Exame Logo

Refugiados se formam em curso e conquistam passaporte

Refugiados ganharam uma pequena folha com espessura grossa e uma arte bonita. Mais importante que a estética era o título: "Certificado de Aulas de Português"

Refugiados na escola: curso de português foi criado no ano passado, em uma parceria entre a Embaixada dos Estados Unidos, a Mesquita Brasil e a Missão da Paz (Getty Images)
DR

Da Redação

Publicado em 2 de junho de 2016 às 22h23.

"Pááá! Poooou!". Durante três anos esses foram os únicos sons que Hanan Dacka, de 10 anos, ouvia na Síria. Por segurança , passava o dia trancada em casa. Não ía à escola . Não via amigos. Não aproveitava o prazer de ser criança.

Hanan fugiu da guerra civil e se refugiou com a família no Brasil há pouco mais de um ano.

Ontem, Hanan e outros 79 colegas refugiados ganharam uma pequena folha A4, daquelas com espessura grossa e uma arte bonita. Mais importante que a estética era o título: "Certificado de Aulas de Português".

Foi o primeiro diploma - de muitos que o futuro destina - conquistado pela jovem síria. O curso de português foi criado no ano passado, em uma parceria entre a Embaixada dos Estados Unidos, a Mesquita Brasil e a Missão da Paz. Foram seis meses de aula para ensinar o bê-a-bá do português e um alfabeto completamente novo.

De longe, pode parecer mais uma conquista corriqueira, daquelas que a gente compartilha com os amigos mais próximos e com a família. Mas essa merece ser compartilhada com o mundo. Aprender português para esses 80 refugiados significa recomeço. Mas também é sinônimo de oportunidade, dignidade, trabalho, interação e vida. Sim, uma nova vida.

Os refugiados que desembarcam por aqui não têm poder de escolha. É fugir ou morrer. Uma matemática simples e objetiva. São mais de 2.200 sírios que vivem no Brasil atualmente, segundo o último relatório do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) - a maior comunidade estrangeira no País. Língua diferente, hábitos distintos, religião desconhecida. São todos os obstáculos possíveis para quem quer apenas viver em paz, sem guerras.

A menina Hanan chegou em São Paulo com a mãe, o pai, e três irmãos. A Sara, recém nascida, a irmã de um ano, Yara, e Mustafá, que tem 16. Eles vivem com outras 11 pessoas em uma quitinete no bairro Glicério, na região central da cidade. O pai, Khaled, está empregado em uma fábrica de capacetes, mas o salário é muito baixo. Mustafá trabalha vendendo capinhas de celular para ajudar na renda da família. "Meu pai gostaria que Mustafá estudasse, tivesse um futuro. Mas tudo é complicado. São mais de 11 pessoas para sustentar", disse.

Hanan foi a única da família que teve oportunidade de aprender o português. Falante, aprendeu a língua com uma facilidade invejável. "Em pouco mais de dois meses eu já estava falando. Não sei como aprendi", conta. No caderno rosa, anota tudo em árabe, inglês e português. Treina todas as palavras novas, com uma letra linda, daquelas de fazer inveja em qualquer médico.

Nas contracapas, declarações de amor das novas amigas brasileiras. "Te amo, Hanan". "Você é linda". "Amigas para sempre". Orgulhosa, ela diz: "todos gostam muito de mim aqui no Brasil".

Para Hanan, aprender o português significou oportunidade. Um mundo delas. No começo do mês passado, quando a tocha Olímpica chegou aqui no Brasil, ela foi escolhida para representar os refugiados e carregou a tocha pelas ruas de Brasília.

"Foi o maior presente da minha vida. Eu nunca vou esquecer", conta ela, com o sorriso largo."Eu representei as crianças refugiadas da Síria e todos os meus amigos que eu deixei por lá."

Para o futuro, ela não tem dúvidas. A vontade por novas descobertas faz ela seguir em busca de mais uma oportunidade. "Quero ser jornalista para contar a história do meu povo".

Razan Suliman tem 26 anos, nasceu em Aleppo, na Síria, onde viveu até a guerra civil tirar tudo da sua vida. Muçulmana sunita, foi para faculdade logo cedo. Formou-se em computação e trabalhava como professora de inglês nas poucas escolas da cidade síria. Antes da guerra, a vida "era perfeita e feliz".

