Podcasts podem ditar o curso da justiça?
Os melhores podcasts de 'true crime', que podem ter impacto no mundo real, costumam ser feitos por jornalistas ou profissionais envolvidos com a lei
AFP
Publicado em 23 de setembro de 2022 às 10h04.
Última atualização em 23 de setembro de 2022 às 10h05.
A saída da prisão esta semana de um dos protagonistas do podcast de sucesso “Serial” reacendeu o debate sobre a obsessão dos americanos pelas séries de crimes reais e seus efeitos no sistema penal dos Estados Unidos.
Quando Adnan Syed deixou na segunda-feira o tribunal de Baltimore em liberdade, 22 anos após ser condenado à prisão perpétua pelo suposto assassinato de sua ex-namorada, uma multidão de simpatizantes o recebeu com gritos e aplausos.
Syed sempre negou sua culpa no assassinato de Hae Min Lee em 1999.
Entre os presentes estava Sarah Koenig, a jornalista que em 2014 levou seu caso ao conhecimento de milhões de ouvintes por meio do podcast “Serial”.
Embora nunca tenha chegado a concluir se Syed era inocente ou culpado, sua investigação levantou muitas dúvidas sobre a condução do processo contra ele.
Com centenas de milhões de downloads, o podcast foi “um sucesso da cultura pop”, disse Lindsey Sherrill, pesquisadora de comunicações da Universidade do Alabama do Norte e autora de vários artigos sobre o tema.
“As pessoas se interessam por crimes reais desde que há seres humanos”, afirmou à AFP. “É possível encontrar evidências de que as pessoas se interessavam por crimes até mesmo na Idade Média, quando iam assistir execuções e julgamentos públicos.”
Porém, com “Serial”, isso passou de “algo visto como uma espécie de prazer obsceno ou culposo para algo muito aceito (…) Então agora está na moda.”
Assassinatos sem solução, falhas da justiça, desaparecimentos misteriosos - podcasts dedicados a crimes reais floresceram na esteira de “Serial”.
Sherrill contou ao menos 5 mil deles, mas ela diz que eles variam tanto em natureza, quanto em qualidade.
Assassinato quádruplo
Segundo a pesquisadora, a maioria desses podcasts, realizados por fãs, não vai muito além de “refazer um artigo da Wikipédia”, mas os mais sofisticados, “mais impactantes”, são produzidos por “jornalistas ou pessoas envolvidas com a lei de alguma forma”.
Um dos melhores, em sua opinião, é a segunda temporada de "In the Dark", que examinou o caso de Curtis Flowers, um homem negro julgado seis vezes por um assassinato quádruplo que sempre afirmou não ter cometido.
A investigação jornalística, que apontou as falhas do principal promotor do caso, ajudou a equipe legal de Flowers a levar seu caso à Suprema Corte dos EUA e contribuiu para conseguir sua libertação depois de mais de 20 anos atrás das grades.
O efeito de “Serial” no caso de Syed é menos direto, já que os promotores reabriram o processo como parte de uma solicitação de redução de pena.
Também deixaram aberta a opção de voltar a julgá-lo. Mas nos Estados Unidos os promotores são funcionários eleitos que costumam estar em sintonia com a opinião pública.
Podcasts produzidos por amadores, às vezes, também podem ter consequências reais.
A série “Truth and Justice”, que incentiva seguidores a enviar informações, ajudou a facilitar a libertação em 2018 de Ed Ates, preso por 20 anos pelo assassinato de um vizinho, que sempre negou.
“Distorcer” visões
De acordo com Dawn Cecil, professora de criminologia da Universidade do Sul da Flórida, esse aspecto participativo é uma das principais razões por trás do êxito dos podcasts de crimes reais, junto com seu caráter íntimo e a possibilidade de escutar um programa inteiro de uma só vez.
Os ouvintes “podem participar de pesquisas online e até financiar coletivamente investigações, podem entrar em grupos nas redes sociais para discutir casos e teorias”, apontou.
No entanto, “isso pode criar toda uma série de problemas se não for feito corretamente, como a falsa identificação de suspeitos e a interferência nas investigações em curso”.
Em termos mais gerais, ainda que esses conteúdos tenham uma natureza educativa e chamem “mais atenção a potenciais injustiças”, também têm “uma tendência a distorcer as visões das pessoas sobre crime e justiça”, disse Cecil, autora de "Fear, Justice, and Modern True Crime".
“Passando falsas mensagens sobre quais crimes são mais comuns”, explicou, assim como “por quê as pessoas cometem crimes, quem comete crimes, e quem é vítima, entre outras coisas”.
Além disso, os podcasts podem afetar negativamente as vítimas, em especial se não quiserem que suas histórias sejam contadas, observou Cecil.
A família de Lee, a ex-namorada de Syed, disse diversas vezes que não pode seguir em frente devido à grande atenção que o caso recebeu.
Na segunda-feira, seu irmão Young Lee não conseguiu conter sua dor ao dar seu depoimento ao tribunal pelo Zoom. “Isso não é um podcast pra mim. É vida real”, declarou entre lágrimas. “É um pesadelo.”