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Bitcoin em El Salvador: o direito monetário como estratégia

Entenda mais sobre o processo que fez com que o bitcoin se tornasse uma moeda de curso legal em El Salvador e quais podem ser as implicações jurídicas e econômicas para o país

(Benoit Tessier/Reuters)
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Lucas Josa

Publicado em 23 de junho de 2021 às 16h53.

Última atualização em 25 de junho de 2021 às 11h03.

Recentemente, o mundo foi surpreendido com a notícia de que El Savador, país de economia modesta, adotou o bitcoin como uma de suas moedas oficiais. Por meio da denominada Ley Bitcoin, em 9 de Junho de 2021, o Congresso salvadorenho determinou, por ampla maioria, que a criptomoeda terá curso legal no país. Isso significa que a partir do momento em que a lei entrar em vigor, todas as pessoas, físicas e jurídicas, que realizam transações monetárias dentro daquele território terão a obrigação de receber o bitcoin como meio de quitação de seus créditos.

O curso legal refere-se à qualidade de determinado meio de pagamento de servir de mecanismo de liberação das dívidas contraídas no mercado . A atribuição de curso legal consiste em um dos principais mecanismos utilizados por um estado para induzir a demanda por determinado meio de pagamento na economia.

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Além da atribuição de curso legal, El Salvador adotou ainda outras medidas para incentivar o uso do bitcoin no país latino americano. A ilha salvadorenha facultou, por exemplo, que todas as dívidas de valor poderão ser expressas na unidade de conta da criptomoeda. Determinou que todos os tributos poderão ser pagos em bitcoin. Determinou que não incidirá sobre a valorização da criptomoeda o imposto sobre ganho de capital. Determinou, ainda, que o Estado promoverá capacitação e mecanismos necessários para que toda a população tenha acesso a transações financeiras com bitcoin.

Para diminuir o risco de a população sofrer com perdas financeiras em virtude da alta volatilidade do bitcoin, El Salvador foi ainda mais longe e determinou a criação de um fundo junto ao banco de desenvolvimento do país para garantir a conversibilidade automática e instantânea de bitcoin em Dólar. Ainda não foram divulgadas notícias acerca de como esse fundo será operacionalizado. De acordo com as declarações do Presidente Bukele, a ideia é que a pessoa que receba bitcoin como forma de pagamento de seus créditos possa se livrar imediatamente do risco da depreciação da criptomoeda.

Para os defensores das medidas de El Salvador, razões para que o país incentive o uso do bitcoin em território nacional não faltam. No ato da publicação da lei, o próprio Presidente Bukele afirmou que a adoção do bitcoin como moeda oficial representa uma tentativa de atração de investimentos estrangeiros para o país. Além disso, espera-se ampliar a inclusão financeira em um país que possui alto índice de pessoas desbancarizadas, e também aumentar o volume de remessas internacionais (remittances) para dentro do território nacional. Para um país cujo PIB é composto em parte de remessas internacionais (cerca de 16%), isso não é pouco.

Não se pode deixar de mencionar, porém, que o Banco Mundial, em que pese, por um lado, ter se posicionado no sentido a auxiliar El Salvador em processos regulatórios em geral, rejeitou, por outro lado, a solicitação propriamente dita de apoio ao país latino-americano para oficialização da moeda virtual, citando a preocupação com a transparência e os impactos ambientais da mineração do bitcoin.

O Fundo Monetário Internacional (FMI) também se pronunciou de forma contrária ao movimento de El Salvador, por meio de seu diretor de comunicações Gerry Rice, apontando vislumbrar preocupações com questões macroeconômicas, financeiras e jurídicas na adesão do bitcoin no país da América Central.

Para além de todas essas advertências, salta ainda à vista o fato de que os mecanismos institucionais utilizados pelo país para se incentivar o uso do bitcoin no país salvadorenho são bastante peculiares, e preocupantes em certa medida. O uso exclusivo de institutos jurídicos de direito monetário (e tributário em certa medida) para se incentivar o uso de bitcoin e outras criptomoedas no país parece ir na contramão do que os países protagonistas nessa seara têm feito. Alguns exemplos interessantes seriam o Japão e a Suíça.

Embora o Japão tenha publicado uma lei em 2015 reconhecendo o bitcoin como meio de pagamento, o país asiático endereçou juntamente com essa medida uma série de regras de caráter estruturante de observância obrigatória por parte dos atores que negociam criptoativos. Entre regras adotadas, incluem-se a necessidade de parâmetros mínimos para a estruturação societária das corretoras, regras de KYC (know your client), notificações de operações suspeitas à autoridade competente, entre outras.

