A força da montanha

hero_Tragédia no litoral paulista: acaso, negligência ou mudanças climáticas?

Travel Destination - Brazil (Getty Images/Emmanuele Contini)

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Tragédia no litoral paulista: acaso, negligência ou mudanças climáticas?

É possível atribuir responsabilidades pelas chuvas que deixaram rastros de destruição? Uma coisa é certa: a mão humana tem um peso relevante

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Tragédia no litoral paulista: acaso, negligência ou mudanças climáticas?

É possível atribuir responsabilidades pelas chuvas que deixaram rastros de destruição? Uma coisa é certa: a mão humana tem um peso relevante

Travel Destination - Brazil (Getty Images/Emmanuele Contini)

Por Marina Filippe, Rodrigo Caetano e Fernanda Bastos

Publicado em 23/02/2023, às 15:44.

Última atualização em 09/08/2023, às 16:38.

A força da montanha

Madrugada, em pleno carnaval, e a chuva não dava trégua. No Rio de Janeiro, as escolas de samba comemoravam o erro na previsão do tempo, que era de chuva, e não se concretizou. Seca, a Sapucaí recebeu o glamour dos desfiles em sua plenitude. Os meteorologistas não estavam errados. Num evento raro, a frente fria que subia do Sul do país bateu em uma massa de ar quente sobre o litoral norte de São Paulo. Em vez de seguir viagem, como previsto, ela voltou. Antes, despejou sua água sobre a região, destino praiano preferido dos paulistanos.

O solo já encharcado, de repente, virou lama. Como um gigante que se sacode para se livrar da sujeira, as montanhas que formam a bela paisagem de São Sebastião, Ilhabela, Ubatuba e Caraguatatuba, acordaram de seu sono profundo. A terra desceu numa enxurrada, arrastando o que tinha na frente. Árvores, casas, pousadas. A CG 125 do entregador de aplicativo, a Range Rover do empresário, o casebre na Vila Sahy, a casa com piscina na Baleia, o condomínio em Juquehy. Ninguém escapou da força destruidora da montanha.

Até o momento, o saldo da tragédia é de 49 mortos e 3.500 desalojados ou desabrigados. E a sempre presente pergunta: dava para ter evitado? Respondê-la depende de, basicamente, dois quesitos. O primeiro, é atribuir as responsabilidades. O segundo, compreender o contexto que provocou a maior chuva já registrada no país em um dia. Foram mais de 700 mm de água, duas vezes o registrado no mês, em média. Nesse aspecto, emerge a expressão mudanças climáticas. O quanto dessa tragédia pode ser atribuído ao aquecimento do planeta. E qual o peso da mão humana nesse processo.

Bombeiros resgatam corpo dos escombros: 49 pessoas morreram na tragédia (NELSON ALMEIDA/AFP via Getty Images)

A tendência é acontecer de novo

A maior certeza na ciência climática atual é que nada mais é certo. As mudanças no clima causadas pelo excesso de carbono emitido na atmosfera provocam um cenário de readequação de indicadores. O que antes significava um evento extremo de baixa probabilidade, hoje se repete numa constância assustadora. A ocorrência de desastres varia conforme o ano, mas o gráfico de tendência deixa claro que há um aumento na frequência desde, pelo menos, os anos 60. Nessa toada, até o final da década, haverá mais de 500 eventos extremos por ano no mundo.

Essa incerteza na ciência climática não é inútil. Na realidade, o que os dados mostram é a necessidade premente de se investir em resiliência. “Os eventos extremos vão acontecer cada vez mais frequentemente, e a dúvida é o quanto nossas cidades estão preparadas”, afirma Talita Assis, cientista climática à frente do projeto A Amazônia em Exame. “Uma coisa é o fenômeno natural, outra é como nós, cidadãos do mundo, trabalhamos isso.”

Dois dias antes da tragédia, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), emitiu um alerta sobre o risco de desastre na região da Vila do Sahy, bairro mais afetado pelo temporal, onde 30 pessoas morreram. Os moradores não foram avisados.

Risco financeiro sistêmico

As perdas econômicas relacionadas a desastres naturais, na última década, ultrapassam a marca dos 3 trilhões de dólares, segundo dados do Sendai Framework, plataforma da ONU de acompanhamento e prevenção de desastres. E se há uma indústria que entende muito bem isso é a de seguros.

Praticamente todas as grandes seguradoras e resseguradoras possuem plataformas de análise de risco focadas em mudanças climáticas. A Swiss Re, uma das maiores resseguradoras do mundo, disponibiliza os dados gratuitamente, por exemplo, por meio de seu instituto. O sistema aponta que, em 2021 (último ano disponível), os danos a patrimônio segurado decorrentes de eventos climáticos e desastres naturais chegaram a 200 bilhões de dólares.

