto no país. Quem trabalhava para o setor da hospitalidade, um dos mais atingidos, normalmente sublocava de proprietários particulares, sem fazer contrato de locação, e por causa disso não pôde se beneficiar da proibição temporária do governo contra despejos.

Em Trafalgar Square, em Londres, a multidão de turistas de sempre foi substituída por centenas de sem-teto que fazem fila toda noite para receber uma refeição quente e uma bebida, distribuídas diariamente por voluntários.

Nadia Balan, bartender e artista romena de 26 anos, ficou sem ter onde morar em abril, depois de perder o emprego em um pub e ser despejada do quarto que ocupava em uma república por não ter condições de pagar mais o aluguel.

"Trabalhava tanto. Dava super duro, nem sonhava em ficar desempregada. Estou com tanto medo que nem consigo pregar o olho. De madrugada, com as ruas vazias, por aí só dá drogado e bandido, zanzando feito uns zumbis. Não tem onde dormir em segurança", diz a moça, sentada sobre as próprias malas à frente de um restaurante.

Balan se inscreveu para tentar conseguir acomodação em hotel, mas não sabe quando vai poder ser remanejada. Isso porque uma equipe de campo tem de verificar a veracidade das informações de quem dorme nas ruas, passando os dados para as autoridades locais.

No início da pandemia, o governo prometeu 3,2 milhões de libras, ou o equivalente a cerca de US$ 4 milhões, para ajudar as prefeituras a acomodar os sem-teto; desde então, concedeu outros 3,2 bilhões para auxiliar os municípios com as pressões imediatas da pandemia, incluindo a situação de rua.

"Estamos também agilizando planos para um novo serviço para acomodação dos sem-teto, com injeção de uma verba de 433 milhões de libras para garantir que seis mil moradias sejam agregadas ao sistema, sendo que pouco mais da metade estará disponível nos próximos doze meses", anunciou o porta-voz do Ministério da Habitação.

Thangam Debbonaire, secretária de Estado da Habitação do governo paralelo, diz que, embora veja com bons olhos o interesse renovado do governo em acabar de vez com os sem-teto, acha que só isso não basta.

"É preciso agir para garantir que quem aluga não corra o risco de inadimplência devido à pandemia; há que reforçar o sistema de bem-estar social, impedindo o despejo de quem tem aluguel atrasado em julho, que é quando a proibição de desocupações acaba", afirma.

As equipes de campo que trabalham com os hotéis enfrentam dificuldades para inscrever as pessoas em programas permanentes em meio a temores de que o financiamento do governo possa acabar em breve e os hotéis voltem a reabrir para os hóspedes comuns.

Em Newham, que tem a maior taxa de sem-teto do país, muitos que estão acomodados em hotéis estão se inscrevendo para a obtenção de moradia permanente pela primeira vez.

"É inédito o fato de alguém como Ryan, em qualquer circunstância, ter a possibilidade de ficar em um hotel enquanto aguarda o processamento da inscrição de moradia. Ainda há as proteções normais da parte das prefeituras, mas faz uma diferença enorme ter todos acomodados em um lugar seguro, a partir do qual podem se dedicar à inscrição", diz Anneke Ziemen, responsável pelos grupos de apoio da instituição de caridade Thames Reach.

Para Tattingham, a experiência da estada no hotel foi transformadora. Ex-boxeador, ele foi várias vezes preso ao longo dos anos e tenta vencer a dependência da heroína, e confessa ter tido a primeira oportunidade de fazer um balanço de sua vida.

"Deitado à noite, consigo deixar tudo para trás e apenas pensar. Vejo que a criminalidade não me levou a lugar nenhum, só me colocou em um círculo vicioso de infrações e tempo na cadeia. Não ganhei nada com isso", confessa, com ar pensativo. Agora, Tattingham se inscreveu para obter moradia pela primeira vez.

"O próximo passo é conseguir minha casinha e ficar bem longe desse pessoal que nunca me fez bem nenhum", completa, referindo-se aos outros sem-teto no estabelecimento.

Os desentendimentos entre residentes são comuns, e o pessoal que cuida dos hotéis muitas vezes tem de chamar a polícia. Dia desses, depois de voltarem de uma incursão ao centro, Tattingham e Anderson se depararam com um policial no saguão, chamado depois que um morador tentou ferir o outro com um cachimbo de crack quebrado.

"Sim, há muitos problemas, mas, pelo menos uma vez na vida, todo mundo está tendo a oportunidade de receber ajuda. Sempre vai ter aquele que é muito preguiçoso para fazer bom uso dela, ou recusá-la; entretanto, agora ela está aí, de bandeja. Parece que desta vez muita gente vai aproveitá-la e, quem sabe, as coisas mudem para melhor", conclui Anderson.

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