Fundeb destinaria R$ 16 bi para escolas privadas; especialistas questionam
O uso de recursos públicos por escolas privadas pode tirar do Fundeb 15,9 bilhões de reais. Grupos de diferentes espectros ideológicos questionam o texto
Carolina Riveira
Publicado em 15 de dezembro de 2020 às 06h00.
Última atualização em 15 de dezembro de 2020 às 10h38.
É sob pressão para fazer mudanças que o Senado pode votar nesta terça-feira, 15, o texto de regulamentação do Fundeb, fundo que sustenta boa parte da educação básica, da creche ao ensino médio.
Na Câmara, a regulamentação do Fundeb foi aprovada na última quinta-feira, mas gerou desavenças. O principal ponto em debate é um destaque apresentado de última hora pela base do governo do presidente Jair Bolsonaro. A mudança incluiu no texto que parte dos recursos sejam direcionados a escolas privadas sem fins lucrativos, matrículas em escolas religiosas, filantrópicas, projetos de contraturno e o Sistema S (que inclui instituições como Sebrae e Sesc).
O uso de recursos por instituições privadas pode tirar do Fundeb 15,9 bilhões de reais, segundo estudo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e da Fineduca (Associação Nacional de Pesquisa em Financiamento da Educação).
Só com o direcionamento de 10% do fundo para escolas religiosas (as chamadas escolas confessionais) no ensino fundamental e médio, uma das emendas, seriam 10,2 bilhões de reais, segundo projeção da Campanha. Em estudo parecido, o Todos Pela Educação estima perda de até 12,8 bilhões de reais nessa frente.
O Fundeb expiraria no fim deste ano, mas foi tornado permanente por uma Emenda à Constituição ( EC 108/2020 ) aprovada em agosto no Congresso e amplamente elogiada. Passada a emenda, o que tramita agora é um texto que regula os preceitos gerais do novo Fundeb, o Projeto de Lei nº 4.327/2020.
Até então, a Emenda Constitucional já garantia a possibilidade de recursos do Fundeb para convênios entre prefeituras e instituições privadas, mas só na creche e pré-escola, além de exceções como educação especial e no campo. Agora, a possibilidade foi ampliada para outras etapas.
Embora somente um percentual das matrículas privadas possa usar recursos do fundo público, grupos ligados à educação, de diferentes frentes ideológicas, pedem a revogação da medida. Mais de 80 entidades ligadas à educação se posicionaram contra o texto que veio da Câmara.
A leitura é de que os recursos atuais para a educação já são insuficientes para a rede pública, que atende 80% dos alunos brasileiros no ensino básico.
O montante total que seria repartido com instituições privadas corresponde a todo o dinheiro que a União investiu no Fundeb em 2019 -- e a 80% da participação federal até mesmo no novo Fundeb, que terá aumento dos recursos.
A ampliação dos recursos da União para o fundo era vista justamente como o maior avanço da nova formatação do Fundeb. O temor é que o texto atual invalide na prática o aumento dos recursos para a rede pública.
Andressa Pellanda, coordenadora da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, diz que o texto da regulamentação do Fundeb “afronta diversos artigos da Constituição” e que essa proposta já havia sido derrotada no debate da Emenda Constitucional em agosto. “Esse desvio vai ser um golpe muito forte para a escola pública, que precisa de mais recursos, como foi aprovado pela EC 108/2020. Precisamos garantir matrículas e qualidade e o desafio é enorme”, diz.
Pelas regras atuais, o Brasil investe por aluno menos da metade do que nas economias desenvolvidas da OCDE . O objetivo de aprimorar a remuneração dos professores da rede pública -- que hoje ganham 70% da média do que ganham profissionais com a mesma formação -- também deve ficar comprometido.
“O salário de professores no geral é responsável pela maior fatia dos gastos por aluno, de modo que o relativamente baixo gasto por aluno no Brasil está refletido nos salários de professores”, escreveu a OCDE em seu relatório sobre o Brasil.
Em meio à urgência para votar o Fundeb antes do fim do ano, o objetivo dos críticos da regulamentação na sociedade civil e de parte dos senadores é mudar o texto sem que ele precise voltar para a Câmara. O relator no Senado, senador Izalci Lucas (PSDB-DF), disse que deve fazer mudanças no projeto de lei, incluindo nos trechos de destinação a entes privados, segundo a Agência Senado.
Como funciona o Fundeb
O Fundeb é compartilhado entre os estados e a União, com essa última tendo a obrigação de adicionar 10% ao investido pelos estados. Na ponta, as escolas são geridas por estados e municípios, mas a União tem função constitucional de auxiliar os entes federativos, incluindo financeiramente.
No novo Fundeb, a complementação da União será ampliada progressivamente, dos atuais 10% até chegar a 23% em 2026.
Esse dinheiro adicional da União era até este ano destinado somente a estados que não conseguem chegar a um valor mínimo por aluno (nove estados recebem os recursos, todos das regiões Norte e Nordeste). No novo Fundeb, receberão complementação também cidades pobres em estados ricos, que saíam prejudicadas no modelo anterior.
A regulamentação do novo Fundeb precisa ser aprovada ainda neste ano para que os recursos entrem sem contratempos no orçamento de 2021 de estados e municípios. Em oito em cada dez cidades brasileiras, os recursos do fundo respondem por mais de 50% do financiamento da educação.
Desafios na pandemia
A discussão sobre para onde irão os recursos do Fundeb se torna ainda mais essencial em meio à crise econômica gerada pela pandemia, quando estados e municípios terão queda bruta na arrecadação de impostos e nos recursos previstos para a educação. A volta às aulas, que deve acontecer de forma híbrida mesmo após o começo da aplicação de vacinas no Brasil, também exigirá da rede pública maior investimento em máscaras e equipamentos de proteção, saneamento, internet e outros aparatos.
“O recurso do Fundeb é primordial para que possamos fazer um retorno às aulas presenciais de forma segura”, diz Pellanda.
Com a crise, a escola pública deve ainda receber um fluxo maior de alunos que antes estudavam em escolas privadas.
O desafio da rede pública e da falta de recursos é maior para regiões mais pobres. Segundo estudo do Ipea, há quase seis milhões de alunos sem internet no Brasil (entre ensino básico e superior), a maioria de minorias raciais, como negros e indígenas, e morando nas regiões Norte e Nordeste.