No Brasil, a Porto foi uma das primeiras empresas a entrar em ação na tragédia do litoral paulista. A seguradora enviou mais de 130 viaturas para os locais afetados pelas chuvas, incluindo veículos especiais aquáticos (marruás e moto aquática), guinchos e pick-ups. A companhia também disponibiliza bases de atendimento e busca dimensionar o tamanho dos danos para clientes de veículos, imóveis etc. O apoio é dado para segurados e não segurados.

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O cisne está verde

Em janeiro de 2020, pouco antes do lockdown da pandemia parar a economia global, o Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês), uma espécie de banco central dos bancos centrais, divulgou um extenso documento no qual alerta que as mudanças climáticas podem ser o gatilho de uma nova crise financeira global.

Segundo o BIS, esse risco está associado a eventos não previstos, que a instituição chama de “cisnes verdes” — numa analogia aos “cisnes negros”, o termo foi criado por Nassim Taleb, ensaísta libanês radicado nos Estados Unidos, para se referir a eventos improváveis com grande impacto.

"Abordagens tradicionais de gerenciamento de riscos, baseadas na extrapolação de dados históricos e em suposições de normalidade, são amplamente irrelevantes para aferir os riscos futuros relacionados ao clima"Banco de Compensações Internacionais

O estudo tem  coautoria do brasileiro Luiz Awazu Pereira da Silva, ex-diretor de política econômica do Banco Central do Brasil que desde 2015 ocupa o cargo de vice-gerente-geral do BIS.

Um exemplo de como as mudanças climáticas afetam a economia pode ser verificado quando se relaciona as perdas relacionadas a eventos climáticos e o preço dos alimentos. Há uma correlação, o que evidencia outra consequência grave desse cenário: a base da pirâmide social é a que mais sofre.

Fonte: McKinsey e Fórum Econômico Mundial

Mobilização social

Se há uma boa notícia em meio a esse caos, é a capacidade da sociedade de se mobilizar para atenuar os efeitos do desastre. O Terceiro Setor é sempre o primeiro a chegar aos locais mais necessitados, e, dessa vez, não foi diferente. Também é relevante o número de empresas que se prontificou a ajudar, com doações e capacidades.

Para auxiliar os desabrigados, a ONG Gerando Falcões, iniciou uma campanha específica de doação para as famílias no litoral norte de São Paulo. Na iniciativa, a ONG coloca um real para cada real doado pela sociedade, com limite de R$ 1 milhão. Os valores arrecadados serão utilizados para compra de alimentos, roupas, colchões e kits de higiene.

“Queremos mobilizar brasileiros e brasileiras de todas as partes do país a fazerem suas doações. Transformaremos todos os recursos financeiros arrecadados em alimentos, kits de higiene, roupas e infraestrutura para dar suporte às famílias que, neste momento, estão desabrigadas e se encontram em situação de vulnerabilidade”, afirma Edu Lyra, CEO e Fundador da ONG Gerando Falcões. Nesta quinta-feira, 23, 6 milhões de reais em doações foram alcançados.

Pessoas físicas e jurídicas podem contribuir e fazer sua doação por meio do site https://gerandofalcoes.com/tamojunto/ ou fazer um depósito via PIX (a chave é o CNPJ da Gerando Falcões: 18.463.148/0001-28).

 

Ajuda do setor privado

Além disto, a ONG não está sozinha, e empresas como a Ambev tem se mobilizado em parceria. A fabricante de bebidas está doando 70 mil litros de água AMA, 45 toneladas de alimentos e 14 toneladas de itens de limpezas, doados pelo BEES - plataforma B2B da Ambev. A Gerando Falcões cuidará da logística dos insumos até a região.

Há companhias ainda que tem atuado de forma integrada aos negócios, como é o caso da Porto , que enviou mais de 130 viaturas para os locais afetados pelas chuvas, incluindo veículos especiais aquáticos (marruás e moto aquática), guinchos e pick-ups. A companhia também disponibiliza bases de atendimento e busca dimensionar o tamanho dos danos para clientes de veículos, imóveis e mais.

A seguradora, que costuma estar prepara para a alta temporada e o aumento de veículos no litoral de São Paulo nesta época do ano, se surpreendeu com as chuvas do último fim de semana, e mobilizou equipes maiores que o de costume. “Chegamos a mandar 135 veículos para a operação entre guinchos, caminhões para áreas alagadas e 4x4. Além disto, montamos dois postos de trabalho e bolsões para deixar os carros alagados em áreas seguras”, diz Marcelo Sebastião, diretor de Sinistros e Assistência na Porto Seguro. Segundo o executivo, o volume de serviços foi oito vezes maior do que seria no mesmo período de Carnaval sem a tragédia.