Casada e esperando um filho, precisou deixar o país às pressas. Fugiu para Damasco e logo em seguida para Beirute, no Líbano. Tentou refúgio na França, Jordânia, Arábia Saudite e Egito. Todos fecharam as portas.

No último fio de esperança, viu um país que só conhecia pelo futebol carimbar seu visto de entrada. "Nenhum outro país nos aceitou. Não sabia nada sobre o Brasil. Só sabia que era bom no futebol. Não entendia uma palavra em português, conta.

O filho que ela tanto esperava para completar a família nasceu em solo paulista. "Dei o nome de Adam. Entre tantos momentos de tristeza, foi o dia que eu mais sorri na vida".

No Brasil, ela e o marido não conseguiram emprego. Razan fez mais de 10 entrevistas. A resposta "não temos vagas" virou rotina. "É sempre a mesma desculpa. Falam que eu não entendo o português. Me sinto muito triste, incapaz", diz.

A família vive com a ajuda da Mesquita Brasil, ponto de encontro entre os refugiados sírios em São Paulo. A casa foi alugada pelo sheik da mesquita. Vivem e dependem das doações de comida, roupa e mantimentos.

Nos últimos seis meses, Razan lembrou os tempos de faculdade, em que virava as noites estudando as fórmulas e sistemas de computação. "Quando Adam dormia, eu pegava os jornais e começava a colocar em prática tudo o que eu aprendia nas aulas de português".

Razan virou uma máquina de aprender essa língua que até nos brasileiros causa pavor. O combustível é, era e será sempre a família. "Eu soletrava as palavras em voz alta até falar bem. A que eu tenho mais dificuldade até hoje é liquidificador. Sempre travo no meio", gargalha.

"É um sonho ver que depois de seis meses eles conquistaram total autonomia. Eles são capazes de ir em qualquer lugar, se comunicar. São capazes de reconstruir a vida sozinhos", diz a professora Bruna Pastoriza. "Esse é o poder de transformação que o aprendizado de uma língua proporciona."

Entre mais de 11 milhões de desempregados e uma crise pela frente, Razan é apenas sinônimo de esperança. E sem saber, virou fã de Beth Carvalho e do otimismo brasileiro. "Eu adoro aquela música que vocês cantam", diz, tentando relembrar a letra. "Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima".

Veja também

"Pááá! Poooou!". Durante três anos esses foram os únicos sons que Hanan Dacka, de 10 anos, ouvia na Síria. Por segurança , passava o dia trancada em casa. Não ía à escola . Não via amigos. Não aproveitava o prazer de ser criança.

Hanan fugiu da guerra civil e se refugiou com a família no Brasil há pouco mais de um ano.

Ontem, Hanan e outros 79 colegas refugiados ganharam uma pequena folha A4, daquelas com espessura grossa e uma arte bonita. Mais importante que a estética era o título: "Certificado de Aulas de Português".

Foi o primeiro diploma - de muitos que o futuro destina - conquistado pela jovem síria. O curso de português foi criado no ano passado, em uma parceria entre a Embaixada dos Estados Unidos, a Mesquita Brasil e a Missão da Paz. Foram seis meses de aula para ensinar o bê-a-bá do português e um alfabeto completamente novo.

De longe, pode parecer mais uma conquista corriqueira, daquelas que a gente compartilha com os amigos mais próximos e com a família. Mas essa merece ser compartilhada com o mundo. Aprender português para esses 80 refugiados significa recomeço. Mas também é sinônimo de oportunidade, dignidade, trabalho, interação e vida. Sim, uma nova vida.

Os refugiados que desembarcam por aqui não têm poder de escolha. É fugir ou morrer. Uma matemática simples e objetiva. São mais de 2.200 sírios que vivem no Brasil atualmente, segundo o último relatório do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) - a maior comunidade estrangeira no País. Língua diferente, hábitos distintos, religião desconhecida. São todos os obstáculos possíveis para quem quer apenas viver em paz, sem guerras.

A menina Hanan chegou em São Paulo com a mãe, o pai, e três irmãos. A Sara, recém nascida, a irmã de um ano, Yara, e Mustafá, que tem 16. Eles vivem com outras 11 pessoas em uma quitinete no bairro Glicério, na região central da cidade. O pai, Khaled, está empregado em uma fábrica de capacetes, mas o salário é muito baixo. Mustafá trabalha vendendo capinhas de celular para ajudar na renda da família. "Meu pai gostaria que Mustafá estudasse, tivesse um futuro. Mas tudo é complicado. São mais de 11 pessoas para sustentar", disse.

