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"Sou Fumante por causa de um Personagem", conta Marco Nanini

Ator resgata momentos engraçados, doídos e prazerosos da carreira, revela o que sente antes de entrar em cena e aponta as ilusões da profissão

Nanini como Ema em Pterodátilos. A peça, dirigida por Felipe Hirsch, está em turnê pelo Brasil (Carol Sachs/Divulgação)
DR

Da Redação

Publicado em 29 de novembro de 2011 às 09h40.

São Paulo - O pernambucano Marco Nanini gosta de dizer que passou a infância morando em teatros. Gerente de hotel, o pai dele trocava de emprego – e de cidade – com certa frequência.

Para cada lugar que se deslocava, arrastava a família. O menino perambulou, assim, por Recife, Caldas de Cipó (BA), Manaus, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.

Quase sempre, vivia nos estabelecimentos onde o pai trabalhava. “E o que são os hotéis?”, pergunta o ator , hoje com 63 anos de idade e 46 de carreira. “São cenários em que se alternam diferentes enredos, figurinos e personagens.”

Na noite de 4/10, Nanini recebeu o prêmio Artista Bradesco Prime de 2011, conferido pelos leitores de BRAVO!. O intérprete – que percorre o Brasil como protagonista da peça Pterodátilos, dirigida por Felipe Hirsch – já o ganhara em 2005. Na tarde daquele dia, entre um e outro cigarro, conversou com a revista.

BRAVO!: Há quanto tempo você fuma?

Marco Nanini: Desde os 36 anos... E por culpa do teatro!

Como assim?

Marco Nanini: Na minha juventude, todo mundo fumava. A moda exigia. Eu, no entanto, preferia remar contra a maré – sem terrorismo, sem levantar bandeira, sem recriminar ninguém. Simplesmente não ligava para cigarro. Acontece que, em 1984, protagonizei a montagem de Mão na Luva. Um dia, durante os ensaios, o Aderbal Freire-Filho, diretor da peça, sugeriu que meu personagem fumasse. “Vai cair bem”, argumentou. “Um pouco de fumaça naquele instante em que o personagem se cala... Aumentaria a solidão da cena, não acha?” De fato, um cigarro ali deixaria tudo mais onírico, mais bacana plasticamente, e reforçaria a postura reflexiva do personagem, um jornalista em crise. Mesmo assim, resisti: “Esqueça, Aderbal. Temo me viciar”.


A ideia, porém, não saiu da minha cabeça. “É, talvez dê para arriscar... Uma única cena, rapidíssima. Não preciso nem tragar.” Acabei concordando. De início, no palco, evitava cigarros e fumava somente cigarrilhas. Também cumpria à risca a decisão de não tragar. Mas, depois, perdi o controle. Traguei, substituí as cigarrilhas pelo cigarro, chutei o balde. No final da temporada, já me considerava fumante. Hoje, consumo sete maços por semana, mais ou menos.

Nunca tentou parar?

Marco Nanini: Tentei, claro! Usei, inclusive, adesivos de nicotina. O problema é que recaí... E, novamente, por causa da profissão! (risos) Estava havia cinco dias sem fumar quando saí de casa para gravar um especial da Globo, O Engraçado Arrependido, que se baseava num conto do Monteiro Lobato.

Eu fazia um comediante de chanchada – um sujeito feio e histriônico, que incorporava diversos tipos em suas apresentações. Naquela manhã, cheguei à maquiagem por volta das 6h30. Perto das 7, passei pelo espelho e me avistei com trajes de Carmen Miranda. Frutas, balangandãs, o figurino completo. Folheei o script para conferir quais criaturas ainda teria de interpretar até a noite: um bebê de fralda, um porteiro negro, um caipira... “Deus do céu! Me arranjem um cigarro!” (risos)

Houve outros momentos em que você “se contaminou” pelos traços de um personagem?

Marco Nanini: Li recentemente uma biografia do Oscar Wilde (poeta, dramaturgo e romancista irlandês) que me impressionou muito. Não recordo o título do livro agora. Minha memória é horrível...

De qualquer modo, segundo o biógrafo, o Wilde percebia que botava algo de si nos personagens, mas não conseguia apontar o quê. Sou exatamente desse jeito! Misturo-me nos personagens e os personagens se misturam em mim. Só que, nem sempre, identifico as diferentes partes da combinação.


