Diplomacia fashion: como ela molda a geopolítica e deve traduzir a era Biden
O conceito ganhou força na metade do século 20 e, depois, passou a ser influenciado pela globalização dos costumes
Daniel Salles
Publicado em 20 de janeiro de 2021 às 12h45.
Última atualização em 20 de janeiro de 2021 às 13h25.
Dizer que “roupas não são apenas roupas, mas sim veículos de expressão” é um ditado que o mundo da moda gosta de reproduzir. Se por vezes ele é usado para justificar ideias que não se sustentam no produto final das marcas, dando verniz intelectual às criações desfiladas, quando se trata de criar imagens políticas, a máxima é elevada ao pé da letra. A posse do novo presidente americano Joe Biden e da vice-presidente Kamala Harris, nesta quarta-feira (20), foi sua representação mais clara.
Ambos são os novos rostos (e corpos) do retrato que os Estados Unidos devem vender ao mundo. A cor roxa do costume de Harris, o verde da primeira-dama Jill Biden e o costume ajustado de seu marido recém-empossado sinalizaram que, agora, os Estados Unidos querem jogar na vala do esquecimento os anos de roupas antiquadas, o vermelho republicano e os comprimentos gigantes das roupas de Trump, cujo ideal era reproduzir seu slogan de grandeza americana.
Harris apostou alto na cartela sufragista, criada no início do século 20, no Reino Unido, pelas mulheres que lutaram pelo voto feminino. O roxo simboliza a lealdade e a firmeza, dois substantivos que devem acompanhar sua trajetória ao lado do parceiro na Casa Branca. Jill Biden, de "blue green" (o azul petróleo), resgatou o sentimento de esperança da cor verde sufragista e ainda afagou o tom azul do partido democrata.
Já Biden se esforçou para traduzir a mudança. Em vez de aderir ao retrato autorreferente do antecessor, combinou com a primeira-dama na cor da gravata lilás e, com o segundo cavalheiro, o advogado Doug Emhoff, a marca do costume. Ralph Lauren, ícone americano amado pelos líderes locais, volta à cena após quatro anos afastado dos holofotes de Washington.
O que eles fizeram não é novidade e tem até nome: “fashion diplomacy” (diplomacia fashion). O conceito ganhou força na metade do século 20, quando o xadrez geopolítico mundial mudou no pós-guerra e, depois, passou a ser influenciado pela globalização dos costumes.
Líderes passaram a afagar a estética dos países amigos, equalizar os efeitos dos humores da sociedade por meio de colorismo e, principalmente, transmitir mensagens por meio das peças sem emitir uma única palavra.
Para além do uso de elementos regionais –prática comum no Brasil quando tanto situação quanto oposição usam chapéus, lenços ou acessórios dos estados com os quais querem estreitar laços –, a iconografia do tempo move os políticos.
Margaret Thatcher (1925-2013), ex-primeira-ministra britânica, talvez tenha sido a mulher que instaurou a ideia como ferramenta de poder. Quando assumiu o posto até então vinculado aos lordes e às autoridades masculinas, suavizou a autoimagem austera com o “pussy bow”, um laço em formato de vulva que, além de feminizar a gravata, virou, com a “dama de ferro”, símbolo de força.
Não foi por coincidência que a peça logo caiu nas graças dos uniformes de escritório das mulheres recém-chegadas às mesas dos escritórios, combinados a tailleurs e, depois, ao combo calça-blusa.
As supostas desavenças entre ela e a Rainha Elizabeth 2a, aventadas pela imprensa e motivo de um desmentido sem precedentes do Palácio de Buckingham naquele meio entre 1980 e 1990, foram equalizadas em viagens oficiais. Como? Duas bolsas a tiracolo.
Em diversas fotos, as duas mulheres mais importantes da Inglaterra naquele tempo eram vistas juntas com o mesmo acessório preso ao braço, geralmente em formato quadrado, para representar unidade estética e, silenciosamente, colocar panos frios nas fofocas.
A própria rainha virou símbolo da diplomacia do estilo. Além do uso dos broches, estampas e tiaras que homenageiam os 53 países da Commonwealth, ela usa cores para dar voz ao que, pelo ofício de estadista sem poderes políticos, não deve falar em público.
Seu golpe mais recente foi durante as negociações sobre o “brexit”, em 2017, quando num discurso ao parlamento, em junho daquele ano, usou um chapéu azul com botões dourados de imagem similar à bandeira da União Europeia. A mensagem secreta ganhou o mundo logo após especulações da mídia local de que ela seria a favor da saída do Reino Unido do bloco.
Do outro lado do Atlântico, as primeiras-damas passaram a usar o guarda-roupa para estender o tapete às ideias dos maridos e criar empatia com os povos de seus países. A discrição que moldava a estética delas até os 1990 foi substituída pelo frescor dos colos e dos braços descobertos.
Quem deu o tom do novo papel das mulheres até então vistas como acessórios condescendentes foi a ex-primeira dama Michelle Obama. Com ela, jovens estilistas americanos, a exemplo do imigrante taiwanês Jason Wu, um dos seus prediletos, tiveram os holofotes mais disputados pela mídia de moda americana e, por isso, simbolizavam o empurrão de Michelle a toda indústria local.
Hoje, com a posse, essa ideia deve voltar mais forte em um momento de crise profunda no varejo americano. E mais do que nunca, ao que parece, a roupa será elemento decisivo na estratégia política dos Estados Unidos para recuperar a confiança e a empatia de um mundo ainda convulsionado pela incoerência, tanto imagética quanto de discurso, dos anos Trump.