Hanan foi a única da família que teve oportunidade de aprender o português. Falante, aprendeu a língua com uma facilidade invejável. "Em pouco mais de dois meses eu já estava falando. Não sei como aprendi", conta. No caderno rosa, anota tudo em árabe, inglês e português. Treina todas as palavras novas, com uma letra linda, daquelas de fazer inveja em qualquer médico.

Nas contracapas, declarações de amor das novas amigas brasileiras. "Te amo, Hanan". "Você é linda". "Amigas para sempre". Orgulhosa, ela diz: "todos gostam muito de mim aqui no Brasil".

Para Hanan, aprender o português significou oportunidade. Um mundo delas. No começo do mês passado, quando a tocha Olímpica chegou aqui no Brasil, ela foi escolhida para representar os refugiados e carregou a tocha pelas ruas de Brasília.

"Foi o maior presente da minha vida. Eu nunca vou esquecer", conta ela, com o sorriso largo."Eu representei as crianças refugiadas da Síria e todos os meus amigos que eu deixei por lá."

Para o futuro, ela não tem dúvidas. A vontade por novas descobertas faz ela seguir em busca de mais uma oportunidade. "Quero ser jornalista para contar a história do meu povo".

Razan Suliman tem 26 anos, nasceu em Aleppo, na Síria, onde viveu até a guerra civil tirar tudo da sua vida. Muçulmana sunita, foi para faculdade logo cedo. Formou-se em computação e trabalhava como professora de inglês nas poucas escolas da cidade síria. Antes da guerra, a vida "era perfeita e feliz".

Casada e esperando um filho, precisou deixar o país às pressas. Fugiu para Damasco e logo em seguida para Beirute, no Líbano. Tentou refúgio na França, Jordânia, Arábia Saudite e Egito. Todos fecharam as portas.

No último fio de esperança, viu um país que só conhecia pelo futebol carimbar seu visto de entrada. "Nenhum outro país nos aceitou. Não sabia nada sobre o Brasil. Só sabia que era bom no futebol. Não entendia uma palavra em português, conta.

O filho que ela tanto esperava para completar a família nasceu em solo paulista. "Dei o nome de Adam. Entre tantos momentos de tristeza, foi o dia que eu mais sorri na vida".

No Brasil, ela e o marido não conseguiram emprego. Razan fez mais de 10 entrevistas. A resposta "não temos vagas" virou rotina. "É sempre a mesma desculpa. Falam que eu não entendo o português. Me sinto muito triste, incapaz", diz.

A família vive com a ajuda da Mesquita Brasil, ponto de encontro entre os refugiados sírios em São Paulo. A casa foi alugada pelo sheik da mesquita. Vivem e dependem das doações de comida, roupa e mantimentos.

Nos últimos seis meses, Razan lembrou os tempos de faculdade, em que virava as noites estudando as fórmulas e sistemas de computação. "Quando Adam dormia, eu pegava os jornais e começava a colocar em prática tudo o que eu aprendia nas aulas de português".

Razan virou uma máquina de aprender essa língua que até nos brasileiros causa pavor. O combustível é, era e será sempre a família. "Eu soletrava as palavras em voz alta até falar bem. A que eu tenho mais dificuldade até hoje é liquidificador. Sempre travo no meio", gargalha.

"É um sonho ver que depois de seis meses eles conquistaram total autonomia. Eles são capazes de ir em qualquer lugar, se comunicar. São capazes de reconstruir a vida sozinhos", diz a professora Bruna Pastoriza. "Esse é o poder de transformação que o aprendizado de uma língua proporciona."

Entre mais de 11 milhões de desempregados e uma crise pela frente, Razan é apenas sinônimo de esperança. E sem saber, virou fã de Beth Carvalho e do otimismo brasileiro. "Eu adoro aquela música que vocês cantam", diz, tentando relembrar a letra. "Levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima".

Acompanhe tudo sobre:Oriente MédioRefugiadosSíria

Mais lidas

exame no whatsapp

Receba as noticias da Exame no seu WhatsApp

Inscreva-se

Mais de Brasil

Mais na Exame