Selo de aprovação das gigantes
A pandemia de covid-19 abalou o desempenho de pequenas e médias empresas de segmentos tão diversos quanto as suas soluções criadas ao mercado. Colocadas à prova, muitas delas não foram capazes de encontrar no período parceiros estratégicos e subsídio suficientes para seguir adiante, seja para a maturação do negócio ou para apoiar a necessidade gritante por reajustes operacionais e por inovação. Para a catarinense Motorista PX, porém, o choque se mostrou positivo. Nascida em 2020 da proposta de desafogar o dia a dia burocrático das operações logísticas do transporte rodoviário de cargas, a startup de Joinville ganhou capilaridade e diversidade nos últimos dois anos, passando a atender um grande contingente de empresas do setor acostumadas a trabalhar com uma quantidade considerável de caminhões próprios.
O que a Motorista PX faz, na prática, é conectar transportadoras e motoristas profissionais autônomos, numa espécie de “marketplace do frete”. Por meio da plataforma da startup, empresas podem cadastrar seus trajetos incluindo informações sobre duração, tipo de carga e até mesmo modelo dos veículos da frota e abrir um processo seletivo em busca dos motoristas que conduzirão a carga até o destino final. Há algum tempo, a operação também passou a incluir empresas com frotas próprias que realizam entregas breves nas grandes cidades, incluindo companhias como Ambev, a empresa de alimentos GT Foods e até a varejista Mercado Livre. O resultado foi um salto considerável no número de clientes totais — e de receita. Em 2022, o faturamento da empresa foi de 25 milhões de reais, ante 855.000 do ano anterior. Já a carteira de clientes saltou de 153 transportadoras para mais de 800, e o total de motoristas cadastrados foi de 9.000 para mais de 57.000.
Por trás desse crescimento está não apenas um contexto de alta no mercado de transportes e entregas, mas a chancela de um dos principais conglomerados empresariais da indústria brasileira: o Grupo Randon. Em outubro de 2021, a companhia investiu um montante de 2 milhões de reais na Motorista PX por meio de seu braço de investimentos corporativos, o Randon Ventures. Também participaram do investimento os fundos ACE Startups, BR Angels e a GR8 Ventures.
“É como ter um selo que garante a nossa qualificação”, diz André Oliveira, fundador e CEO da Motorista PX. “Facilita a quebra de barreiras e preconceitos, algo muito comum para o mundo das startups - que poucos querem testar”.
O oceano azul do CVC
A escolha do Grupo Randon em dedicar alguns milhões à Motorista PX, uma empresa com menos de três anos de existência, não acontece por acaso. Os investimentos corporativos feitos em startups, o chamado corporate venture capital (ou CVC), têm se tornado um filão para companhias que buscam incansavelmente por novas fontes de receita ou novos fôlegos criativos a partir da inovação que vêm das pequenas empresas de tecnologia. Com risco moderado em comparação com outros modelos de investimento em startups novatas, como o venture capital, o CVC ganha popularidade e lugar privilegiado entre as estratégias corporativas mais eficazes para a busca por inovação.
Atualmente, cerca de 83% das grandes empresas brasileiras já possuem alguma iniciativa de corporate venture capital, indica uma pesquisa da Associação Brasileira de Private Equity e Venture Capital (ABVCAP).
Adotado pela maioria das empresas ouvidas pela pesquisa, o CVC mostra sua popularidade, mas também a necessidade de maturação no Brasil. De acordo com a ABVCAP, grande parte das iniciativas do gênero no país foi criada nos últimos três anos, o que coloca o mercado em posição inicial ante economias com maior tempo de estruturação, como América do Norte e Europa.
Menos risco, mais inovação
Alguns fenômenos como a digitalização acelerada em função da pandemia e também a maior aversão ao risco como consequência direta da escalada dos juros e da desaceleração dos investimentos de risco em startups cooperam para a ascensão do Corporate Venture Capital, avalia Gabriela Toribio, Managing Director da Wayra Brasil e Vivo Ventures, hub de inovação aberta da Vivo responsável por acelerar e investir em startups — e instituição parceira na elaboração do estudo da ABVCAP.
Nesse cenário, o mais comum é assistir a um número relevante de empresas aderindo ao CVC por meio de fundos próprios de investimento em participações, os chamados FIPs. Segundo a ABVCAP, mais da metade (53%) das corporações brasileiras adotam essa estrutura ao olhar para o investimento em startups. Trata-se de um ponto fora da curva no mercado de CVC global: no restante do mundo, é comum que empresas optem por investir diretamente nos balanços das empresas, sem a estruturação de um fundo.
