Vida corporativa: Os novos Jonas da Faria Lima
Seja em Nínive ou no coração financeiro de São Paulo, a virtude é essencial ao ser humano
Bússola
Publicado em 28 de outubro de 2021 às 14h36.
Por Rodrigo Pinotti*
Há um grande empreendimento imobiliário sendo levantado na Avenida Faria Lima, em São Paulo, quase na esquina com a Juscelino Kubistchek. Nele, à beira da rua, é possível avistar uma estrutura gigante em forma de baleia sendo finalizada, em tamanho natural. Segundo consta, será possível atravessar a baleia por dentro, na altura da barriga.
A referência mais óbvia é bíblica: o Livro de Jonas (Pinóquio e Gepeto vieram beeem depois, pessoal). Os responsáveis pelo empreendimento apontaram isso na divulgação do projeto, como sendo uma história de busca de valores um símbolo de transformação. Pessoalmente, em uma leitura não-religiosa, vejo o Livro de Jonas muito mais como um aprendizado sobre humildade e compaixão. O profeta recusa uma missão de Deus, é punido e engolido por um “grande peixe” (que entendemos como a tal baleia), mas é poupado. Jonas então resolve cumprir sua tarefa: alertar os habitantes de Nínive a se arrependerem dos seus pecados, ou serem destruídos. Eles se arrependem e são poupados da ira divina, e aí Jonas fica bravo porque os coitados não foram explodidos (difícil de agradar, o sujeito). No final, leva um sabão do Senhor para aprender a ser mais misericordioso.
Seguindo minha modesta leitura do texto, creio que a escultura seja ainda mais adequada. Humildade, compaixão e misericórdia são características que muitas vezes faltam no mundo dos negócios, do qual a Faria Lima é atualmente a capital. Alguém poderia até argumentar que eles não têm lugar neste meio. De toda forma, um lembrete sempre é bom.
Um simbolismo melhor, porém, não vem da Bíblia, mas de Sá, Rodrix e Guarabyra. Mestre Jonas, de 1973, fala do homem que se autointitula santo e que mora dentro da baleia, onde guarda suas gravatas e seus ternos de linho. Mestre Jonas está feliz ali na baleia, onde a vida é tão mais fácil e de onde nem pode sair pois assinou um papel que vai mantê-lo ali até o fim da vida.
Embora as gravatas estejam saindo de moda e os ternos de linho não sejam lá tão comuns (amarrotam demais), há muitos Mestres Jonas por aí, nas lajes corporativas da Faria Lima e de outras avenidas mundo afora, nas reuniões do Teams, autoproclamados santos e baseando suas ações e decisões que nem sempre levam em conta o que acontece fora da barriga da baleia. Sei que o consenso da crítica é que o trio genial falava da instituição do casamento, mas também existe muita gente casada com o trabalho, então a metáfora continua valendo.
Há uma terceira interpretação possível. A baleia mais famosa do mundo não é a do Livro de Jonas, mas a do livro de Herman Melville. Moby Dicky foi incessantemente e irracionalmente caçada pelo capitão Ahab por ter comido sua perna. Obviamente, Ahab perece na missão (o livro tem exatos 170 anos, então não adianta reclamar de spoilers). A moral da história é que a raiva cega e que a ambição e a vontade desmedida podem colocar tudo a perder — no caso do protagonista de Melville, a própria vida.
Não há nenhuma possibilidade de que a baleia da Faria Lima não se torne o novo ponto instagramável da cidade, e em breve estaremos vendo fotos diversas por todo lado e dancinhas em frente ao cetáceo sintético no TikTok. Que essa imagem seja também uma lembrança de que muitas vezes nos esquecemos de características importantes que podem nos tornar a todos pessoas melhores.
*Rodrigo Pinottié sócio-diretor da FSB Comunicação
Este é um conteúdo da Bússola, parceria entre a FSB Comunicação e a Exame. O texto não reflete necessariamente a opinião da Exame.
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