Terra Ianomâmi: até chegar ao varejo, o ouro do garimpo traça um percurso frágil e duvidoso em relação à sua procedência (Rogério Assis - ISA/Divulgação)
Agência O Globo
Publicado em 26 de janeiro de 2023 às 15h48.
Última atualização em 26 de janeiro de 2023 às 15h56.
Extrair ouro de reservas indígenas é proibido, mas os donos das centenas de garimpos que envenenam os rios e levam destruição e doenças à Terra Indígena Ianomâmi, no Norte do Brasil, não encontram dificuldades para escoar o produto. Isso ocorre devido à facilidade de inserir o minério ilegal na cadeia produtiva. Estudos indicam que quase metade do ouro comercializado no país tem indícios de ilegalidade.
Nesta quarta, o ministro da Justiça, Flávio Dino, defendeu uma revisão da legislação que regula a comercialização do ouro. Pela lei atual, as Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM), que têm a prerrogativa de comprar o ouro extraído no Brasil, não precisam apurar a procedência do minério. Assim, garimpeiros e mineradores precisam apenas declarar a origem do ouro e, muitas vezes, usam licenças de lavras de territórios legalizados para esquentar o ouro ilegal.
Até chegar ao varejo, o ouro do garimpo traça um percurso frágil e duvidoso em relação à sua procedência. Em 2021, o Brasil registrou 52,8 toneladas de ouro com graves indícios de ilegalidade, o que equivale a 54% da produção nacional. O montante é 25% maior do que o verificado em 2020, como mostra o levantamento realizado pelo Instituto Escolhas.
Bancos, fundos de investimento, cooperativas de crédito e até agiotas financiam a exploração de minérios em terras brasileiras. Outros agentes, como facções do crime organizado, capitaneiam a exploração ilegal, que ocorre em unidades de conservação e reservas indígenas, como na TI Ianomâmi. São eles que injetam capital para que a produção seja feita em escala industrial, com uso de maquinário pesado, aeronaves e novas tecnologias.
Os detentores do capital empregam recursos humanos locais para extração do ouro, como integrantes de famílias de baixa renda que há gerações se dedicam à garimpagem, além de povos ribeirinhos e indígenas cooptados pelo crime. Os invasores têm acesso à terra indígena empregando a força ou cooptando lideranças das comunidades. Como 98% da TI Ianomâmi são acessados somente por via aérea, o garimpo sequestrou pistas de pouso da região, dando preferência à exploração em rochas já conhecidas desde a primeira corrida pelo ouro, na década de 1980, como em Homoxi e Surucucu.
Após extraído, o produto é vendido localmente por mineradoras, cooperativas de garimpeiros ou atravessadores para distribuidoras de títulos e valores mobiliários (DTVMs), sem a necessidade de comprovação da sua origem legal. O vendedor deve apresentar uma Permissão de Lavra Garimpeira (PLG), concedida pela Agência Nacional de Mineração (ANM), mas não precisa provar que o produto foi mesmo extraído do local a qual se refere a autorização. Trata-se de um processo autodeclaratório, com brechas para que o ouro ilegal se misture ao minério produzido legalmente. O estado de Roraima não tem registros oficiais de comercialização de ouro, ou seja, todo ouro retirado em território ianomâmi é vendido como se fosse oriundo de outros estados, como o Pará.
Refinarias, joalherias e outros setores da indústria e do mercado nacional e internacional compram o ouro com falsa identificação de origem, como se fosse legal. Já neste ponto, é quase impossível detectar a "lavagem" do ouro de áreas protegidas sem uma investigação criminal.