Criança e dinheiro: Ideia é que as desenvolvam noções básicas não só de finanças pessoais, mas de comportamento e cidadania (MarsYu/Thinkstock)
Marília Almeida
Publicado em 19 de novembro de 2018 às 11h09.
Última atualização em 19 de novembro de 2018 às 11h11.
A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) vai iniciar um projeto experimental para educar crianças sobre comportamento financeiro a partir da pré-escola. A iniciativa segue uma experiência feita nos Estados Unidos há 40 anos, que acompanhou um grupo de alunos desde a infância até a idade adulta, explica José Alexandre Vasco, superintendente de proteção e orientação aos investidores da CVM.
Segundo ele já há uma escola interessada no projeto no Rio de Janeiro. A ideia é que as crianças desenvolvam noções básicas não só de finanças pessoais, mas de comportamento e cidadania, e desenvolvam as chamadas competências. Depois, a experiência deve ser ampliada para mais escolas.
Não se trata de ensinar os pequenos a aplicar na bolsa, explica Vasco. São noções básicas, como esperar a vez na fila, não pegar brinquedos ou coisas dos colegas, controlar os desejos e aprender a esperar. “São coisas básicas, que não necessariamente as tornarão ricas, mas que as prepararão para controlar seu comportamento e permitirão ter o domínio de suas contas e se organizar para poupar e atingir seus objetivos”, diz Vasco.
Para fazer esse acompanhamento do comportamento dos alunos, os professores dessas escolas terão um papel fundamental e também terão de receber um treinamento relacionado a ciências comportamentais.
A proposta de começar tão cedo busca compensar o fato de, em muitos casos, os pais dessas crianças também não terem a cultura do autocontrole e da organização com as próprias contas. Por isso, o projeto inclui fazer com que os pais também aprendam as noções básicas e desenvolvam parte das competências.
O projeto faz parte de uma estratégia mais ampla da CVM, de uso das finanças comportamentais em seu trabalho de regulação do mercado de capitais como forma de tornar mais eficientes a educação financeira, a proteção ao investidor e as regras dos investimentos. Para isso, a CVM lançou uma rede de pequisas em finanças comportamentais para o investidor, que vai reunir pesquisadores de universidades que estejam fazendo projetos nessa área.
Em 2014, a CVM deu um passo importante ao criar um Centro de Estudos Comportamentais com alguns professores e viu que o campo de estudo hoje se expandiu bastante. “Temos recebido a colaboração de vários professores, que nos procuram para propor pesquisas, por isso, decidimos montar uma rede de pesquisa para organizar melhor essas colaborações”, afirma Vasco.
A rede está sendo lançada na segunda-feira, diz Vasco, acrescentando que será apresentado um estudo feito em conjunto com a Universidade Federal do Rio de Janeiro sobre os formulários para definição dos perfis de investidor de diversas corretoras e bancos. Haverá depois um estudo do CFA Institute sobre os prospectos de ofertas públicas e formas de torna-lo mais acessível para os investidores. Há também um projeto de orientação financeira via Whatsapp usando finanças comportamentais coordenado pela CVM.
A expectativa da CVM não é só receber colaborações e fechar parcerias, mas também ajudar a disseminar esse campo de estudo da psicologia econômica ou finanças comportamentais. E a proposta é ir além, ajudando em políticas públicas com estudos baseados em evidências. “Um dos grupos mais ativos que temos é o grupo de estudos de antropologia das finanças, que tem uma série de leituras e busca agora públicos diferentes para avaliar os conceitos”, diz Vasco.
Ele lembra que a educação do investidor tinha outro foco na CVM, mais voltado para divulgação de conteúdos. A partir de 2006, porém, o regulador começou a ampliar esse foco. “Ao lidar com outros públicos percebemos que precisávamos compreender melhor esse público, que é novo para nós e para muitos reguladores”, diz. E, em políticas públicas, também é nova a questão de como mudar o comportamento e aumentar o bem estar financeiro da população. Por isso, em 2013, foi criado o Centro de Estudos Comportamentais e Pesquisa da CVM.
É dentro desse esforço que se encaixa o projeto da educação para primeira infância, de trabalhar competências ligadas à educação financeira já a partir dessa idade. “É uma temática muito valorizada especialmente lá fora”, diz Vasco, citando os estudos feitos nos anos 1960 nos Estados Unidos que mostrou o impacto de fazer intervenções o mais cedo possível.
O caso citado por Vasco é o da Perry Preschool, de Ohio, Estados Unidos, e é usado até hoje como exemplo de educação fundamental. Nos anos 1960, foi feito um experimento para ajudar as crianças de uma pré-escola voltada para uma população muito pobre. A intervenção envolveu 123 crianças entre 3 e 4 anos e durou oito meses. A diferença foi que os pesquisadores identificaram as crianças e as acompanharam em vários campos, não só na questão cognitiva e de raciocínio lógico. Foram observados comportamentos, como se a criança obedecia a fila, se sabia esperar. “Isso era reportado pelos professores e essa escala de informações foi mantida”, diz Vasco.