Provavelmente, sofri milhões de influência dos papéis que representei. Nenhuma, entretanto, me parece tão forte, tão visível quanto o hábito de fumar. Aliás, sobre a simbiose ator-personagem, tenho um negócio curioso para contar: detesto me observar em cena. Fico traumatizado...

Por quê?

Marco Nanini: Porque não bate! Penso que me comportei de determinada maneira e, quando vou checar o resultado, me dá uma impressão horrível de descompasso. O que julgava estar fazendo no palco ou no set não corresponde àquilo que me vejo fazendo, compreende?

Cito um exemplo: em Pterodátilos, represento dois personagens. Um deles, a Ema, é uma adolescente hipocondríaca, que se veste de noiva. Enquanto a interpreto, me sinto uma garota. Eu sou aquela menina! Creio piamente que ando, que falo, que gesticulo como uma jovem – e a situação me diverte à beça. Mas, na hora que me mostraram o vídeo do espetáculo, levei um susto: “Ué, cadê a garota?! Cadê a Ema?!” Enxerguei apenas um senhor de 63 anos com vestido de noiva... Rolou uma aflição e desliguei o vídeo imediatamente.

Na década de 1980, amarguei um incômodo ainda pior. Termináramos de rodar o longa Feliz Ano Velho, em que eu vivia um rapaz de nome Beto, e o diretor (Roberto Gervitz) me chamou para dublar minhas cenas. Seriam três dias de trabalho. Logo no primeiro, me deparei com um plano demoradíssimo do filme, que exibia um close do Beto. Assisti à sequência uma única vez e, pronto, fiquei completamente rouco!

O impacto de me flagrar enorme na tela, a decepção de imaginar uma coisa e encontrar outra me roubaram a voz. O pessoal do estúdio, lógico, não entendeu nada. Adiamos tudo e descolei um fonoaudiólogo, um massagista de cordas vocais, o diabo.

Só no terceiro dia consegui emitir um som decente. Tempos depois, aceitei o papel de dom João VI em Carlota Joaquina, Princesa do Brazil. Como sabia do fuzuê que aprontei naquela dublagem, a diretora Carla Camurati não me permitiu ver o copião do longa. “Você vai surtar de novo!” (risos)


É correto afirmar que, em cena, os atores experimentam uma espécie de transe – um alheamento da realidade que os impede de perceber os próprios atos por inteiro?

Marco Nanini: Não me parece correto, não. Pelo menos, não é assim que lido com a profissão. Acredito que um ator deva se entregar de corpo e alma quando sobe no palco.

Mas entregar-se não significa abandonar-se. Do contrário, vira loucura, uma questão psiquiátrica. O intérprete não pode largar o personagem nem abdicar de si mesmo. Precisa se equilibrar o máximo possível na corda bamba. Uma parte de mim atua e outra vigia, controla, reporta o que está se passando, me avisa dos perigos: “Cuidado com o degrau! Pegue leve no tapa para não machucar a atriz!” Por isso, jamais bebo álcool ou uso drogas antes de interpretar. Quero me manter completamente lúcido, atento.

Óbvio que, às vezes, nos atrapalhamos. Em Mão na Luva, a Juliana Carneiro da Cunha fazia a protagonista feminina, e todo o cenário descia do teto enquanto representávamos – a porta, a janela, o umbral. Havia, então, uma zona de segurança onde tínhamos de nos posicionar para não trombar com nada.

Uma noite, a Juliana se distraiu. Deixou-se levar pela trama, pisou fora da área segura, e um espelho pesadíssimo acertou o rosto dela, que desandou a sangrar. Era muito sangue. Só que a pobre da Juliana, ainda no barato do personagem, não notou o estrago e continuou o diálogo da peça. Eu, desesperado, gritei: “Chega, Juliana! Não dá mais!” Interrompi a sessão e saímos dali para o hospital.

Já ocorreu também de o público aderir sem rédeas à fantasia. No espetáculo Os Filhos de Kennedy, meu personagem engatava um solilóquio em que se dizia frágil e triste. Quando concluía o desabafo, mirava o vazio e pedia: “Me abrace!” Mais de uma vez, alguém da plateia se levantou comovido para atender à solicitação.