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Além das cifras
O retorno esperado a partir do CVC vai muito além das cifras. Ao investir em startups por essa modalidade, as empresas esperam, entre outras coisas, alcançar objetivos estratégicos mais gerais, além de encontrar parceiros perenes que viabilizem inovações que custariam (ainda) mais caro para serem desenvolvidas internamente. Sendo assim, a principal motivação das corporações ao estabelecer programas de CVC, é preparar-se para disrupções futuras e criar novos negócios, avalia a ABVCAP. Na ponta, essas empresas também podem se beneficiar financeiramente da valorização das startups do portfólio, por exemplo.
"Nossa procura é por startups que cumpram com adjacências do nosso modelo de negócio, hoje já bem estabelecido”, diz Mateus de Abreu, diretor de negócios e estratégias digitais das Empresas Randon e diretor da Randon Ventures, veículo que desde a sua criação já investiu mais de 25 milhões em 26 empresas.
No caso do investimento na Motorista PX, um dos principais benefícios pode ser visto na criação de novas linhas de receita. Ao lado do Banco Randon, companhia financeira do Grupo, a Motorista PX lançou um produto de crédito pós-pago, de antecipação de recebíveis para transportadoras, que será o principal ponto de conexão entre a empresa e as demais investidas.
A mesma aproximação com empresas tradicionais para a consolidação de produtos e ganho de escala serviu de motor de crescimento para a Quero Quitar, startup paulista fundada em 2015 com a intenção de revolucionar o mercado de cobranças brasileiro. Para sair do papel, a empresa contou justamente com um investimento via corporate venture capital, vindo da Wayra.
A Quero Quitar criou uma plataforma capaz de aposentar as exaustivas ligações de call center ao permitir que credores publiquem opções de acordo para quitação de débitos e consumidores possam escolher a melhor opção para negócio, tudo online.
Os primeiros quatro anos de trabalho foram dedicados a convencer essas empresas a alimentarem a plataforma. O mais comum, à época, era disponibilizar apenas parte da carteira, o que complicava a vida de devedores que entravam na plataforma e sequer encontravam suas dívidas em aberto. A grande leva de empresas que mantinham contratos de exclusividade com assessorias de cobrança para o serviço de call center também servia de barreira para que o negócio prosperasse — e foi aí que o capital da Wayra (e de outros investidores que vieram na sequência) fez a diferença.
O valor ajudou a subsidiar a operação desde o dia um. Com o aporte, a Quero Quitar investiu em melhorias tecnológicas em sua plataforma e também em marketing para tornar-se conhecida no mercado e comprovar sua tese. “Provamos ao mercado que isso é possível e há interesse dos consumidores em buscarem melhorar suas condições financeiras junto a credores sem serem, necessariamente, procurados por eles de modo até desconfortável”, diz Marc Lahoud, fundador da Quero Quitar.
Hoje a startup conta com 46 empresas credoras de grande porte, e mais de 80 milhões de brasileiros, pessoas físicas e jurídicas, com dívidas ativas na plataforma para negociar — há três anos, eram apenas 17 credores e 20 milhões de devedores. A Vivo, inclusive, é um dos principais clientes. Outras gigantes como Santander, Sky, Banco Pan, BMG, BV, Casas Bahia, Renner e Havan também estão na lista.
Nos últimos três anos, a empresa multiplicou a receita por seis, apoiada pela digitalização do mercado de cobranças após restrições de circulação impostas pelo covid-19.
A avaliação de Lahoud é de que, sem os 12 milhões de reais captados até aquele momento (incluindo o cheque inicial e smart money da Wayra), o crescimento não teria sido possível. “O papel mais importante do CVC é justamente deixar as empresas robustas e prontas para atender a demandas que surgem de uma hora para outra”, diz.
Desbravando o mato alto
Na Wayra, que atualmente também gere o portfólio da Vivo Ventures, novo veículo de CVCV da Vivo, são 26 empresas early stage no portfólio, sendo que 60% dessas companhias possuem negócios com a Vivo.
Na tese dos dois fundos, o foco é por tecnologia embarcada em soluções que possam melhorar os negócios da própria companhia. “Nosso foco é alavancar nosso principal ativo: que é nossa base de acessos. É claro que olhar para telecom faz sentido, mas entendemos que ”, diz Toribio.
Outra maneira de mensurar os benefícios dos cheques constantes em startups se dá pela eficiência operacional, olhando para indicadores como redução de custos e geração de novos negócios. “Para as grandes empresas, o mato a desbravar é muito alto. Então qualquer mudança já significa milhões em economia ou lucro”, diz.
A startup de logística RoutEasy também vivencia parte dos benefícios que surgem a partir das conexões com grandes players. A mais notável dela está na capacidade de aprimorar seu principal produto, um algoritmo dotado de inteligência artificial que otimiza entregas para operadores logísticos. Em agosto de 2021, a empresa fundada em 2016 pelo engenheiro Caio Reina recebeu um aporte do Grupo Ultra (UVC), dono dos Postos Ipiranga e da Ultragaz.
