Investidores LGBTQ+ são diferentes? Pesquisadoras rebatem estudo do UBS
Doutoras em Administração levantam debate após recente relatório do banco suíço apontar que pessoas LGBTQ+ deveriam investir de forma diferente de heterossexuais cisgêneros
Paula Barra
Publicado em 1 de julho de 2021 às 08h00.
Última atualização em 1 de julho de 2021 às 13h17.
Seria possível generalizar uma orientação de investimentos para a população LGBTQIA+ ? O quanto a identidade de gênero de um grupo poderia delimitar – pelas dificuldades enfrentadas (aceitação pela sociedade, lutas contra homofobia, entre outros) – suas possibilidades mais adequadas para tomada de risco e oportunidades no mercado financeiro ?
O debate foi levantado por duas professoras doutoras em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGA/UFRGS) em artigo publicado nesta quinta-feira, 1. O texto vem em resposta a um recente relatório do banco suíço UBS, do dia 16 de junho, intitulado "Why are LGBTQ+ investors different?" ("Por que os investidores LGBTQ+ são diferentes?", em tradução livre).
Pontuando as convergências e afastamentos de ideias com o relatório do banco, as professoras Vanessa Amaral Prestes, da Universidade La Salle, e Aline Mendonça Fraga, da Faculdade Sistema de Ensino Gaúcho (FASEG), pesquisadoras na área de diversidade, começam abordando que, como bem colocado pelos autores do relatório Matthew Carter e Paul Donovan, pessoas LGBTQIA+ partem de distintos lugares e possuem diversidade de condições difíceis de abarcar.
Portanto, como ponto de partida, apontam que é preciso considerar que não existe um "perfil ou padrão" de uma pessoa LGBTQIA +. "Toda pessoa, LGBTQIA+ ou não, é atravessada por diferentes marcadores sociais: raça, classe, geração, origem, etc".
Elas concordam com os autores sobre o ponto que pessoas LGBTQIA+, em geral, enfrentam obstáculos para vivência de sua plena identidade de gênero e que a homofobia ainda está presente. No entanto, escrevem que "considerar que a priori são pessoas deserdadas e que não possuem incentivo familiar para tornarem-se empreendedoras é um discurso que acaba limitando as oportunidades", sejam voltadas ao mercado de trabalho ou em investimentos.
Para as autoras, a orientação generalista do banco aos investidores LGBTQIA+: restringe possibilidades; inviabiliza a multiplicidade e a diversidade LGBTQIA+; e, por fim, não contribui com a promoção da equidade dos direitos humanos.
Segundo elas, se o objetivo é criar um direcionamento efetivo de investimentos para pessoas LGBTQIA+, a orientação não poderia partir da premissa de que são pessoas homogêneas em suas vivências, valores e dificuldades.
Dessa forma, as pesquisadoras sugerem que, visando mapear melhor a questão e dar um direcionamento mais condizente, bancos e corretoras poderiam incluir em suas pesquisas de suitability -- usadas para definir o perfil do investidor (de conservador a agressivo) --, além das perguntas relacionados ao comportamento financeiro e de orçamento da pessoa, também categorias de gênero e sexualidade. Tal iniciativa poderia ajudar a compreender melhor a necessidade de cada pessoa dentro de um grupo que é "histórica e marcadamente diverso".
Abaixo, o artigo na íntegra:
A diversidade LGBTQIA+ no mercado financeiro: de onde partir e por que limitar?
Réplica ao relatório: Why are LGBTQ+ investors different?, de autoria de Matthew Carter, Estrategista do UBS AG London Branch e Paul Donovan, Economista chefe do UBS GWM, UBS AG London Branch.
Texto de autoria de Vanessa Amaral Prestes* e Aline Mendonça Fraga**
Por que investidores LGBTQ+ deveriam investir de modo diferente da comunidade cisgênero heterossexual? Esse é o questionamento que mobilizou Matthew Carter e Paul Donovan, executivos do UBS, um dos maiores bancos de investimentos do mundo, a elaborarem um relatório exclusivo de investimentos.
Em relatório publicado em 16 de junho de 2021, os autores argumentam a favor de estratégias específicas direcionadas para investidores LGBTQIA+, uma vez que esse grupo social tem preocupações distintas, necessidades particulares e vivencia desafios no âmbito do trabalho, família, moradia e saúde. Carter e Donovan argumentam que, posto que não existe plena igualdade jurídica e social com relação às diferentes identidades de gênero e orientações sexuais, as decisões no momento de investir também devem ser diferenciadas.
Aproveitando o ensejo do mês de junho, no qual é celebrado o dia internacional do orgulho LGBTQIA+ e são amplamente promovidas reflexões sobre respeito e equidade, consideramos oportuno abrir o debate, redigindo uma réplica ao referido relatório. Para tanto, pontuamos uma ideia de convergência e outras de afastamento das elaborações dos autores.
- Como bem pontuado pelos autores, no início do relatório, sabe-se que o grupo LGBTQIA+ parte de distintos lugares e possui uma diversidade de condições que a própria sigla tem dificuldade de abarcar. A sigla com história própria e repleta de significados, que acrescenta pelo menos outras duas letras, busca integrar a diversidade de sexualidades e identidades - lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros, queer, intersexo, assexuais - LGBTQIA+. As existências LGBTQIA+, múltiplas e diversas, marcam a heterogeneidade do grupo, por vezes tomado como uma organização coesa, homogênea e uniforme. Como ponto de partida é preciso considerar que não existe perfil ou padrão de uma "persona LGBTQIA+". Toda pessoa, LGBTQIA+ ou não, é atravessada por diferentes marcadores sociais: raça, classe, geração, origem, etc. que as diferenciam e influenciam de modo a potencializar ou limitar as vivências em quaisquer ambientes e instituições por onde possam circular.
