A força da montanha
Madrugada, em pleno carnaval, e a chuva não dava trégua. No Rio de Janeiro, as escolas de samba comemoravam o erro na previsão do tempo, que era de chuva, e não se concretizou. Seca, a Sapucaí recebeu o glamour dos desfiles em sua plenitude. Os meteorologistas não estavam errados. Num evento raro, a frente fria que subia do Sul do país bateu em uma massa de ar quente sobre o litoral norte de São Paulo. Em vez de seguir viagem, como previsto, ela voltou. Antes, despejou sua água sobre a região, destino praiano preferido dos paulistanos.
O solo já encharcado, de repente, virou lama. Como um gigante que se sacode para se livrar da sujeira, as montanhas que formam a bela paisagem de São Sebastião, Ilhabela, Ubatuba e Caraguatatuba, acordaram de seu sono profundo. A terra desceu numa enxurrada, arrastando o que tinha na frente. Árvores, casas, pousadas. A CG 125 do entregador de aplicativo, a Range Rover do empresário, o casebre na Vila Sahy, a casa com piscina na Baleia, o condomínio em Juquehy. Ninguém escapou da força destruidora da montanha.
Até o momento, o saldo da tragédia é de 49 mortos e 3.500 desalojados ou desabrigados. E a sempre presente pergunta: dava para ter evitado? Respondê-la depende de, basicamente, dois quesitos. O primeiro, é atribuir as responsabilidades. O segundo, compreender o contexto que provocou a maior chuva já registrada no país em um dia. Foram mais de 700 mm de água, duas vezes o registrado no mês, em média. Nesse aspecto, emerge a expressão mudanças climáticas. O quanto dessa tragédia pode ser atribuído ao aquecimento do planeta. E qual o peso da mão humana nesse processo.
A tendência é acontecer de novo
A maior certeza na ciência climática atual é que nada mais é certo. As mudanças no clima causadas pelo excesso de carbono emitido na atmosfera provocam um cenário de readequação de indicadores. O que antes significava um evento extremo de baixa probabilidade, hoje se repete numa constância assustadora. A ocorrência de desastres varia conforme o ano, mas o gráfico de tendência deixa claro que há um aumento na frequência desde, pelo menos, os anos 60. Nessa toada, até o final da década, haverá mais de 500 eventos extremos por ano no mundo.
Essa incerteza na ciência climática não é inútil. Na realidade, o que os dados mostram é a necessidade premente de se investir em resiliência. “Os eventos extremos vão acontecer cada vez mais frequentemente, e a dúvida é o quanto nossas cidades estão preparadas”, afirma Talita Assis, cientista climática à frente do projeto A Amazônia em Exame. “Uma coisa é o fenômeno natural, outra é como nós, cidadãos do mundo, trabalhamos isso.”
Dois dias antes da tragédia, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), emitiu um alerta sobre o risco de desastre na região da Vila do Sahy, bairro mais afetado pelo temporal, onde 30 pessoas morreram. Os moradores não foram avisados.
Risco financeiro sistêmico
As perdas econômicas relacionadas a desastres naturais, na última década, ultrapassam a marca dos 3 trilhões de dólares, segundo dados do Sendai Framework, plataforma da ONU de acompanhamento e prevenção de desastres. E se há uma indústria que entende muito bem isso é a de seguros.
Praticamente todas as grandes seguradoras e resseguradoras possuem plataformas de análise de risco focadas em mudanças climáticas. A Swiss Re, uma das maiores resseguradoras do mundo, disponibiliza os dados gratuitamente, por exemplo, por meio de seu instituto. O sistema aponta que, em 2021 (último ano disponível), os danos a patrimônio segurado decorrentes de eventos climáticos e desastres naturais chegaram a 200 bilhões de dólares.
No Brasil, a Porto foi uma das primeiras empresas a entrar em ação na tragédia do litoral paulista. A seguradora enviou mais de 130 viaturas para os locais afetados pelas chuvas, incluindo veículos especiais aquáticos (marruás e moto aquática), guinchos e pick-ups. A companhia também disponibiliza bases de atendimento e busca dimensionar o tamanho dos danos para clientes de veículos, imóveis etc. O apoio é dado para segurados e não segurados.