E você?

Marco Nanini: Recebia o abraço. O bonito do ofício é justamente a briga da realidade com a ficção. Amo caminhar na fronteira entre uma e outra, na tal corda bamba. Sei que não me chamo Ema, sei que não vou me casar. No entanto, desejo me tornar a Ema, desejo me tornar uma noiva. É maravilhoso!

Já que mencionamos os limites entre o real e o fictício, você sente a emoção do personagem no palco ou apenas finge que sente?

Marco Nanini: Procuro sentir, né? Senão desanda. Soa postiço, falso, esquisito. Não adianta recorrer à técnica para forjar a emoção. A técnica ajuda a pronunciar bem as frases, a dosar a comédia e o drama, a descobrir o tom adequado de voz. Mas não fabrica uma emoção genuína. O ideal é que as circunstâncias do personagem emocionem de fato o ator.

E se não emocionarem?

Nesse caso, o ator tem de buscar o sentimento em outro lugar e transferi-lo para a cena. Alguns trechos de Os Filhos de Kennedy, por exemplo, reivindicavam uma pungência que nem sempre o personagem me trazia. “Minha Nossa Senhora, onde vou arrumar tamanha dor!” Foi quando reparei que um samba do Cartola, As Rosas Não Falam, me tocava imensamente. Perfeito! Tratei de pensar na canção durante aqueles trechos da peça. Se a dor não surgisse do personagem, nasceria da música.

No palco, persigo a emoção despudorada. Fora dele, ajo com mais pudor. Sou meio formal e desconfiado. Não gosto de multidão, de festas e de estreias. Como odeio bancar o inconveniente, só me mostro extrovertido perto de pessoas íntimas. Publicamente, priorizo a discrição. Moro sozinho no Rio de Janeiro, em uma casa, com três cachorros. Às vezes, pintam umas namoradas, uns namorados... Namoradas, não. Namorados... Mas, se não pintam, sem problemas. Já vivi o que necessitava viver nessa seara.


Você faz algum ritual para entrar em cena?

Marco Nanini: Faço. Na coxia, à beira do terceiro sinal, rezo uma oração que bolei quando criança. Minha mãe, religiosa, me ensinou a ave-maria, o pai-nosso e outras preces católicas. Por considerá-las extensas demais, perguntei: “Posso criar uma oração curtinha?” Ela concordou. Então inventei: “Meu Jesus, vos quero muito bem, pois sois tão bom. Como vós, ninguém”. Minutos antes de o pano abrir, me lembro de mortos queridos e, para cada um, rezo a oraçãozinha. É um jeito de me concentrar, de me abster do mundo exterior.

Curioso que, no camarim, também costumo enfrentar instantes terríveis de depressão. Fico mal, sem forças, destruído. “E agora? Vai acontecer uma catástrofe daqui a pouco! Não darei conta do recado.” ,

Entretanto, basta me lançar no palco que, bum!, mudo radicalmente de ânimo. Talvez a depressão seja a maneira que meu corpo encontrou de economizar energia para a peça.

Com frequência, a crítica e o público o apontam como um dos melhores atores do Brasil. Você concorda?

Marco Nanini: Sinceramente? Inúmeras vezes, me indago se estou entre os melhores ou se, no fundo, sou um embuste. Não descarto nenhuma possibilidade.

Corro o risco, sim, de me descobrir uma farsa. Quem sabe não me superestimaram? Quem sabe eu próprio não me enganei ao longo dessas décadas? Tenho certeza apenas de que me aplico, de que estudo bastante para cada papel e de que trabalho com alegria.

Na minha opinião, a tarefa primordial do ator é contar bem uma história. Não é ocupar um pedestal. Adoro quando alguém diz que me viu num filme ou numa peça e, depois, acrescenta: “Que história!” Prefiro ouvir algo assim do que “puxa, você arrasou!”.


Claro que aprecio o reconhecimento. Claro que o procuro. Mas não aposto 100% das fichas no sucesso. Não o tomo como um bem adquirido. Mesmo que dure, o sucesso é circunstancial – depende, inclusive, de minha saúde.

Se perco os movimentos, se fico lelé, adeus glamour. Comparo o sucesso com a luz de um daqueles holofotes giratórios. Num momento, o foco ilumina você.

