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Após duas mortes em protestos, presidente interino do Peru renuncia

Na manhã deste domingo, 13 dos 18 ministros de seu governo haviam renunciado a seus cargos

Presidente interino do Peru Manuel Merino: ele assumiu o cargo em novembro após liderar, como presidente da Câmara, um impeachment contra o antigo presidente (Cesar Von/Getty Images)

Tamires Vitorio

Publicado em 15 de novembro de 2020 às 14h52.

Última atualização em 17 de novembro de 2020 às 20h38.

O presidente interino do Peru , Manuel Merino, renunciou ao seu cargo neste domingo, 15, após protestos que vinham acontecendo no país desde a última semana, quando o então presidente Martín Vizcarra sofreu impeachment por parte do congresso peruano. Os protestos deixaram pelo menos dois mortos, ao menos oito desaparecidos e dezenas de feridos em embates entre os manifestantes e a polícia.

Merino ficou menos de duas semanas no poder. Ele era presidente do Congresso até o começo do mês e assumiu a presidência do Peru em 9 de novembro, justamente após liderar o impeachment contra Vizcarra.

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Vizcarra foi destituído pelo Congresso por "incapacidade moral" em meio a acusações de corrupção contra ele. Envolvido nos escândalos da Odebrecht na América Latina, o Peru teve todos os seus ex-presidentes neste século envolvidos em corrupção e com processos.

Com a renúncia de Merino, o Peru terá seu quarto presidente nos últimos cinco anos, período que deveria ser o mandato de um único mandatário.

Protestos no Peru (ERNESTO BENAVIDES/Getty Images)

Com a pressão crescente, na manhã deste domingo, 13 dos 18 ministros do governo de Merino já haviam renunciado a seus cargos. O agora novo presidente do Congresso (e presidente interino), Luis Valdéz, em entrevista coletiva, havia afirmado que se Merino não apresentasse sua renúncia, o Congresso iniciaria um novo processo de impeachment.

Apesar de nem todos os manifestantes nos últimos dias apoiarem Vizcarra, o processo liderado por Merino para tirá-lo do poder foi questionado por parte da população e analistas, o que levou aos protestos e à pressão para que o presidente da Câmara renunciasse. Algumas alas políticas do Peru chamam o processo de "golpe".

Os protestos não devem acabar com a renúncia de Merino. O Peru deve viver um grande vácuo de poder até as próximas eleições presidenciais, em abril do ano que vem, caso o pleito não seja antecipado.

A crise começou diante dos processos contra Vizcarra. O impeachment efetuado em novembro foi o segundo julgamento político contra o ex-presidente em dois meses-- o primeiro, em setembro, foi negado pelo Congresso.

Impeachments viraram o novo normal no Peru. Vizcarra é um político de centro-direita e que já havia assumido após a renúncia de seu antecessor, o banqueiro Pedro Pablo Kuczynski (o PPK), eleito em 2016 e do qual Vizcarra era vice. PPK também renunciou em meio a escândalos de corrupção.

Os processos contra Vizcarra surgiram após o vazamento de áudios do presidente em setembro. Seu Ministério da Cultura teria feito contratos supostamente irregulares com o cantor Richard Cisneros para consultorias, ao custo de cerca de 10.000 dólares. Nos áudios, o presidente aparece pedindo para que assessoras mintam sobre a proximidade do cantor com o governo. Desta vez, no segundo processo de impeachment, novas acusações sobre o tema surgiram e complicaram a situação do ex-presidente.

Para um país que já teve contratos bilionários com a empreiteira brasileira Odebrecht levando todos os ex-presidentes a serem denunciados nos últimos dois anos, o caso de Vizcarra não está entre os maiores escândalos da história recente peruana.

Ainda assim, Vizcarra e o Congresso viviam em pé de guerra durante seus dois anos no poder. Com as novas denúncias, parte do Congresso correu para tentar fazer das acusações uma chance de arranhar sua imagem ante a opinião pública. No primeiro julgamento do impeachment, o que foi negado em setembro, o pedido chegou a ser chamado de express pela velocidade com que foi levado ao plenário.