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O cisne está verde
Em janeiro de 2020, pouco antes do lockdown da pandemia parar a economia global, o Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês), uma espécie de banco central dos bancos centrais, divulgou um extenso documento no qual alerta que as mudanças climáticas podem ser o gatilho de uma nova crise financeira global.
Segundo o BIS, esse risco está associado a eventos não previstos, que a instituição chama de “cisnes verdes” — numa analogia aos “cisnes negros”, o termo foi criado por Nassim Taleb, ensaísta libanês radicado nos Estados Unidos, para se referir a eventos improváveis com grande impacto.
O estudo tem coautoria do brasileiro Luiz Awazu Pereira da Silva, ex-diretor de política econômica do Banco Central do Brasil que desde 2015 ocupa o cargo de vice-gerente-geral do BIS.
Um exemplo de como as mudanças climáticas afetam a economia pode ser verificado quando se relaciona as perdas relacionadas a eventos climáticos e o preço dos alimentos. Há uma correlação, o que evidencia outra consequência grave desse cenário: a base da pirâmide social é a que mais sofre.
Mobilização social
Se há uma boa notícia em meio a esse caos, é a capacidade da sociedade de se mobilizar para atenuar os efeitos do desastre. O Terceiro Setor é sempre o primeiro a chegar aos locais mais necessitados, e, dessa vez, não foi diferente. Também é relevante o número de empresas que se prontificou a ajudar, com doações e capacidades.
Para auxiliar os desabrigados, a ONG Gerando Falcões, iniciou uma campanha específica de doação para as famílias no litoral norte de São Paulo. Na iniciativa, a ONG coloca um real para cada real doado pela sociedade, com limite de R$ 1 milhão. Os valores arrecadados serão utilizados para compra de alimentos, roupas, colchões e kits de higiene.
“Queremos mobilizar brasileiros e brasileiras de todas as partes do país a fazerem suas doações. Transformaremos todos os recursos financeiros arrecadados em alimentos, kits de higiene, roupas e infraestrutura para dar suporte às famílias que, neste momento, estão desabrigadas e se encontram em situação de vulnerabilidade”, afirma Edu Lyra, CEO e Fundador da ONG Gerando Falcões. Nesta quinta-feira, 23, 6 milhões de reais em doações foram alcançados.
Pessoas físicas e jurídicas podem contribuir e fazer sua doação por meio do site https://gerandofalcoes.com/tamojunto/ ou fazer um depósito via PIX (a chave é o CNPJ da Gerando Falcões: 18.463.148/0001-28).
Ajuda do setor privado
Além disto, a ONG não está sozinha, e empresas como a Ambev tem se mobilizado em parceria. A fabricante de bebidas está doando 70 mil litros de água AMA, 45 toneladas de alimentos e 14 toneladas de itens de limpezas, doados pelo BEES - plataforma B2B da Ambev. A Gerando Falcões cuidará da logística dos insumos até a região.
Há companhias ainda que tem atuado de forma integrada aos negócios, como é o caso da Porto , que enviou mais de 130 viaturas para os locais afetados pelas chuvas, incluindo veículos especiais aquáticos (marruás e moto aquática), guinchos e pick-ups. A companhia também disponibiliza bases de atendimento e busca dimensionar o tamanho dos danos para clientes de veículos, imóveis e mais.
A seguradora, que costuma estar prepara para a alta temporada e o aumento de veículos no litoral de São Paulo nesta época do ano, se surpreendeu com as chuvas do último fim de semana, e mobilizou equipes maiores que o de costume. “Chegamos a mandar 135 veículos para a operação entre guinchos, caminhões para áreas alagadas e 4x4. Além disto, montamos dois postos de trabalho e bolsões para deixar os carros alagados em áreas seguras”, diz Marcelo Sebastião, diretor de Sinistros e Assistência na Porto Seguro. Segundo o executivo, o volume de serviços foi oito vezes maior do que seria no mesmo período de Carnaval sem a tragédia.
