Joaquim Levy: A não aprovação da PEC dos Precatórios seria uma calamidade?
A conveniência de substituir o programa Bolsa Família motivou o Auxílio Brasil e levou à tentativa frustrada de tributação dos dividendos
Bússola
Publicado em 23 de novembro de 2021 às 19h25.
Por Joaquim Levy*
A conveniência de substituir o programa Bolsa Família motivou o Auxílio Brasil, programa que altera e tenta reunir sob um mesmo nome vários programas já vigentes. O financiamento do novo programa suscitou preocupações fiscais desde cedo, refletidas na sugestão inicial do Ministério da Economia de financiá-lo extinguindo o Abono Salarial. Essa opção foi, no entanto, liminarmente rejeitada pelo presidente da República, cuja preferência por um novo programa sugeriu ser necessário criar uma fonte de receita permanente nova para não afrontar a LRF, o que levou à tentativa frustrada de tributação dos dividendos.
A preocupação do novo programa caber no Teto do Gasto estabelecido pela emenda constitucional nº 95 não era grande no começo de 2021, pela expectativa de que a inflação cederia ao longo do primeiro semestre do ano. Isso criaria uma folga no orçamento de 2022 em que Auxílio Brasil se encaixaria.
Infelizmente, a inflação alta persistiu, reduzindo aquela folga, o que desencadeou uma busca de soluções fora do Teto. Essa busca se acelerou com a comunicação pelo Supremo Tribunal Federal do valor de precatórios a serem pagos em 2022. O valor dessas requisições que o judiciário faz à União para que ela pague no ano seguinte aquilo devido ao demandante vitorioso contra o governo ultrapassou de longe os R$ 50 bilhões esperados e ficou perto de R$ 90 bilhões. A essas pressões juntou-se a decisão do governo de criar um complemento temporário ao Auxílio Brasil, elevando o benefício mensal a R$ 400.
A PEC 23 resultou dessa busca para financiar o Auxílio Brasil “turbinado” dentro do Teto, pagar os precatórios já expedidos e garantir a expectativa do Relator do Orçamento de dispor de um volume de recursos significativos para emendas no Orçamento de 2022.
A PEC aprovada pela Câmara de Deputados no dia 9 de novembro contém duas medidas principais: a primeira permite o parcelamento dos precatórios acima de certo valor que não couberem em um subteto criado ad hoc, empurrando cerca de R$ 50 bilhões para pagamento em anos posteriores. A segunda modifica a regra do aumento anual do Teto, que passou a usar a variação do IPCA sobre os 12 meses até dezembro do ano vencendo e não até junho deste ano, o que aumenta o valor do Teto de 2022 em R$ 67 bilhões. A folga assim criada poderia acomodar o pagamento do Auxílio Brasil e de seu complemento emergencial sob o novo teto, onde ainda caberia um vultoso volume de emendas do Relator e a extensão de benefício fiscal a empresas em 17 setores adiando o fim da desoneração da folha de salário dessas empresas.
As mudanças previstas na PEC causaram grande preocupação pela aparente facilidade de se contornar o Teto de Gastos e por poder gerar rápido acúmulo de obrigações do governo com o parcelamento dos precatórios. O pagamento de precatórios em 2023 dentro do subteto criado pela PEC 23 seria de apenas R$ 45 bilhões caso a inflação de 2022 baixe para 5%. Esse valor seria menos do que o valor que deixaria de ser pago em 2022, de acordo com a PEC, e, evidentemente, insuficiente para quitar o fluxo de novos precatórios. A PEC traz ainda uma série de inovações facilitando a monetização dos precatórios fora do teto cuja implementação pode criar riscos imprevistos.
Os receios trazidos pela mudança do teto e o parcelamento dos precatórios se traduziram em queda expressiva do valor da maioria dos ativos brasileiros. As ações das empresas listadas em bolsa caíram 15% e o dólar subiu 7% entre a publicação da MP criando o Bolsa Família e as discussões finais para aprovação da PEC.
A volatilidade nos mercados caiu desde a aprovação da PEC 23 na Câmara, e se ela não for aprovada no Senado?
No caso da PEC naufragar, o esforço para garantir o pagamento de benefícios do sucessor do Bolsa Família continuará a ser grande, em vista da competição com outras despesas, notadamente aquelas corrigidas pela inflação, que continua acelerada. Mas, o governo tem alternativas para atender as necessidades urgentes dos brasileiros mais vulneráveis diante de um resultado inesperado. Ele pode, por exemplo, publicar uma MP com pedido de abertura de crédito extraordinário para o pagamento do sucesso do Bolsa Família.
O Congresso poderá amparar a MP do crédito extraordinário decretando estado de calamidade pública até, por exemplo, abril de 2022. Ou simplesmente ignorá-la, como fez com a MP1044/2021 que abriu espaço para auxílios emergências no começo do ano, sem objeções do TCU. Essas alternativas poderiam permitir o pagamento de benefícios emergenciais, eventualmente em valores menores do que os R$ 400 mensais e para um público maior do que o do Bolsa Família. Elas trariam uma resposta aos efeitos da Covid-19, calamitosos para muitos indivíduos enquanto a economia não se restabelecer plenamente.
O crédito extraordinário poderia resultar em despesa de R$20-40 bilhões fora do Teto e tem um custo fiscal inegável. Mas um benefício que fosse apenas até meados de 2022 poderia ajudar na recuperação econômica com pouco prejuízo para o quadro fiscal dos períodos à frente e menos problemas para o governo em 2023. Excluir do Teto a despesa com, por exemplo, o complemento temporário ao Auxílio Brasil abriria, a seu turno, espaço para o pagamento integral dos precatórios de 2022 sob o Teto, ainda que talvez às custas de espaço para as emendas de relator. Esse cenário é compatível com a imediata melhora do câmbio, que ajudaria no combate à inflação e daria alento à atividade econômica, sem prejuízo da popularidade do governo.
O estado de calamidade pública, se decretado, comporta riscos de derrapagem fiscal, mas poderia mostrar o valor do “protocolo” desenhado pelo Ministério da Economia em 2021 e incluído com grande custo na EC 109. Esse protocolo criou tantas flexibilidades e algumas restrições à despesa de todos os entes. Essas restrições visam compensar à frente o gasto extraordinário feito no momento excepcional, exigindo, por exemplo, a postergação de aumentos salariais do funcionalismo da União, Estados e Municípios. Essa “trava” a um aumento permanente de despesa pode ser boa, dada a atual folga de caixa dos entes subnacionais, onde a questão do funcionalismo é até mais grave do que na União.
A não aprovação da PEC 23 pode ser uma boa notícia para os mercados, apesar da incerteza que ela eventualmente traga no curtíssimo prazo. Há espaço, nessas circunstâncias, de o governo optar por alternativas bem delimitadas que existem e podem proteger os mais vulneráveis, preservar a adimplência da União e fortalecer a confecção e execução transparente do Orçamento, trazendo estabilidade à economia.
Texto publicado originalmente no site O Especialista
*Joaquim Levyé engenheiro naval pela UFRJ, com mestrado em economia pela FGV e doutorado em economia pela Universidade de Chicago. É diretor de Estratégia Econômica e Relações com Mercados no Banco Safra. Entre outros cargos, integrou o FMI, foi secretário-adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda; economista-Chefe do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão e secretário do Tesouro Nacional. Foi vice-presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, secretário de Fazenda do Rio de Janeiro, diretor do Banco Mundial e presidente do BNDES.