Os protestos têm acontecido desde o dia 9 deste mês, quando o então presidente, Martín Vizcarra, sofreu impeachment por parte do congresso peruano. (Ernesto Benavides/Getty Images)

A Lava-Jato peruana

As próximas eleições peruanas, marcadas para abril de 2021, também entram no cenário. O Peru não permite reeleição presidencial por dois mandatos seguidos. De qualquer forma, Vizcarra havia dito antes do impeachment que não iria se candidatar no ano que vem mesmo que os tribunais mudassem a regra. "Sou um homem de palavra", disse no ano passado sobre o caso.

O Peru, como o Brasil, vive uma profunda crise institucional diante dos casos de corrupção. Um marco trágico do momento peruano aconteceu em abril do ano passado, quando o ex-presidente Alan García se suicidou após receber ordem de prisão preventiva.

Depois do Brasil, o Peru foi provavelmente o país mais afetado pelos escândalos da Odebrecht, que admitiu ter pago propina em ao menos 12 países.

Presidente do Peru entre 1985 e 1990 e novamente de 2006 a 2011, García foi alvo de um pedido de prisão devido à investigação de propinas que teria recebido da Odebrecht para a construção de uma linha de metrô.

As investigações no Peru, incluindo em parceria com procuradores brasileiros, se intensificaram após um acordo de leniência fechado em fevereiro de 2019 entre a Odebrecht e a Justiça peruana.

García e PPK não são os únicos. Dos presidentes dos anos 2000 e 2010, todos foram denunciados. Completam a lista Alejandro Toledo (2001-06), que está em prisão domiciliar nos Estados Unidos por negociação de propinas com a Odebrecht em troca de concessão de obras.

Ollanta Humala (2011-16) foi em 2017, junto com a esposa, Nadine, e ainda responde na Justiça ter embolsado uma parte das doações milionárias feitas para sua campanha.

PPK: o presidente peruano eleito em 2016 renunciou após aparecer em vídeo negociando propina (Paco Chuquiure/Reuters)

Vizcarra assumiu no lugar de PPK prometendo reformas. O auge do embate com o Legislativo veio no ano passado, quando o presidente dissolveu o Congresso e convocou novas eleições.

"Há um embate entre o presidente e vários partidos desde essa decisão, que teve grande apoio da população. E a relação não melhorou com a eleição do novo Congresso", disse em entrevista anterior àEXAME o cientista social e economista Marcelo Santos, professor especialista em relações na América Latina na Unesp de Araraquara.

Neste ano, já sob o novo Congresso eleito, o Peru decretou também o fim da imunidade parlamentar.

O pior país no combate ao coronavírus

A pandemia trouxe sua dose adicional de caos ao governo. Com seus 32 milhões de habitantes, o Peru tem mais de 35.000 mortes por covid-19.

O Peru é o país com a maior taxa de mortalidade per capita por covid-19 do mundo. O Brasil ocupa o 4º lugar, segundo informações da Johns Hopkins University

O sistema de saúde peruano colapsou e faltaram leitos de UTI em meio à crise.

O país tem um modelo de saúde fragmentado, similar ao do Brasil antes do SUS, e com investimento em saúde considerado baixo para os padrões mundiais.

Os peruanos tinham na casa dos 1.000 leitos de UTI no começo da crise, um quinto do que tinha só a cidade de São Paulo antes da pandemia. O governo tentou implementar lockdowns rigorosos, mas a taxa de 80% da população na informalidade tornou a tarefa quase impossível.

Enfermeiras na periferia de Lima: Peru tem a maior taxa de mortalidade por covid-19 da América Latina (Ernesto BENAVIDES/AFP)

Além dos desafios de saúde, o governo terá ainda de lidar com a crise econômica gerada pelo vírus. No último cálculo, em junho, o Fundo Monetário Internacional projetava queda de 14% na economia peruana neste ano, pior do que os 9% previstos em abril. No Brasil, a projeção de junho do FMI era de 10,5% e a média global, de queda de 4,9%.

A soma entre os estragos da pandemia e a desconfiança na política enfraquecem ainda mais as instituições do país.

“A crise de representação no Peru, no entanto, não se inicia com as descobertas do caso Lava-Jato. É muito anterior”, disse a socióloga María Isabel Remy Simatovic, pesquisadora do Instituto de Estudos Peruanos (IEP), à EXAME antes da primeira votação de impeachment em setembro.

A pesquisadora criticou o que considerava uma “caça às bruxas” que se instalou no país em meio às investigações de corrupção, mas afirmou que o sistema precisa de reformas. “O sistema de representação, não só política mas social, está em crise, e a classe política se destrói permanentemente.”

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