Economia

Não há receita contra crise da covid, diz Mervyn King, ex-Bank of England

Presidente do banco central britânico entre 2003 e 2013, no auge da crise financeira, King conversou com EXAME sobre dívida, Brexit e o mundo pós-pandemia

Mervyn King, ex-presidente do Bank of England (Chris Ratcliffe/Bloomberg)

Mervyn King, ex-presidente do Bank of England (Chris Ratcliffe/Bloomberg)

João Pedro Caleiro

João Pedro Caleiro

Publicado em 1 de agosto de 2020 às 08h00.

Mervyn King entende de crises. Presidente do banco central do Reino Unido entre 2003 e 2013, ele estava no olho do furacão quando estorou a última grande crise global, em 2008.

Mas desta vez é diferente - e ainda mais difícil. Os países tiveram que efetivamente suspender a economia de mercado, e não podem simplesmente distribuir estímulos se a ideia para conter a pandemia é justamente que as pessoas não circulem:

"Não há receita, é um processo de tentativa e erro", diz King, hoje membro do Parlamento inglês. Sua conclusão é que nesta crise, são os governos e não os bancos centrais que importam de verdade.

Alguns meses após lançar o livro "Incerteza Radical" junto com o economista John Kay, King conversou com EXAME por telefone sobre dívida, inflação, os desequilíbrios globais e riscos no horizonte para a independência dos BCs.

Ele destoa de muitos colegas ao classificar o Brexit, saída do Reino Unido da União Europeia, como not a big deal (não grande coisa) com "impacto negligenciável" na renda britânica. Veja os principais trechos da conversa:

Você foi presidente do Banco Central da Inglaterra no auge da crise financeira. A receita contra a recessão na época foi expandir balanços e cortar juros. Devemos fazer o mesmo agora?

Não. Nem todas as recessões são causadas pelos mesmos fatores, e essa é diferente de tudo que já vimos. Não é fruto da cautela de negócios ou famílias, e que cortar juros as faria gastar hoje e não amanhã. Ela é fruto de uma ordem do governo para ficar em casa, não ir ao trabalho ou às lojas, e da incerteza sobre as consequências para a saúde de ir a estes locais.

A ideia de que uma pequena mudança nos juros ou na oferta monetária seria apropriada neste cenário não faz sentido. Não há receita, é um processo de tentativa e erro. O governo fechou a economia com uma mão, então não faz sentido usar estímulo fiscal e monetário pela outra.

Você tem que navegar entre duas rochas desagradáveis. Uma são as infecções e mortes; se você não fechar o suficiente, continuarão em alta. A outra é a perda do PIB; se fechar demais ou por muito tempo, gera um dano econômico enorme.

Essa é uma crise em que governos importam muito mais que bancos centrais, pois são eles que decidem o quanto da economia fechar, além de emprestar e dar recursos diretamente aos negócios. Eles suspenderam a economia de mercado, por enquanto. Tirar o apoio rápido demais quebraria negócios e danificaria a capacidade produtiva e o crescimento futuro.

Na crise de 2008 você enfatizou a noção do “risco moral”, de que resgatar os bancos criava um incentivo perverso, e foi criticado por isso. Neste caso, é justo dizer que a crise não é culpa de ninguém. Há "risco moral" envolvido em resgatar negócios, por exemplo?

Não podemos culpar os negócios pela decisão de fechar a economia, enquanto que o sistema bancário claramente havia se deixado tornar um sistema muito frágil antes de 2008. Talvez o termo “risco moral” seja infeliz, mas é um termo técnico que significa que quando o governo introduz alguma política ou intervenção, precisa pensar em como o setor privado vai reagir.

O suporte aos negócios nos primeiros estágios dessa crise foi para evitar que falissem, já que não tem culpa de estarem nessa posição. Não há um papel para o risco moral neste caso. Mas na medida que se remove as restrições, é preciso pensar até que ponto seguir com o apoio.

Há escritórios abertos no Reino Unido, e já se pode voltar a trabalhar. Mas restaurantes e a indústria da hospitalidade, no entanto, não sobrevivem com as restrições atuais, então os governos precisam apoia-los até que elas não sejam necessárias. Isso talvez só ocorra quando houver uma vacina.

As apostas numa recuperação em V parecem perder força. Como você acha que será?

Não sei, e qualquer um que finja saber está sendo insensato. Há muitos dados conflitantes circulando. Quando acabarem as restrições, veremos um salto de volta, mas não para onde estávamos em dezembro de 2019.

O teste será quando tivermos uma vacina acessível e as pessoas já não se preocuparem com a doença. O mercado vai canalizar recursos em firmas e setores diferentes, para uma nova alocação de recursos pós-covid. Haverá foco maior em resiliência e uma mudança significativa na abordagem just in time para insumos de manufatura, com impacto no comércio internacional. Haverá efeitos de longo prazo, mas não no nível de PIB, e sim no padrão de demanda e produção.