- Concordamos com os autores que pessoas LGBTQIA+, em geral, enfrentam barreiras quanto à vivência livre e plena da sexualidade e da identidade de gênero. Também corroboramos que a homofobia está presente globalmente, guardadas as diferenças sociais, culturais e religiosas de cada país ou região. Entretanto, considerar a priori que são pessoas deserdadas e que não possuem incentivo familiar para tornarem-se empreendedoras é um discurso que acaba circunscrevendo as oportunidades de atuação, tanto no mercado de trabalho, como nas decisões a serem tomadas relativamente aos investimentos.
Entendemos, também, que qualquer pessoa que pretende investir deve avaliar riscos e que, fazendo o uso das palavras dos autores, "é mais fácil arriscar se há uma casa para a qual voltar". Contudo, compreendemos que a orientação generalista de investimentos: i) restringe possibilidades; ii) invisibiliza a multiplicidade e a diversidade LGBTQIA+; e, por fim, iii) não contribui com a promoção da equidade e dos direitos humanos:
- i) Restringe o acesso e as possibilidades ao tomar o grupo como homogêneo em suas vivências, valores e dificuldades. O relatório recomenda a adesão a estratégias mais conservadoras, de longevidade para financiar a aposentadoria, com menor risco e maior liquidez. Em contrapartida, não indicam para pessoas LGBTQIA+ investimentos com retornos potenciais que envolveriam maior risco e, em tese, dificultariam uma proteção contra despesas inesperadas, como custos de saúde que possivelmente fariam parte da vida dessas pessoas. Desse modo, o raciocínio delineado, além de limitar o acesso, também pode restringir a maximização de resultados financeiros que poderiam ser obtidos a partir de um escopo mais amplo de atuação.
- ii) Invisibiliza a diversidade uma vez que não problematiza as diferentes existências lésbicas, gays, trans, queer, intersexo, assexuais, entre outras que abarcam a diversidade de gênero e orientações sexuais. É possível perceber problemas conceituais, posto que pessoas trans, por exemplo, podem ser heterossexuais, assim como lésbicas, gays ou assexuais podem ser cisgênero. Além disso, os autores assumem que há maior suporte familiar para lidar com preconceitos raciais, de gênero e religiosos do que para aqueles relacionados a gênero ou sexualidade. Pensar a diversidade sexual e de gênero sem considerar as imbricações com os demais marcadores sociais de desigualdade pode, equivocadamente, construir marginalidades ou privilégios inconsistentes na prática.
- iii) Não contribui com a promoção da equidade e direitos humanos assumindo, antecipadamente, sentenças para existências diversas, tais como [trechos extraídos do relatório]: "Ser LGBTQ+ significa que há menos empregos"; "Mudar de país não é uma opção atraente para um membro da comunidade LGBTQ"; "Casais homossexuais têm menores possibilidades de terem empréstimos aprovados"; "Investidores LGBTQ+ estão mais afastados das suas famílias"; "Membros da comunidade LGBTQ+ provavelmente enfrentarão mais custos de saúde ao longo do tempo"; "A instância de problemas de saúde mental na comunidade LGBTQ+ é significativamente maior do que na população heterossexual".
Nesse sentido, entendemos que é preciso compreender a dinamicidade e as sutilezas que envolvem as diferentes trajetórias de pessoas que compõem a comunidade LGBTQIA+, para que então possamos alcançar um mapeamento sobre essa atuação no mercado financeiro. Para além disso, não podemos deixar de considerar os elementos contextuais da sociedade sobre a qual se fala, ou seja, referências globais devem passar por análise econômica, política e social local.
Atualmente, o que percebemos são corretoras e bancos realizando pesquisas de suitability que definem se o perfil investidor é conservador, moderado ou arrojado com base em dados que não dizem respeito à orientação sexual e/ou à identidade de gênero, mas ao comportamento financeiro e de orçamento da pessoa respondente. Desse modo, se a intenção for criar um direcionamento efetivo sobre o comportamento de pessoas LGBTQIA+ no mercado financeiro, sugerimos que gênero e sexualidade sejam categorias consideradas nas pesquisas, no sentido de compreender necessidades singulares de cada cliente antes da proposta de solução única direcionada para um grupo que é histórica e marcadamente diverso.
* Vanessa Amaral Prestes
Doutora em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGA/UFRGS). É professora da graduação e supervisora de extensão na Universidade La Salle (Unilasalle), e pesquisadora do Observatório Internacional de Carreiras (OIC/PPGA/UFRGS).
** Aline Mendonça Fraga
Doutora em Administração pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGA/UFRGS). É professora de graduação e pós-graduação na Faculdade do Sistema de Ensino Gaúcho (FASEG), professora convidada na pós-graduação da Universidade La Salle (Unilasalle), pesquisadora do Observatório Internacional de Carreiras (OIC/PPGA/UFRGS) e membra do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade do IFRS - Campus Osório.
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