No momento seguinte, o abandona e não volta nunca mais. Todo artista em evidência deveria se preparar para quando o sucesso se retirar. Eu tento, seja garimpando outros interesses, seja tratando os elogios com naturalidade.

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São Paulo - O pernambucano Marco Nanini gosta de dizer que passou a infância morando em teatros. Gerente de hotel, o pai dele trocava de emprego – e de cidade – com certa frequência.

Para cada lugar que se deslocava, arrastava a família. O menino perambulou, assim, por Recife, Caldas de Cipó (BA), Manaus, Belo Horizonte e Rio de Janeiro.

Quase sempre, vivia nos estabelecimentos onde o pai trabalhava. “E o que são os hotéis?”, pergunta o ator , hoje com 63 anos de idade e 46 de carreira. “São cenários em que se alternam diferentes enredos, figurinos e personagens.”

Na noite de 4/10, Nanini recebeu o prêmio Artista Bradesco Prime de 2011, conferido pelos leitores de BRAVO!. O intérprete – que percorre o Brasil como protagonista da peça Pterodátilos, dirigida por Felipe Hirsch – já o ganhara em 2005. Na tarde daquele dia, entre um e outro cigarro, conversou com a revista.

BRAVO!: Há quanto tempo você fuma?

Marco Nanini: Desde os 36 anos... E por culpa do teatro!

Como assim?

Marco Nanini: Na minha juventude, todo mundo fumava. A moda exigia. Eu, no entanto, preferia remar contra a maré – sem terrorismo, sem levantar bandeira, sem recriminar ninguém. Simplesmente não ligava para cigarro. Acontece que, em 1984, protagonizei a montagem de Mão na Luva. Um dia, durante os ensaios, o Aderbal Freire-Filho, diretor da peça, sugeriu que meu personagem fumasse. “Vai cair bem”, argumentou. “Um pouco de fumaça naquele instante em que o personagem se cala... Aumentaria a solidão da cena, não acha?” De fato, um cigarro ali deixaria tudo mais onírico, mais bacana plasticamente, e reforçaria a postura reflexiva do personagem, um jornalista em crise. Mesmo assim, resisti: “Esqueça, Aderbal. Temo me viciar”.


A ideia, porém, não saiu da minha cabeça. “É, talvez dê para arriscar... Uma única cena, rapidíssima. Não preciso nem tragar.” Acabei concordando. De início, no palco, evitava cigarros e fumava somente cigarrilhas. Também cumpria à risca a decisão de não tragar. Mas, depois, perdi o controle. Traguei, substituí as cigarrilhas pelo cigarro, chutei o balde. No final da temporada, já me considerava fumante. Hoje, consumo sete maços por semana, mais ou menos.

Nunca tentou parar?

Marco Nanini: Tentei, claro! Usei, inclusive, adesivos de nicotina. O problema é que recaí... E, novamente, por causa da profissão! (risos) Estava havia cinco dias sem fumar quando saí de casa para gravar um especial da Globo, O Engraçado Arrependido, que se baseava num conto do Monteiro Lobato.

Eu fazia um comediante de chanchada – um sujeito feio e histriônico, que incorporava diversos tipos em suas apresentações. Naquela manhã, cheguei à maquiagem por volta das 6h30. Perto das 7, passei pelo espelho e me avistei com trajes de Carmen Miranda. Frutas, balangandãs, o figurino completo. Folheei o script para conferir quais criaturas ainda teria de interpretar até a noite: um bebê de fralda, um porteiro negro, um caipira... “Deus do céu! Me arranjem um cigarro!” (risos)

Houve outros momentos em que você “se contaminou” pelos traços de um personagem?

Marco Nanini: Li recentemente uma biografia do Oscar Wilde (poeta, dramaturgo e romancista irlandês) que me impressionou muito. Não recordo o título do livro agora. Minha memória é horrível...

De qualquer modo, segundo o biógrafo, o Wilde percebia que botava algo de si nos personagens, mas não conseguia apontar o quê. Sou exatamente desse jeito! Misturo-me nos personagens e os personagens se misturam em mim. Só que, nem sempre, identifico as diferentes partes da combinação.


