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A arte que explica a nova China

Cibele Reschke, de Pequim O distrito de Caochangdi não tem nada a ver com a cidade de Pequim moderna e contemporânea vista em jornais e revistas mundo afora. Seus moradores vêm de zonas rurais com recursos precários e tentam a sorte na capital em condições de trabalho não necessariamente favoráveis. As moradias são simples demais […]

OBRA DE HUANG YONG PING EM GALERIA NO DISTRITO 798: por se posicionarem como universais, e não apenas chineses, os artistas locais nunca receberam tanta atenção nas galerias ocidentais / Feng Li/ Getty Images

OBRA DE HUANG YONG PING EM GALERIA NO DISTRITO 798: por se posicionarem como universais, e não apenas chineses, os artistas locais nunca receberam tanta atenção nas galerias ocidentais / Feng Li/ Getty Images

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Da Redação

Publicado em 14 de janeiro de 2017 às 06h44.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h26.

Cibele Reschke, de Pequim

O distrito de Caochangdi não tem nada a ver com a cidade de Pequim moderna e contemporânea vista em jornais e revistas mundo afora. Seus moradores vêm de zonas rurais com recursos precários e tentam a sorte na capital em condições de trabalho não necessariamente favoráveis. As moradias são simples demais para comportar banheiros, então os moradores fazem a higiene pessoal em casas de banho. Muitas das construções sequer são pintadas e o espaço entre uma e outra é inferior a um metro. O comércio é tímido, restrito a pequenas lojas e tendas. Para se pegar um taxi, é necessário caminhar até a rodovia, pois poucos carros passam dentro do bairro. Mas na última semana do ano os moradores que entraram nas casas de banho encontraram fotografias, esculturas e elementos audiovisuais de alta sofisticação.

No armazém no outro quarteirão, entre sementes de girassol e biscoitos de arroz, uma televisão de tubo exibia uma das célebres apresentadoras da mídia chinesa que, da bancada, não lia o noticiário, mas recitava um poema. No internet café ao lado, quem tentava imprimir um documento precisava pular alguns computadores, já que várias exibiam vídeos produzidos por jovens artistas do cenário chinês.

As peças expostas em espaços abertos de uma vila de imigrantes integraram a exposição “Decameron”, que tinha como objetivo promover uma aproximação natural entre pessoas comuns e a arte. “O diferencial da exibição é que ela é estritamente devota à realidade, ao invés de transformar a realidade em arte”, diz Cui Cancan, curador de Decameron. O movimento de vanguarda reflete não apenas uma guinada no cenário artístico contemporâneo chinês, mas também a consolidação de vilarejos como Caochangdi como zonas de produção de arte urbana de ponta.

Em Pequim, a produção de arte tem se concentrado em distritos desde a década de 80, quando os artistas foram proibidos de se reunir no antigo Palácio de Verão – um dos mais famosos pontos turísticos da cidade – para criar peças colaborativas, como de costume faziam. Naquele período, o Distrito 798 – território de grandes fábricas a três quilômetros de Caochangdi –  fora desativado, e o governo permitiu que os artistas se instalassem nos galpões industriais, distante dos centros e das grandes massas.

Muitos estúdios e galerias se fixaram desde então e, com eles, cresceu a popularidade do como o maior centro de artes do país. Aos poucos, o bairro se transformou em um ponto turístico, repleto de bares, restaurantes e cafés – e, essencialmente, um destino comercial. A valorização dos imóveis na região se tornou um problema para os artistas que propunham um trabalho alternativo, já que se tornou caro demais sustentar estúdios por ali. A solução foi se mudar para as vizinhanças ainda mais remotas. Foi então que vilas como Caochangdi, Heiqiao e, mais recentemente, Songzhuang, ganharam espaço. “Esses lugares cresceram pelo fato de proporcionarem um aluguel mais barato para artistas emergentes, e hoje se tornaram centros de referência em arte contemporânea puramente chinesa”, afirma Chio Hoiian, pesquisadora da Universidade de Pequim, Ph.D. em arte oriental.

A arte na história 

A China passa por um momento único em sua história, marcado pela ascensão de artistas nascidos dentro da política do filho único implementada pelo ex-presidente Deng Xiaoping, que por medidas de controle populacional restringiu sistematicamente a quantidade de filhos por casal no início da década de 80. Mais individualista, essa geração amadureceu em meio a um milagre econômico promovido sob a liderança de um partido comunista, mas com a distribuição de recursos feita de maneira tipicamente capitalista.

