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(Costfoto/NurPhoto/Getty Images)
Repórter de macroeconomia
Publicado em 18 de agosto de 2023 às 06h26.
Última atualização em 18 de agosto de 2023 às 14h23.
A desaceleração do crescimento chinês não deve reduzir a demanda do país por alimentos vindos do Brasil, avalia Cláudia Trevisan, diretora-executiva do Conselho Empresarial Brasil-China.
"A China vai continuar a ter uma forte demanda por alimentos, porque a gente não está vendo uma contração da China, mas sim uma desaceleração. A renda per capita da China vai continuar crescendo, e com esse crescimento, vai ter um aumento do consumo de alimentos", afirma Trevisan, em entrevista à EXAME.
Após acumular altas no PIB acima de 10% ao ano, nos anos 2000, o país foi reduzindo a marcha na década passada. A pandemia trouxe mais problemas, e em 2022 o país cresceu 2,9%. A previsão para este ano, em torno de 5%, vem sendo reduzida por analistas. O dado parece ruim, mas por vezes se perde a dimensão do tamanho da economia chinesa. "Crescer 5% em uma economia de 18 trilhões de dólares significa que a China vai incorporar em sua economia duas Argentinas ou meio Brasil em um ano", diz Trevisan.
A situação chinesa pode ter efeitos no Brasil, já que a China é hoje o país que mais compra produtos brasileiros. Em 2022, o país exportou US$ 91,3 bilhões em mercadorias para lá.
A diretora do CEBC foi correspondente na China pelos jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo e fez mestrado em política pública internacional pela Universidade Johns Hopkins. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Quais fatores levaram à desaceleração da China?
Foi um conjunto de coisas. A política de covid zero afetou muito o funcionamento da economia nos últimos três anos, com vários lockdowns e fechamento de empresas. Além disso, houve desinflação no setor imobiliário, que tem peso muito grande no PIB. O setor de construção civil e suas ramificações correspondem a cerca de 25% do PIB e cerca de 30% do investimento do país. Além disso, há uma crise de confiança tanto dos consumidores quanto dos empresários. O setor privado na China responde por 80% do emprego urbano e por 60% da economia e tem participação muito grande em inovação e investimento. Há uma queda de investimento privado desde o começo desse ano. No caso das famílias, a gente está vendo uma reticência em aumentar o consumo. Houve um aumento absurdo do volume de depósitos bancários no primeiro semestre desse ano, que mostra que as famílias estão preferindo guardar do que gastar.
Como essa desaceleração pode afetar o Brasil?
A China vai continuar a ter uma forte demanda por alimentos, porque não estamos vendo uma contração, mas uma desaceleração. Isso significa que a renda per capita vai continuar crescendo. No ano passado, o PIB per capita da China foi 40% maior do que o do Brasil, e está na casa dos 13 mil dólares, e a previsão do FMI é que chegue a 20 mil dólares em 2028. Com isso, vai ter um contínuo aumento do consumo de alimentos e uma sofisticação. Nos últimos anos, vimos um aumento da demanda por carne bovina brasileira. A China é hoje o maior mercado para a carne [brasileira], assim como para soja, carne de frango, açúcar, algodão. No ano passado também foi liberada a exportação de milho, e os embarques devem crescer bastante. Até 2018, 2019, a maior parte da importação era de produtos a granel, como soja em grão. Desde então, a China passou a importar mais produtos prontos para o consumo que tendem a ser industrializados, como carne processada, lácteos, café. A China está se tornando um grande mercado de café. Isso abre oportunidades para o Brasil. A China é o maior importador de alimentos do mundo e o Brasil é o maior fornecedor de alimentos para a China: responde por 20% do total.
E no caso de outros itens, como ferro?
O minério de ferro é um pouco mais afetado. No primeiro semestre, teve uma diminuição da exportação em termos de preço, que caiu 9%, por conta da queda da cotação do produto, mas o volume exportado aumentou 8%. Temos de esperar para ver como essa crise da construção civil vai evoluir, mas a demanda continua.
Como o setor imobiliário entrou em crise?
Em 2020, o governo adotou medidas para tentar desinflar o setor, reduzir o endividamento e o preço dos imóveis, que é muito alto na China. Em cidades como Pequim e Xangai, o preço do metro quadrado é próximo ou maior que em Nova York. O governo queria reduzir o peso desse setor na economia, para ter um crescimento mais sustentável. A crise tem ramificações. É um elemento que está ajudando a deprimir a confiança dos consumidores. Comprar imóveis era o investimento mais seguro para as famílias chinesas. A bolsa chinesa tradicionalmente é super volátil e há poucas opções de investimento financeiro para as famílias. A expectativa era de que os preços iam subir constantemente, como subiram até o começo desta crise. E 70% da riqueza das famílias chinesas está concentrada em imóveis. Então se há uma queda no preço, isso gera uma queda na percepção de riqueza, o que pode agravar a falta de confiança.
Qual o peso real da desaceleração atual?
Aquela China que crescia 10% ao ano não volta mais. A gente vai ver uma China crescendo muito mais próximo de 5%, o que não é um desastre. O tamanho da economia é muito maior do que há 10 anos. Hoje a China tem uma economia de 18 trilhões de dólares. Crescer 5% em uma economia de 18 trilhões de dólares significa que a China vai incorporar em sua economia duas argentinas ou meio Brasil em um ano. A China já vinha desacelerando antes da Covid e o governo tinha como meta crescer seis, sete porcento. A grande preocupação é talvez a percepção de que o governo não tenha tantos instrumentos para enfrentar essa desaceleração como no passado. O grau de endividamento da economia hoje é muito maior do que era. E há uma avaliação do próprio governo de que o pacote de estímulo adotado na crise de 2008 teve efeitos colaterais nefastos, como o crescimento do endividamento e um excesso de investimentos que nem sempre fizeram sentido do ponto de vista econômico. O governo chinês não quer repetir um mega pacote de estilo semelhante ao de 2008.
O que o governo tem feito para tentar melhorar as coisas?
Tem tentado fazer um rebalanceamento da economia: diminuir o peso dos investimentos e aumentar o consumo como motor de crescimento. O consumo na China corresponde só a 40% do PIB, o que é muito baixo. Nos Estados Unidos, ele corresponde a 70% do PIB. Na China, os investimentos respondem por 43% do PIB. É insustentável manter esse ritmo de investimento por tanto tempo em uma economia que já construiu grande parte da sua infraestrutura e de suas fábricas. Com isso, o investimento vai ter um retorno cada vez menor. A China pode também fazer uma série de reformas estruturais que teriam impacto muito grande sobre o aumento do consumo e o crescimento. A grande questão é se o governo vai fazer ou não.
Quais reformas?
Vai desde abertura de novos setores para investimento privado até reformas no hukou, o registro de residência que separa os moradores da cidade e do campo. Na China, você é vinculado ao local que nasceu. Cerca de 300 milhões de migrantes foram trabalhar nas cidades, mas possuem hukou rural. Essas pessoas não têm acesso a serviços públicos nas cidades, como saúde e educação. Eles não conseguem matricular filhos em escola pública e se têm problema de saúde, têm que voltar para sua cidade ou pagar por um atendimento. Isso deprime o consumo dessas pessoas. Essa é uma das reformas estruturais que poderia acelerar a urbanização chinesa e aumentar o crescimento.