Provavelmente, sofri milhões de influência dos papéis que representei. Nenhuma, entretanto, me parece tão forte, tão visível quanto o hábito de fumar. Aliás, sobre a simbiose ator-personagem, tenho um negócio curioso para contar: detesto me observar em cena. Fico traumatizado...

Por quê?

Marco Nanini: Porque não bate! Penso que me comportei de determinada maneira e, quando vou checar o resultado, me dá uma impressão horrível de descompasso. O que julgava estar fazendo no palco ou no set não corresponde àquilo que me vejo fazendo, compreende?

Cito um exemplo: em Pterodátilos, represento dois personagens. Um deles, a Ema, é uma adolescente hipocondríaca, que se veste de noiva. Enquanto a interpreto, me sinto uma garota. Eu sou aquela menina! Creio piamente que ando, que falo, que gesticulo como uma jovem – e a situação me diverte à beça. Mas, na hora que me mostraram o vídeo do espetáculo, levei um susto: “Ué, cadê a garota?! Cadê a Ema?!” Enxerguei apenas um senhor de 63 anos com vestido de noiva... Rolou uma aflição e desliguei o vídeo imediatamente.

Na década de 1980, amarguei um incômodo ainda pior. Termináramos de rodar o longa Feliz Ano Velho, em que eu vivia um rapaz de nome Beto, e o diretor (Roberto Gervitz) me chamou para dublar minhas cenas. Seriam três dias de trabalho. Logo no primeiro, me deparei com um plano demoradíssimo do filme, que exibia um close do Beto. Assisti à sequência uma única vez e, pronto, fiquei completamente rouco!

O impacto de me flagrar enorme na tela, a decepção de imaginar uma coisa e encontrar outra me roubaram a voz. O pessoal do estúdio, lógico, não entendeu nada. Adiamos tudo e descolei um fonoaudiólogo, um massagista de cordas vocais, o diabo.

Só no terceiro dia consegui emitir um som decente. Tempos depois, aceitei o papel de dom João VI em Carlota Joaquina, Princesa do Brazil. Como sabia do fuzuê que aprontei naquela dublagem, a diretora Carla Camurati não me permitiu ver o copião do longa. “Você vai surtar de novo!” (risos)


É correto afirmar que, em cena, os atores experimentam uma espécie de transe – um alheamento da realidade que os impede de perceber os próprios atos por inteiro?

Marco Nanini: Não me parece correto, não. Pelo menos, não é assim que lido com a profissão. Acredito que um ator deva se entregar de corpo e alma quando sobe no palco.

Mas entregar-se não significa abandonar-se. Do contrário, vira loucura, uma questão psiquiátrica. O intérprete não pode largar o personagem nem abdicar de si mesmo. Precisa se equilibrar o máximo possível na corda bamba. Uma parte de mim atua e outra vigia, controla, reporta o que está se passando, me avisa dos perigos: “Cuidado com o degrau! Pegue leve no tapa para não machucar a atriz!” Por isso, jamais bebo álcool ou uso drogas antes de interpretar. Quero me manter completamente lúcido, atento.

Óbvio que, às vezes, nos atrapalhamos. Em Mão na Luva, a Juliana Carneiro da Cunha fazia a protagonista feminina, e todo o cenário descia do teto enquanto representávamos – a porta, a janela, o umbral. Havia, então, uma zona de segurança onde tínhamos de nos posicionar para não trombar com nada.

Uma noite, a Juliana se distraiu. Deixou-se levar pela trama, pisou fora da área segura, e um espelho pesadíssimo acertou o rosto dela, que desandou a sangrar. Era muito sangue. Só que a pobre da Juliana, ainda no barato do personagem, não notou o estrago e continuou o diálogo da peça. Eu, desesperado, gritei: “Chega, Juliana! Não dá mais!” Interrompi a sessão e saímos dali para o hospital.

Já ocorreu também de o público aderir sem rédeas à fantasia. No espetáculo Os Filhos de Kennedy, meu personagem engatava um solilóquio em que se dizia frágil e triste. Quando concluía o desabafo, mirava o vazio e pedia: “Me abrace!” Mais de uma vez, alguém da plateia se levantou comovido para atender à solicitação.


E você?

Marco Nanini: Recebia o abraço. O bonito do ofício é justamente a briga da realidade com a ficção. Amo caminhar na fronteira entre uma e outra, na tal corda bamba. Sei que não me chamo Ema, sei que não vou me casar. No entanto, desejo me tornar a Ema, desejo me tornar uma noiva. É maravilhoso!