Na Porto, o primeiro passo foi remanejar de 20% a 30% das pessoas do time de atendimento para se conectar com os clientes, sendo que 60% dos chamados ocorreram por canais digitais. “Precisamos explicar para as pessoas que a prioridade era estar em um local seguro. Para que, em seguida, pudéssemos transferi-los para seu local de origem”, afirma Marcelo. Entre segunda e terça-feira foram 500 viagens de táxis do litoral para a capital.
Outra ação, em Riveira de São Lourenço, foi disponibilizar profissionais para fixar novamente as 400 placas dos carros que foram encontradas e direcionadas para a associação de moradores. Já em relação aos funcionários, há a mobilização para a coleta de donativos e doação por meio do Instituto Porto.
O Grupo Heineken, por meio do Instituto Heineken, atua na região em duas frentes: doação de água potável e de recursos financeiros para compra de cestas básicas e itens emergenciais. Para isto, a segunda-feira, uma das linhas de produção da cervejaria de Itu (SP) foi paralisada e adaptada para envasamento de água potável, que já chegou ao litoral. São mais de 35 mil litros de água doados para vítimas das chuvas. Outra ação, em parceria com a ONG Visão Mundial, é a destinação de recursos financeiros para doação de cestas básicas e outros itens emergenciais.
Além das ações lideradas pelo Instituto , o CEO do Grupo , Mauricio Giamellaro, morador da cidade de Juquehy, também está pessoalmente envolvido com iniciativas de apoio às vítimas. Mauricio e sua esposa são fundadores do Projeto Recomeçar, uma ONG de apoio a famílias em situação de vulnerabilidade e com atuação direcionada para o Litoral Norte, que nasceu durante a pandemia.
A empresa de medicamentos EMS doa 14 mil caixas de remédios para auxiliar no tratamento imediato das vítimas, segundo a gerente institucional de marketing no Linkedin. “Desde segunda-feira, a empresa mobilizou a sua fábrica, seu centro logístico e uma rede de farmácia parceira que atua na região litorânea para organizar a entrega dos donativos para a Prefeitura de São Sebastião. Antibióticos, anti-inflamatórios, analgésicos etc. estão sendo despachados”, afirmou Josemara Tsuruoka na publicação.
Já o Instituto GPA, braço social do GPA, iniciou uma campanha de arrecadação nas lojas do Pão de Açúcar e Mercado Extra da região, na Baixada Santista e unidades selecionadas na capital. É possível doar água potável, alimentos não perecíveis, itens de limpeza e higiene até o dia 10 de março. O GPA se compromete a doar a mesma quantidade do montante arrecadado para o suporte
O iFood se juntou à Gerando Falcões por meio de contribuições no aplicativo do iFood. Para cada doação via app, a Gerando Falcões dobrará o valor, usando o seu próprio caixa, até o limite de R$ 1 milhão. Além da parceria desde o início com a Gerando Falcões, o iFood ampliou desde terça-feira as doações no app com a Cufa e Ação Cidadania, que também começaram a atuar na região. Nos últimos dias foram arrecadados via app do iFood mais de R$200 mil, que já foram revertidos e estão sendo distribuídos em cestas, fraldas, água potável, rações e produtos de limpeza.
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Créditos
Marina Filippe
Repórter de ESG
Mestre em Ciência da Comunicação pela USP. Na EXAME, desde 2016, escreveu em negócios, gestão e sustentabilidade. Foi finalista dos prêmios de Jornalismo Inclusivo e Comunique-se, e reconhecida entre os Mais Admirados da Imprensa.
Rodrigo Caetano
Editor ESG
Trabalhou como repórter e editor nas principais publicações de negócios do país. Venceu os prêmios Petrobras e Citi Journalistic Excellence. Atualmente, lidera a editoria ESG da Exame e apresenta o podcast ESG de A a Z.
Fernanda Bastos
Repórter de ESG
Graduada em Jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, entrou na EXAME como trainee do programa Imersão EXAME em 2022 e hoje atua como Repórter de ESG. Atuou também nas áreas de assessoria de imprensa e social media.