No curto prazo, são apenas chutes. Os dados de inflação não são muito bons, e isso importa porque o crescimento real do PIB é calculado frequentemente com estimativas de PIB nominal, que depois são deflacionadas. As autoridades estatísticas estão simplesmente inventando números quando não há preços para serem medidos.

Mesmo antes desta crise já se debatia estagnação secular. Com todas as medidas de expansão pós-2008 não houve pressão inflacionaria, o que se credita a várias forças - demográficas, tecnológicas, etc. Essa crise será deflacionária?

Não necessariamente. A razão para o crescimento baixo na última década é que as grandes economias do mundo estavam desequilibradas. A China, por exemplo, precisava transferir capital e trabalho dos setores exportadores para os de demanda interna. Já a Alemanha tinha capacidade excessiva no setor exportador e um superávit comercial enorme e insustentável. Os EUA e Reino Unido precisavam deslocar recursos do consumo para exportação, investimento e substituição de importações. Nessa situação, os preços não dão os sinais apropriados e você fica preso investindo em setores de produtividade baixa.

Outro fator são as firmas zumbis, que podem rolar seus empréstimos com taxas baixas, mas não pagar o empréstimo inicial. Sem o processo pelo qual firmas velhas e improdutivas desaparecem e firmas novas e produtivas crescem, ficamos presos em uma armadilha do baixo crescimento e inflação. Isso pode mudar se finalmente essas empresas zumbis quebrarem.

Há outros riscos para a inflação: em muitos países os bancos centrais, incluindo BCE e Fed, estão fazendo essencialmente política fiscal, não monetária. O risco é que passando a covid-19, os políticos dirão que talvez parte destas ações, de apoio a setores ou entes subnacionais, eram necessárias, mas deveriam ter sido decididas por políticos eleitos.

Nesse caso a independência dos bancos centrais, que foi central para a inflação baixa e estável desde os anos 80, pode ser ameaçada por governos que queiram fazer com que imprimam dinheiro para gastar. Há risco disso levar a uma inflação alta.

Você citou a Alemanha, que acumulou muitos recursos, mas agora fez um dos maiores pacotes contra a crise. O Brasil terá uma explosão na relação divida/PIB. Além de calotes corporativos, também teremos de países?

Muitas pessoas estão com a mentalidade de que tudo ia bem antes da covid-19 e que todos os problemas vêm dela. É um erro grave. Havia vários problemas antes, e um deles era a dívida em relação ao PIB, ainda maior no final de 2019 do que no inicio de 2007, pré-crise. Com a covid-19 este nível subiu muito e em toda parte, no setor de negócios e nos países. Em alguns europeus, como o Reino Unido, a relação pode subir entre 20 a 30 pontos percentuais e chegar a 120%.

Isso pode ser financiado se após a doença tivermos um déficit orçamentário com espaço para um pagamento equilibrado de juros. O governo poderá pegar emprestado nessas taxas, abaixo do crescimento econômico, e a proporção divida/PIB irá gradualmente cair até o nível pré-covid.

Um problema maior são países menores e emergentes que se endividaram em moeda estrangeira. Esses irão sofrer para pagar sem alguma reestruturação ou perdão da dívida. E podemos esperar também falências nos setores de negócios e bancário em algumas partes do mundo, com risco real de criar uma nova crise.

Uma das coisas que já não vinha bem pré-crise era a guerra comercial. A globalização será ainda mais questionada?

O argumento básico das vantagens competitivas e do comércio não sumirá, mas aspectos da globalização que vão além disso serão revertidos, como o livre movimento de pessoas. Muitos países vão desejar que tivessem fechado viagens internacionais antes, e será preciso impor rapidamente checagens de saúde em aeroportos se surgir um vírus em outro lugar. Mas o comércio livre é algo restrito e bem definido, e que pouco a ver com propriedade intelectual, abrir acesso, e fatores políticos ligados a acordos comerciais ou empréstimos do FMI. A globalização tendeu a ir muito além.

Você está preocupado com o Brexit e como tem sido conduzido?

O Brexit não é grande coisa, e no longo prazo as consequências econômicas serão muito pequenas. Se haverá um acordo comercial entre o Reino Unido e a União Europeia, é algo ainda em aberto. Os políticos gostam de chegar a acordos, então acho que vão tentar muito, mas há linhas vermelhas dos dois lados que são difíceis de conciliar.

A UE quer impor suas regulações para ter comércio livre, o que não é normalmente parte de acordos do tipo, e não acho que o Reino Unido aceitaria. Não tem sentido sair do bloco para poder controlar suas próprias regras, e daí abrir mão disso para ter um acordo. Seria pior do que ficar na UE, pois neste caso o país teria voz sobre quais regras seriam essas.

No longo prazo haverá mudanças nos fluxos do comércio, especialmente na agricultura e provavelmente nos carros, mas o impacto na renda nacional será negligenciável. No curto prazo, pode haver problemas na transição para um acordo de livre comércio ou para um não-acordo. Isso significaria comercializar nos termos da OMC (Organização Mundial do Comércio). Mas já é o que fazemos com a maior parte do mundo, e o comércio com estes países cresce mais rápido do que com a UE.

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