Os pesquisadores resolveram então fazer um projeto mais amplo, avaliando essas crianças por 40 anos. E o último livro, 40 anos depois, mostrou que elas, depois de uma intervenção de apenas oito meses, e aos 43 anos, tinham uma vida completamente diferente da de seus colegas, muito melhor. “O professor James Heckman, da Universidade de Chicago, que depois ganharia um Prêmio Nobel por Econometria, descobriu que a diferença no desenvolvimento não veio da questão cognitiva, do aprendizado, mas das não cognitivas”, explica Vasco. As crianças melhoraram sua resiliência, auto confiança e a capacidade de saber esperar e de perseguir um objetivo e realizar esse objetivo, respeitando o direito do outro. “Além disso, essas crianças tiveram um menor índice de doenças e de gravidez na adolescência”, acrescenta Vasco.
Elas também atingiram níveis mais altos de estudos, muitas chegando a cursar o nível superior, e tinham renda maior. “E, calculando o retorno, foi um investimento mínimo, em que cada dólar aplicado se transformou em milhares”, afirma Vasco. Mas, mais que os bens que as crianças conseguiram, o projeto tornou-as mais capazes de enfrentar os desafios na vida, de perseguir os objetivos e não desistir.
Segundo Vasco, o projeto da primeira infância é um pré-piloto para o ano que vem. “A gente vai testar a melhor metodologia para ensinar os objetivos pedagógicos”, diz. Ele destaca que se trata de uma iniciativa que reúne vários órgãos do governo dentro da Iniciativa de Integridade Publica de Prevenção à Corrupção. A CVM contribui e participa da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e Lavagem de Dinheiro, lembra Vasco.
Dentro dessa estratégia, há a chamada “Ação 6″, que é a de prevenção á corrupção. Nossa contribuição é, a partir dessa experiência de educação financeira, tentar atuar antes, na formação das crianças”, diz.
Vasco observa que a meta de formação de poupança é muito ligada a atitudes do que racional. “Tem muito a ver com cultura”, diz. Ele cita o caso da Ásia, onde o hábito de poupar é muito forte, não só pelas instituições, já que não há rede de proteção social e as pessoas têm de poupar mais. “Países como Japão tem uma alta taxa de poupança e a da América latina é baixa, mas o Brasil tem uma das menores na região”, afirma Vasco. “Portanto, existe alguma questão cultural, e o primeiro canal de transmissão da cultura é a família”, destaca.
Dessa forma, se os pais não receberam essa cultura sobre poupança, não tem como passar. “Por isso temos de trabalhar nessa faixa de famílias, ajudando especialmente as crianças a trabalhar certos valores e desenvolver certas atitudes, que vão ter impacto muito grande com comportamento futuro desses jovens. Ele cita o caso dos trabalhos feitos com jovens do ensino médio, que apresentavam avanços, mas logo depois voltavam ao descontrole financeiro. “Uma das razões é que os mesmos fatores de personalidade que existiam voltavam e eles abandonavam os esforços”, diz. Por isso a tentativa de criar esses valores já na primeira infância.
Segundo Vasco, para um órgão que precisa estimular a formação de poupança, como a CVM, esse é o caminho. “E faz mais sentido porque não vamos só trabalhar formação de poupança, mas honestidade, integridade, valores, vai juntar todo campo da economia institucional que trabalha com valores”, diz. Ele dá o exemplo de valores como confiança. “Países em que a população tem alto grau de confiança tendem a ter um desenvolvimento maior pois, sem confiança, os contratos tem de se mais rígidos e as pessoas fazem menos negócios, o que aumenta os custos”, diz.
O projeto é, porém, bastante complexo, pois será preciso lidar com crianças a partir de três anos. Por isso, a CVM fez um workshop na semana passada com 15 especialistas de diversas áreas, desde educadores, psicólogos, médicos, para discutir como deveria ser feito o trabalho com as crianças. “Um especialista disse que o conceito abstrato de poupança não poderia ser apresentado da forma tradicional porque nessa idade o cérebro das crianças ainda está em formação e ela não entenderia”, diz Vasco.
Outro ponto importante do projeto é que as crianças ganharão um CPF, o que permitirá que os estudos continuem durante toda sua vida. “Daqui a 40 anos, podemos voltar nessas crianças e avaliar o que deu resultado.”
A CVM não tem capacidade de apoiar muitas escolas, mas vão pretende depois abrir os dados para as pré-escolas que a procurarem e dar apoio. A ideia é que, em 2020, seja lançado um grande projeto piloto, com o grupo de tratamento e controle em larga escala. “Vamos ter o CPF desse que fizer no ano que vem, mas esse seria ótimo que municípios participassem e envolvesse a rede de ensino no treinamento dos professores, material e participação.”
O projeto de 2020 deve começar no segundo semestre, com a definição do desenho da amostra. E a CVM está conversando com o Banco Mundial para ajudar na avaliação do impacto.
A CVM, segundo Vasco, tem uma escola, de uma comunidade no Rio, que atende crianças de 4 a 5 anos. E Vasco está procurando uma creche, pois a ideia é começar com crianças de 3 anos, como indicam os especialistas. “A esperança é receber mais interessados e fazer a discussão para um projeto piloto em larga escala em 2020, que possa contar com número grande de participantes para ter resultado”, diz.
Segundo Vasco, o projeto de educação financeira do ensino médio começou com 26 mil alunos, com um grupo recebendo tratamento de 13 mil e outro de mesmo número sem . Depois, o total caiu para 21 mil.
“O problema é que a pesquisa é diferente, o adolescente pode responder os formulários de pesquisa, mas as crianças de 3 anos têm de ser acompanhadas pelos professores”, lembra Vasco.