Por meio do braço de CVC da empresa, foram injetados 5,8 milhões de reais na RoutEasy. O capital serviu para incorporar uma nova funcionalidade à sua plataforma de gestão de última milha (que descreve o trajeto de um produto de centros logísticos e lojas para até o consumidor final), agora também dedicada a entregas feitas no mesmo dia ao automatizar a definição de rotas e alocação de motoristas. “O capital nos ajudou a conseguir entrar para uma coisa que deixou de ser uma tendência e passou a ser uma necessidade no mundo do delivery. Não ficamos para trás”, diz Reina.
Desde que foi investida pelo Grupo Ultra a startup também tem crescido de maneira acelerada. O time aumentou de 28 para 88 colaboradores em um ano a empresa quadruplica de tamanho ano a ano. Em 2021, o crescimento foi de 218% e em 2022, de 214% — a RoutEasy não divulga a receita consolidada.
Fora os números, eles creditam o sucesso do investimento por CVC pela integração com grandes representantes do setor logístico. Em 2021, a startup foi integrada à nstech, maior consolidadora de soluções logísticas da América Latina. Atualmente, a empresa atende grandes operadores logísticos e marketplaces como DHL, Solistica, Bravo, Mercado Livre, Shopee e Magazine Luiza.
Elas querem as startups
Em ambientes de incerteza econômica e rápida digitalização, a aproximação com startups — via investimento ou não — está no topo da agenda prioritária de empresas, ao lado de itens como transformação digital e atração de talentos, segundo pesquisa da consultoria de inovação ACE Cortex, que buscou avaliar o cenário inovativo do Brasil.
A ACE atua nos bastidores como importante fomentador do avanço do Corporate Venture Capital no Brasil nos últimos anos. A consultoria faz isso ao ajudar empresas a desenharem seus primeiros passos estratégicos — da definição da governança ao local de onde sairão os recursos para investimento — até a definição da tese e gestão do portfólio de investidas. Grandes corporações já ativas no universo do CVC contam com o dedinho da ACE Cortex, como a Vale, Unilever, Gol, Ipiranga, Neoenergia, Natura, Avon, Porto Seguro e Gerdau.
“Hoje, esse caminho é mais oblíquo do que era no passado, e vemos uma mudança de perfil das empresas que adotam CVC como estratégia de longo prazo”, diz Amanda Coutinho, head de corporate venture capital na ACE Cortex.
A pesquisa da ACE Cortex mostra ainda que, para manter a competitividade, empresas aderem a programas que buscam aproximar as startups aos seus core business. Os programas de inovação aberta, baseados em chamadas públicas para empresas com soluções capazes de resolver problemas pontuais da empresa ou de determinado nicho do mercado seguem na liderança.
O outro lado
Ao olhar para o futuro do corporate venture capital, há equilíbrio entre o otimismo e a cautela. Para especialistas, a curva de investimentos vista nos últimos anos coopera para que empresas estejam capitalizadas e dispostas a investir volumes cada vez maiores em startups daqui para frente. Apenas em 2022, cerca de 3 bilhões de reais foram comprometidos por empresas para iniciativas de CVC.
De outro lado, a excitação pode fazer proliferar o número de iniciativas corporativas criadas com base no desejo restrito de empresas em fazer parte de uma tendência de alta, sem olhar para o futuro. “Há muito daquilo que chamamos de Fear of Missing Out (FOMO). Isso existe no venture capital e é normal que exista no cvc também”, diz Toribio.
Para ela, em tempos de crise e contas apertadas, iniciativas cruas de CVC não devem perdurar. “Se não estiverem muito claros os KPIs e resultados trazidos com elas, dificilmente elas vão perdurar”, diz. “Esse é um compromisso de longo prazo”.
A ascensão de um grupo de empreendedores mais experientes e agora preparados a lidar com solavancos da economia como nunca antes pode ajudar o mercado de CVC a ganhar ainda mais robustez. Eles atraem empresas em busca de startups resilientes e que consigam comprovar eficiência mesmo com recursos externos escassos e desafios ligados ao cenário macroeconômico. Também atraem uma safra qualificada de fundos de venture capital globais que desembarcam no Brasil em busca dessas “raridades”.
Nos últimos anos, empresas gringas como EDP, BASF e Bayer, por exemplo, trouxeram ao Brasil suas iniciativas de CVC já operantes e consolidadas em seus mercados de origem.
Do lado dos desafios, a consolidação do mercado de corporate venture capital força empresas a pensarem em estruturas mais robustas para o controle dos cheques e dos resultados.
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Créditos
Maria Clara Dias
Repórter de Negócios e PME
Graduada em Jornalismo e pós-graduada em Marketing pela ESPM. Trabalhou na Autoesporte, Época e Gazeta do Povo. Desde 2020 cobre startups e PME na EXAME. É vencedora do Prêmio de Destaque em Franchising na categoria de Jornalismo de Revista