Uma pesquisa do Centro de Estudos de Planejamento Familiar da Universidade de Pequim revelou que a  os 5% mais ricos do país detêm 23% da riqueza nacional, ao passo que os 5% mais pobres contam com apenas 0,1% de toda a renda. “Há muitas contradições na China. Alguns dos nossos artistas não tinham o que comer na infância e agora são reconhecidos internacionalmente. Um cenário artístico de alta sofisticação tem se desenvolvido nas grandes cidades, ao passo que muita gente sequer sabe o que significa ser um curador”, diz Gedaliah Afterman, israelense-australiano diretor da Blue Mountain Contemporary Art, fundação que há quatro anos promove jovens artistas chineses em exposições inovadoras como Decameron. “Essa exposição caracteriza a face da arte chinesa atual e teve Caochangdi como palco porque pobreza, intelectualismo e arte coabitam lá, o que cristaliza as transições por que passa essa sociedade”, diz Gedaliah.

Desde a abertura econômica do país com as reformas orquestradas por Xiaoping a partir de 1978, a arte contemporânea chinesa tem evoluído em um processo caracterizado por três fases. Na década de 80, o trabalho da maioria dos artistas se restringia à imitação do que se produzia no ocidente, qualquer que fosse o estilo. Já nos anos 90, com a maior leva de turistas e diplomatas presentes no país, viu-se a oportunidade de fazer dinheiro vendendo peças para colecionadores estrangeiros interessados em um potencial exotismo das obras orientais. Assim, os artistas locais produziam para atender aos interesses dos estrangeiros, de acordo com estereótipos do que eles esperavam da arte chinesa.

Nos anos 2000, com a expansão econômica, maior acesso à internet a possibilidade de formação no exterior, os artistas chineses passaram a focar muito mais no seu próprio trabalho, e começaram a desenvolver estilos mais originais. “A arte contemporânea chinesa tornou-se autêntica, não se encontra trabalhos como os nossos em nenhum outro lugar”, diz Wang Shuo, pesquisadora visitante da Universidade da Pensilvânia, Ph.D. em história da arte. Como consequência, os temas abordados também tornaram-se mais diversos. Para além da política que anteriormente dominava a produção local, hoje os artistas tocam temas universais, questões existenciais do ser humano e problemas sociais como desigualdade, poluição, tecnologia, urbanização, exclusão cultural etc.

Por se posicionarem como artistas universais, não apenas chineses, eles nunca receberam tanta atenção nas galerias ocidentais. As vendas internacionais de peças chinesas quadruplicaram desde 2009. “O desenvolvimento de um estilo próprio tem se revelado o segredo do nosso sucesso mais recente”, afirma Liu Jianhua, escultor e professor da Escola de Finas Artes da Universidade de Xangai.

Outros dois fatores ajudam a explicar a guinada na arte chinesa. O primeiro é econômico. A formação de uma classe de emergentes, fruto do milagre econômico, que conta com fanáticos e generosos colecionadores de arte. Hoje, jovens colecionadores como Michael Xufu Huang, Zhou Dawei, Lin Han e Lu Xun, ajudam a sustentar a classe artística. Na primeira metade de 2016, colecionadores chineses gastaram 2,3 bilhões de dólares em leilões, o que representa 35% do volume de vendas globais – 6,5 bilhões.

Em um estudo recente, a Artprice, organização que concentra informações do mundo artístico, considerou a China como o maior mercado de artes do mundo. O segundo fator é ideológico, já que as características peculiares de um país  de regime socialista de mercado criam tensões sociais que são um grande estímulo para a criatividade. “Nosso cenário artístico é dos mais dinâmicos e diversos do mundo, pois nosso sistema político provoca sentimentos controversos, e os nossos artistas procuram formas distintas e sutis para se expressar”, afirma Peng Feng, professor da Universidade de Pequim e um dos mais influentes curadores do país.

De que a censura do partido comunista chinês influencia o trabalho dos artistas, não há dúvidas. A classe, no entanto, apresenta controvérsias quando questionada se o fator político limita a criação. Alguns defendem que a liberdade é restrita. “Não necessariamente se usa a arte para combater a censura, já que ela faz parte de nossas vidas e nós automaticamente nos auto-censuramos”, diz Zhao Zhao, artista conceitual. Outros, como o escultor e artista experimental Qin Ga, dizem que a arte é instrumento de resistência: “a arte supera tudo”, afirma

Pequim e Xangai, os dois mais importantes centros urbanos, têm se demonstrado acolhedores a todos os gostos, métodos e estilos. Nesses locais, artistas entre clássicos, abstratos e realistas coexistem, sem deixar de ser contemporâneos. Por ser um mercado ainda jovem se comparado ao ocidental, e com imenso potencial de crescimento e alto grau de sofisticação, a expectativa é que os chineses da nova geração continuem surpreendendo – e gastando.

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