O direito à greve no coração do capitalismo
O país que tem o liberalismo econômico como cânon também tem alguns dos sindicatos mais poderosos
Rafael Kato
Publicado em 26 de maio de 2017 às 13h01.
Última atualização em 26 de maio de 2017 às 17h40.
Reportagem publicada originalmente em EXAME Hoje, app disponível naApp Storee noGoogle Play. Para ler reportagens antecipadamente,assine EXAME Hoje.
LOS ANGELES — Nas últimas semanas de abril esta cidade parecia ter prendido coletivamente a respiração. Não era a primeira vez que isso acontecia – na verdade, desde 1941, quando os animadores da Disney cruzaram os braços, a indústria que mais paga impostos no município de Los Angeles teme o deflagrar desse terror paralisante.
Cinema e TV nos Estados Unidos têm dimensões industriais – e, como toda indústria, tem mão de obra sindicalizada. E a mão de obra sindicalizada sabe muito bem o valor que tem. Executivos e financiadores podem movimentar bilhões de dólares, mas que poder eles tem quando “os criativos” (como são conhecidos por aqui) se recusarem a escrever, atuar, desenhar, dirigir?
E era exatamente isso que parecia prestes a acontecer: no dia 1 de maio de 2017 terminava a validade do acordo de 10 anos celebrado entre a Writers Guild of America e os grandes estúdios (Paramount, Universal, Disney, Warner Bros., Sony, Fox) e suas subsidiárias, incluindo as divisões “de arte” e as produtoras de conteúdo para TV. Como acontece sempre numa negociação entre trabalhadores e empresários, a mão de obra queria mais: maiores contribuições patronais para o fundo de saúde dos membros da WGA; aumento do valor do piso salarial; novos valores para roteiristas trabalhando em minisséries; aumento dos percentuais devidos em exibições nas novas plataformas streaming e de TV on demand; e muitas outras coisas na mesma linha. Séries aparentemente intermináveis de negociações terminavam sem resolução, e o terror aumentava – seria 2007 de novo? Ou pior, 1988?
Em 2007 o mesmo sindicato, a WGA, declarou e manteve uma das mais longas paralisações de Hollywood – 14 semanas, de novembro de 2007 a fevereiro de 2008. Filmes em desenvolvimento e pré produção, com roteiros que ainda dependiam de revisões, novas versões ou adendos, ficaram parados; calendários de filmagem (e, com eles, disponibilidade de atores, equipe, diretores) foram jogados fora; séries de TV, que utilizam pequenos exércitos de roteiristas e têm um período de produção muito mais curto, simplesmente saíram do ar ou passaram a exibir apenas episódios antigos, para desgosto dos fãs. Comerciais, videoclipes, vídeos industriais, eventos de prêmios – tudo o que envolve roteiristas subitamente deixou de existir. Os Globos de Ouro – dos quais faço parte, inclusive da equipe de produção - não podiam quebrar sua obrigação contratual com a rede NBC, e foram ao ar mais ou menos como uma festa de formatura, com membros da diretoria entregando os prêmios o melhor que podiam, e uma plateia de jornalistas e amigos. Porque, eu deveria ter acrescentado, a Screen Actors Guild, organização profissional de atores, também entrou em greve, em solidariedade com os roteiristas.
E essa não foi nem a greve mais longa: em 1988 os roteiristas pararam por 22 semanas. Eu me lembro bem: parecia o crash da bolsa de 1929.
O país que tem o liberalismo econômico como cânon também tem alguns dos sindicatos mais poderosos. E a indústria do entretenimento abriga alguns dos mais eficientes entre os mais poderosos.
A organização trabalhista do cinema começou na década de 1920, quando o que viriam a ser os grandes estúdios mudaram-se de Nova York para Los Angeles, movidos por três atrativos: sol o ano inteiro, baixo custo e amplas opções de terrenos e imóveis, e a falta de sindicatos, que já estavam organizados na costa leste.
Os dois primeiros elementos se mostraram generosos. Os sindicatos, contudo, acompanharam William Fox, os irmãos Warner, Louis B. Mayer e companhia de Nova York até a borda do Pacífico.
As primeiras profissões a se organizarem em sindicatos em Los Angeles são, até hoje, as entidades não-criativas mais poderosas da indústria: eletricistas e motoristas de carga , os temidos teamsters. Imagine cinema em grande escala sem estas duas atividades – não é difícil saber a origem de sua força.
Nos primeiros dias 1927, depois de mais um ano tentando contornar ou enfrentar os sindicatos de mão de obra especializada, Louis B. Mayer, chefão da Metro, chamou seus colegas, donos e líderes dos principais estúdios, para um jantar em sua casa – em pauta, a criação de algum tipo de sociedade ou associação que pudesse representar os interesses patronais em conjunto, perante as organizações sindicais. A ideia foi bem acolhida. No dia 11 de janeiro de 1927 Mayer estendeu a 36 pessoas, incluindo agora outros líderes da nascente indústria, um convite para um jantar formal no hotel Ambassador, em Hollywood. Ao final da noite estava criada a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Aquela do Oscar.
Seis anos depois os atores se organizavam na primeira “guilda” – nome adotado para se diferenciar dos sindicatos, unions, e indicar o trabalho criativo de seus associados: a Screen Actors Guild. Em 1941, os animadores da Disney paravam de trabalhar exigindo melhores condições e pagamentos – e lançando a semente da Guilda dos Animadores. Em 1954 os roteiristas se organizavam na Writers Guild of America. Em 1960, foi a vez dos diretores, criando a Directors Guild ( e a SAG teve sua primeira greve geral, sob a liderança de seu então presidente- Ronald Reagan). Os produtores – definidos como produtores autônomos, que não ocupavam cargos executivos nos estúdios – foram os últimos a se sindicalizar, criando a Producers Guild of America em 1962.
A essa altura o studio system, que definira a produção de Hollywood do começo do século 20 até meados dos anos 1950, estava morto, fraturado pelo peso das obrigações trabalhistas, a constante pressão dos sindicatos e a mudança na legislação federal que os impediu de serem donos também das cadeias de exibição. Atores, diretores, roteiristas e a maior parte de produtores e técnicos agora não eram mais empregados assalariados dos estúdios, mas agentes livres, negociando contratos independentemente. O real poder das guildas começa aí.
E, como se vê, não termina.
Nem o acordo dos estúdios nem o dos profissionais com as guildas são obrigatórios. Muita gente não é sindicalizada – ou por não ter as credenciais necessárias (as guildas são altamente seletivas) ou por opção – Quentin Tarantino, por exemplo, não é membro nem da WGA nem da DGA. Produtores independentes, trabalhando com baixos orçamentos, podem utilizar qualquer tipo de talento, sindicalizado ou não. Mas todos os grandes estúdios são signatários de acordos com as guildas e sindicatos cobrindo toda a gama da criação e execução audiovisual, das estrelas ao ajustador do foco, do cineasta ao maquiador. Em troca do reconhecimento das guildas – e de contribuições altas e obrigatórias para os fundos de pensão e saúde das organizações – os estúdios têm acesso à elite da mão de obra qualificada. E em troca de sua fidelidade às guildas – que inclui parar quando a organização declara greve- os profissionais têm assessoria jurídica de primeira, plano de saúde que cobre praticamente todas as necessidades dos afiliados, uma generosa pensão e acesso a seminários, cursos e eventos de networking.
Todo mundo ganha e, por isso, todo mundo perde se essa delicado equilíbrio é rompido. Como se diz por aqui: no business, no show.