Já que mencionamos os limites entre o real e o fictício, você sente a emoção do personagem no palco ou apenas finge que sente?

Marco Nanini: Procuro sentir, né? Senão desanda. Soa postiço, falso, esquisito. Não adianta recorrer à técnica para forjar a emoção. A técnica ajuda a pronunciar bem as frases, a dosar a comédia e o drama, a descobrir o tom adequado de voz. Mas não fabrica uma emoção genuína. O ideal é que as circunstâncias do personagem emocionem de fato o ator.

E se não emocionarem?

Nesse caso, o ator tem de buscar o sentimento em outro lugar e transferi-lo para a cena. Alguns trechos de Os Filhos de Kennedy, por exemplo, reivindicavam uma pungência que nem sempre o personagem me trazia. “Minha Nossa Senhora, onde vou arrumar tamanha dor!” Foi quando reparei que um samba do Cartola, As Rosas Não Falam, me tocava imensamente. Perfeito! Tratei de pensar na canção durante aqueles trechos da peça. Se a dor não surgisse do personagem, nasceria da música.

No palco, persigo a emoção despudorada. Fora dele, ajo com mais pudor. Sou meio formal e desconfiado. Não gosto de multidão, de festas e de estreias. Como odeio bancar o inconveniente, só me mostro extrovertido perto de pessoas íntimas. Publicamente, priorizo a discrição. Moro sozinho no Rio de Janeiro, em uma casa, com três cachorros. Às vezes, pintam umas namoradas, uns namorados... Namoradas, não. Namorados... Mas, se não pintam, sem problemas. Já vivi o que necessitava viver nessa seara.


Você faz algum ritual para entrar em cena?

Marco Nanini: Faço. Na coxia, à beira do terceiro sinal, rezo uma oração que bolei quando criança. Minha mãe, religiosa, me ensinou a ave-maria, o pai-nosso e outras preces católicas. Por considerá-las extensas demais, perguntei: “Posso criar uma oração curtinha?” Ela concordou. Então inventei: “Meu Jesus, vos quero muito bem, pois sois tão bom. Como vós, ninguém”. Minutos antes de o pano abrir, me lembro de mortos queridos e, para cada um, rezo a oraçãozinha. É um jeito de me concentrar, de me abster do mundo exterior.

Curioso que, no camarim, também costumo enfrentar instantes terríveis de depressão. Fico mal, sem forças, destruído. “E agora? Vai acontecer uma catástrofe daqui a pouco! Não darei conta do recado.” ,

Entretanto, basta me lançar no palco que, bum!, mudo radicalmente de ânimo. Talvez a depressão seja a maneira que meu corpo encontrou de economizar energia para a peça.

Com frequência, a crítica e o público o apontam como um dos melhores atores do Brasil. Você concorda?

Marco Nanini: Sinceramente? Inúmeras vezes, me indago se estou entre os melhores ou se, no fundo, sou um embuste. Não descarto nenhuma possibilidade.

Corro o risco, sim, de me descobrir uma farsa. Quem sabe não me superestimaram? Quem sabe eu próprio não me enganei ao longo dessas décadas? Tenho certeza apenas de que me aplico, de que estudo bastante para cada papel e de que trabalho com alegria.

Na minha opinião, a tarefa primordial do ator é contar bem uma história. Não é ocupar um pedestal. Adoro quando alguém diz que me viu num filme ou numa peça e, depois, acrescenta: “Que história!” Prefiro ouvir algo assim do que “puxa, você arrasou!”.


Claro que aprecio o reconhecimento. Claro que o procuro. Mas não aposto 100% das fichas no sucesso. Não o tomo como um bem adquirido. Mesmo que dure, o sucesso é circunstancial – depende, inclusive, de minha saúde.

Se perco os movimentos, se fico lelé, adeus glamour. Comparo o sucesso com a luz de um daqueles holofotes giratórios. Num momento, o foco ilumina você.

No momento seguinte, o abandona e não volta nunca mais. Todo artista em evidência deveria se preparar para quando o sucesso se retirar. Eu tento, seja garimpando outros interesses, seja tratando os elogios com naturalidade.

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