Ação contra Magalu por racismo reverso é constrangedora, fala defensor
Vice-presidente da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais repudia ação que categoriza o programa como "Marketing de Lacração"
Luísa Granato
Publicado em 7 de outubro de 2020 às 19h09.
Nesta semana, o programa de trainee do Magazine Luiza com foco na contratação de negros ganhou um novo episódio da sua repercussão polêmica: a Defensoria Pública da União entrou com uma ação civil pública na Justiça do Trabalho contra o que chamou de “marketing de lacração” da empresa.
Segundo o autor da petição, o defensor Jovino Bento Júnior, a inclusão social de negros é desejável, mas o programa “não é medida necessária – pois existem outras e estão disponíveis para se atingir o mesmo objetivo -, e nem possui proporcionalidade estrita – já que haveria imensa desproporção entre o bônus esperado e o ônus da medida, a ser arcado por milhões de trabalhadores”.
Em nota, a Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais (ANADEF) se posicionou contra a ação, que ainda pede a indenização por danos morais coletivos de R$ 10 milhões.
A associação lembra “o dever e o compromisso maior de Defensoras e Defensores Públicos com a defesa e a assistência jurídica integral de pessoas em situação de vulnerabilidade que demandam proteção especial do Estado brasileiro”.
Em entrevista para a EXAME, o vice-presidente da ANADEF, Dr. Vladimir Ferreira Correia, comenta o caso e critica a argumentação usada pelo autor da petição. "Em 2020, é constrangedor, dá até vergonha para a instituição", diz.
Segundo ele, esta é a primeira vez que a Defensoria Pública foi usada para coibir uma ação afirmativa. “A Instituição deve proteger os direitos humanos, normalmente nós cobramos a exigência de cotas e políticas afirmativas”, explica ele.
O vice-presidente, que é defensor pelo estado da Bahia, também explica que “marketing de lacração” não é uma base para a ação, da mesma maneira que é impossível argumentar a existência de uma discriminação como o “racismo reverso” no programa.
“O argumento utilizado não condiz com o processo de evolução dos direitos humanos. O programa de trainee do Magazine Luiza vem reconhecer, nos termos que coloca, um déficit da própria empresa na predominância de funcionários brancos na liderança”, fala ele.
E ele não acredita que a ação terá algum efeito, uma vez que a Justiça possui um histórico de reconhecer ações afirmativas como válidas.
Confira a entrevista com o vice-presidente da ANADEF na íntegra:
Qual o papel da Defensoria Pública Federal nesse caso? Cabe uma ação legal para impedir um processo de trainee?
Vejasó. Caber, cabe, tanto que ele entrou com a ação. O ato dele é uma ação que manifesta o entendimento isolado de um defensor. E esse entendimento não é o da carreira como um todo, da instituição. A nota da associação deixa claro que a ação dele não reflete a defensoria, que tem comoobjetivoa promoção e defesa dos direitos humanos.
Agora, quanto a jurisprudência. As cotas são forma de implementação dos diretos humanos. Então, cabe e pode entrar com uma ação. Infelizmente o teor da ação não vai no intuito e finalidade da Defensoria.
Até que ponto vale questionar um programa de recrutamento de empresas privadas?
Estamos falando sobre direito do trabalho e a relação de trabalho é eminentemente privada. Entre empregador e empregados, hoje, temos o princípio da eficácia dos direitos fundamentais. E esse direito, mesmo em relações particulares, como no Magazine Luiza, deve ser obedecido. Tem que respeitar, não pode tudo.
Então, não é possível firmar qualquer cláusula e acordo. O princípio de igualdade está na constituiçãoe, se for violado, podemos ingressar com uma ação. O que a gente discorda não é a possibilidade de a justiça questionar ou julgar, mas o teor da ação.É contrário aos princípios. Se equivocou o colega que entrou com a ação, o entendimento era da cabeça dele.
Na ação, o defensor menciona que o programa de trainee é “marketing da lacração” e que representa uma desvantagem para todos os trabalhadores. O que acha dessa argumentação?
Acho que foi infeliz no argumento da ação como um todo. Ele fala em racismo reverso e em marketing da lacração. Foi infeliz na colocação.
O argumento utilizado não condiz com o processo de evolução dos direitos humanos. O programa de trainee do Magazine Luiza vem reconhecer, nos termos que coloca, um déficit da própria empresa na predominância de funcionários brancos na liderança e que optar por isso para contratar apenas negros nesse momento.
Se é marketing ou não da empresa, não vem ao caso. E isso não é controlável, a plataforma de marketing não pode ser argumento.
O programa do Magalu não foi o primeiro a ter ações afirmativas para negros e há anos temos programa focados em outros grupos, como pessoas com deficiência. Já houve uma reação como ocorre agora, com ação da justiça?
Acho que o diferencial foi o número de vagas serem 100% para negros. Mas eu desconheço, confesso, sobre outros programas e ações em cima deles. Na Defensoria Pública é a primeira ação e isso explica a repercussão. A Instituição deve proteger os direitos humanos, normalmente nós cobramos a exigência de cotas e políticas afirmativas.
Eu, como defensor na Bahia, entrei com uma ação contra a Universidade Federal da Bahia por fraude no processo seletivo de cotas e cobrei critérios para isso. Por isso que a ação contra o Magalu teve essa proporção. É a primeira vez que a Defensoria faz uma ação contra cotas. E isso soa absurdo.
E o que diz a lei? O que pode acontecer com essas ações contra a empresa e seu programa?
Bem, com relação ao racismo reverso. O próprio racismo, como ele é construído, não apenas no Brasil, mas internacionalmente e por tratados de direitos humanos, é dado por atitudes em face de um grupo historicamente excluído e cujos efeitos da exclusão repercutem até hoje. O racismo faz com que o negro seja excluído e sofra efeitos nefastos da discriminação.
Não tem como aplicar para o branco, que não foi excluído e não sofre discriminação. Da mesma forma que não pode falar de heterossexuais ou homens, por não terem sofrido esse processo. Não existe racismo reverso, é um absurdo. O próprio Supremo adota esse posicionamento, não fica no âmbito teórico, é uma prática e o judiciário tem esse posicionamento. Então, no meu modo de ver, as medidas não são racistas, preconceituosas ou discriminatórias.
Elas buscam reparar uma situação. E então vemos que nem toda discriminação é negativa. Aqui entra a discriminação positiva, que trata diferente quem sofre com desigualdade social. É muito duro para o brasileiro ouvir isso quanto aos negros, mas as empresas já fazem ações assim com mulheres e pessoas com deficiência. Na década de 50, começamos a falar de cotas para mulheres em partidos políticos. Para PCD, temos estatuto. Também para idosos. São medidas de discriminação, que não só são aceitas, mas bem-vindas.
A lei e a jurisprudência não admitem essas ações. Em 2020, é constrangedor, dá até vergonha para a instituição. E utilizar um argumento desse demonstra um aspecto ideológico da pessoa que propôs a ação. É um entendimento pessoal pautado na opinião.
A parte da lei que fala em igualdade de oportunidades no mercado de trabalho sendo usada para inibir uma ação afirmativa. Não é uma aplicação absurda?
É absurdo utilizar a lei contra a própria finalidade dela de proteger grupos excluídos, no caso, a população negra. Você vai usar a lei que visa beneficiar essa comunidade contra ela mesma? Por isso mesmo que reforço o fundamento da impossibilidade de racismo reverso. São argumentos absurdos, assim como marketing de lacração.