Na Porto, o primeiro passo foi remanejar de 20% a 30% das pessoas do time de atendimento para se conectar com os clientes, sendo que 60% dos chamados ocorreram por canais digitais. “Precisamos explicar para as pessoas que a prioridade era estar em um local seguro. Para que, em seguida, pudéssemos transferi-los para seu local de origem”, afirma Marcelo. Entre segunda e terça-feira foram 500 viagens de táxis do litoral para a capital.

Outra ação, em Riveira de São Lourenço, foi disponibilizar profissionais para fixar novamente as 400 placas dos carros que foram encontradas e direcionadas para a associação de moradores. Já em relação aos funcionários, há a mobilização para a coleta de donativos e doação por meio do Instituto Porto.

O Grupo Heineken, por meio do Instituto Heineken, atua na região em duas frentes: doação de água potável e de recursos financeiros para compra de cestas básicas e itens emergenciais. Para isto, a segunda-feira, uma das linhas de produção da cervejaria de Itu (SP) foi paralisada e adaptada para envasamento de água potável, que já chegou ao litoral. São mais de 35 mil litros de água doados para vítimas das chuvas. Outra ação, em parceria com a ONG Visão Mundial, é a destinação de recursos financeiros para doação de cestas básicas e outros itens emergenciais.

Além das ações lideradas pelo Instituto , o CEO do Grupo , Mauricio Giamellaro, morador da cidade de Juquehy, também está pessoalmente envolvido com iniciativas de apoio às vítimas. Mauricio e sua esposa são fundadores do Projeto Recomeçar, uma ONG de apoio a famílias em situação de vulnerabilidade e com atuação direcionada para o Litoral Norte, que nasceu durante a pandemia.

"Ao mesmo tempo em que vivemos um momento tão difícil, é muito inspirador ver tantas pessoas mobilizadas. Temos muito trabalho de reconstrução pela frente, mas, certamente, veremos o litoral norte retomar sua rotina em breve."Mauricio Giamellaro, CEO do Grupo Heineken

A empresa de medicamentos EMS doa 14 mil caixas de remédios para auxiliar no tratamento imediato das vítimas, segundo a gerente institucional de marketing no Linkedin. “Desde segunda-feira, a empresa mobilizou a sua fábrica, seu centro logístico e uma rede de farmácia parceira que atua na região litorânea para organizar a entrega dos donativos para a Prefeitura de São Sebastião. Antibióticos, anti-inflamatórios, analgésicos etc. estão sendo despachados”, afirmou Josemara Tsuruoka na publicação.

Já o Instituto GPA, braço social do GPA, iniciou uma campanha de arrecadação nas lojas do Pão de Açúcar e Mercado Extra da região, na Baixada Santista e unidades selecionadas na capital. É possível doar água potável, alimentos não perecíveis, itens de limpeza e higiene até o dia 10 de março. O GPA se compromete a doar a mesma quantidade do montante arrecadado para o suporte

O iFood se juntou à Gerando Falcões por meio de contribuições no aplicativo do iFood. Para cada doação via app, a Gerando Falcões dobrará o valor, usando o seu próprio caixa, até o limite de R$ 1 milhão. Além da parceria desde o início com a Gerando Falcões, o iFood ampliou desde terça-feira as doações no app com a Cufa e Ação Cidadania, que também começaram a atuar na região. Nos últimos dias foram arrecadados via app do iFood mais de R$200 mil, que já foram revertidos e estão sendo distribuídos em cestas, fraldas, água potável, rações e produtos de limpeza.

Voluntários organizam doações para as vítimas do temporal no Litoral Norte de São Paulo (NELSON ALMEIDA/AFP via Getty Images)

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Créditos

Marina Filippe

Marina Filippe

Repórter de ESG

Mestre em Ciência da Comunicação pela USP. Na EXAME, desde 2016, escreveu em negócios, gestão e sustentabilidade. Foi finalista dos prêmios de Jornalismo Inclusivo e Comunique-se, e reconhecida entre os Mais Admirados da Imprensa.

Fernanda Bastos

Fernanda Bastos

Repórter de ESG

Graduada em Jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, entrou na EXAME como trainee do programa Imersão EXAME em 2022 e hoje atua como Repórter de ESG. Atuou também nas áreas de assessoria de imprensa e social media.

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