A mesma preocupação teve a Suíça ao transformar o cantão de Zug em um criptovalley. Diversas regras de cunho societário foram adotadas no país. Entre elas, incluem-se rígidas regras sobre falência. A estruturação do mercado de criptoativos por meio de regras societárias principalmente teve o objetivo não apenas de fazer com que criptoativos circulem no país como meio de pagamento, mas também como outras formas de valor como, por exemplo, securities e, inclusive, bens móveis e imóveis desprovidos de natureza jurídica específica (bens tokenizados em geral).

O país europeu passou também a aceitar algumas criptomoedas como forma de pagamento de seus tributos. Diferentemente de El Salvador, entretanto, o governo suíço não recolherá o valor do tributo na forma de criptoativo. O contribuinte poderá pagar até um determinado valor em cripto, mas o governo o converterá em francos suíços junto a uma entidade parceira para recolher o valor.

Da simples comparação entre as experiências de El Salvador, do Japão e da Suíça, pode-se conceber pelo menos dois processos distintos de institucionalização de criptoativos em um país cujo o objetivo seja o de incentivar a circulação das tecnologias em âmbito local. De um lado, tem-se um processo dirigido por regras de cunho monetário e tributário eminentemente. De outro, um processo dirigido por regras de caráter societário, e também regras voltadas à prevenção de crimes sobretudo.

No atual estágio de desenvolvimento dos mercados cripto, é impossível comparar qual estratégia é a mais eficaz para se induzir investimentos estrangeiros, remessas internacionais e outras possíveis vantagens advindas da adoção universal da tecnologia como meio de pagamento ou qualquer outra coisa. Mesmo que os mercados estivessem mais desenvolvidos nos três países, seria muito difícil compará-los, porque as condições materiais que podem fazer os mercados prosperar vão muito além da produção de leis, muito embora essa estratégia tenha se revelado também como uma questão imprescindível .

Para além da produção de leis, fatores como infraestrutura tecnológica e de telecomunicações do país, para possibilitar a inclusão digital da população, a estabilidade da conexão e a velocidade da internet, e até mesmo fatores políticos e culturais como, por exemplo, a propensão ao uso criminoso de criptoativos e a aptidão de evitá-los ou puni-los representam variáveis importantes para o desenvolvimento dos mercados de criptoativos.

Se se considera que grande parte da população de El Salvador ainda não tem sequer acesso à internet, então já se começa a vislumbrar possíveis problemas de implementação da moeda virtual no país. São questões que atingem a própria igualdade de condições dos contribuintes daquele local. Para além desse problema de ordem estrutural, pensa-se ainda que o desenho institucional de incentivo ao mercado baseado em regras monetárias e tributárias exclusivamente não será capaz por si só de consolidar um mercado vibrante para o bitcoin.

Se El Salvador não desenhar regras societárias mínimas - incluindo regras de contabilidade - para estruturar as empresas e os negócios que transacionam o bitcoin, então o país certamente dará ensejo a que crimes de toda sorte sejam praticados com a criptomoeda e minará, com isso, grande parte do potencial benéfico da tecnologia.

Em suma, enquanto o país não tiver infraestrutura adequada para universalizar o acesso à internet, e enquanto não forem criadas regras específicas para se combater os crimes que podem ser facilitados em virtude das propriedades pseudônimas dos criptoativos, a estratégia de El Salvador não passará de um artifício para que o país possa apostar na loteria da valorização do bitcoin. E de forma preocupante, diga-se de passagem.

A estratégia de se criar um fundo público para se garantir a conversão do bitcoin em dólares faz apenas com que o Estado absorva os riscos da volatilidade da criptomoeda. Se o valor do bitcoin subir, bem. Se não subir, o Estado pagará, e caro, pela aposta. E quando se diz que o Estado pagará, na verdade, não é o Estado propriamente quem o fará, mas os contribuintes que o financiam com o dinheiro dos impostos.

Apostar é fácil, mas apostar com o dinheiro dos outros é mais fácil ainda.

* Marcelo de Castro Cunha Filho é pesquisador no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da Fundação Getulio Vargas. Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo. Mestre em Direito e Inovação pela Universidade Federal de Juiz de Fora.

Juliana Abrusio é advogada, doutora em Direito pela PUC-SP. Mestre em Direito pela Università degli Studi di Roma Tor Vergata. Professora Permanente do Programa de Mestrado e Doutorado em Direito Político e Econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

No curso "Decifrando as Criptomoedas" da EXAME Academy, Nicholas Sacchi, mergulha no universo de criptoativos, com o objetivo de desmistificar e trazer clareza sobre o seu funcionamento.Confira.

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