Posto de combustíveis do DF vende gasolina com preço quase 40% menor no Dia da Liberdade de Impostos (Marcelo Camargo/Agência Brasil)
Flávia Furlan
Publicado em 26 de julho de 2017 às 18h00.
Última atualização em 26 de julho de 2017 às 22h33.
São Paulo – O que era temido aconteceu: os brasileiros vão ter de pagar 10 bilhões de reais a mais nos cinco meses que restam deste ano para abastecer seus veículos com gasolina, etanol ou diesel. Mas isso não significa que os tanques vão ficar mais cheios. Na verdade, esses recursos irão para os cofres públicos. No dia 20 de julho, o governo anunciou a elevação das alíquotas dos impostos PIS e Cofins que incidem sobre os combustíveis, uma medida tomada para tentar atingir a meta fiscal de um déficit de 139 bilhões de reais neste ano.
A repercussão, no entanto, não será apenas para quem anda de carro, pois o encarecimento dos combustíveis afeta os serviços de transporte e, portanto, os custos das empresas país afora. O banco Safra já estima que a inflação deste ano será de 3,5%, e não mais de 3,1%, como esperava anteriormente. A consultoria MB Associados aposta que a taxa básica de juro cairá para 8,25% até dezembro, mas não aguarda novos cortes depois disso.
“Tanto a incerteza fiscal quanto a possibilidade de novos aumentos de impostos podem colocar o Banco Central novamente em modo cauteloso”, diz Sergio Vale, economista-chefe da MB. Essa mudança retarda o impulso que a política monetária pode dar à recuperação econômica. E o que todos esses números mostram é que, diante da dificuldade de ajustar o orçamento oficial, a principal saída do governo é a mesma de sempre: tirar mais da população em geral.
Enquanto o Brasil passa pela maior crise de sua história, uma série de privilégios na máquina pública, no Executivo, no Legislativo e no Judiciário continua incólume — e as corporações lutam para mantê-los. Essas regalias se traduzem em reajustes salariais acima da inflação, remunerações que ultrapassam 100 000 reais ao mês, auxílio-moradia para quem já tem casa própria e não se desloca entre cidades para trabalhar e pagamento de escola para os filhos.
É também o caso de órgãos que desperdiçam dinheiro público com aluguéis caríssimos em bairros nobres, nas diárias de empregados e nos serviços terceirizados. “Mudanças nessas coisas seriam importantes como disciplinadoras da gestão pública”, diz o ministro Dyogo Oliveira, do Planejamento. “Mas, para as contas públicas, o mais importante mesmo é atacar a despesa com a Previdência.”
Realmente, os privilégios isoladamente podem ter pouca representatividade. Mas juntos têm um efeito significativo. Um estudo da Consultoria de Orçamento e Fisca-lização Financeira da Câmara identificou 8 bilhões de reais em contas que o governo conseguiria economizar por ano se barrasse o aumento de despesas com passagens aéreas, compra de material de consumo e contratação de terceiros, por exemplo.
De grão em grão, seria o equivalente a 80% do aumento do imposto dos combustíveis que recaiu sobre os contribuintes. “Não há problema em valorizar carreiras com salários altos, desde que não se usem penduricalhos para as remunerações triplicarem e saírem do teto constitucional”, diz Ricardo Volpe, diretor da consultoria da Câmara. “Em todos os órgãos do Estado há espaço para cortar esses gastos.”
Na situação atual, iniciativas para cortar essas despesas deveriam ser consideradas. Ainda mais porque a reforma da Previdência, que deve estancar o crescimento dos gastos com aposentadorias, está demorando a sair. Aqui também os servidores públicos têm peso. A previdência dos funcionários civis e militares da União atende 980 000 pessoas, ante 32,7 milhões do sistema dos trabalhadores do setor privado.
Mas o regime da União tem um déficit que equivale a metade do buraco do regime da iniciativa privada. A diferença decorre da herança de benefícios dos servidores. Quem se aposentou até 2003, quando foi feita uma reforma, recebe como benefício mensal o maior salário da carreira, o que não é a realidade do trabalhador do setor privado. E quem se aposentou depois de 2003 pode parar cinco anos mais cedo.
“Já fizemos duas reformas constitucionais, mas permanecem alguns privilégios. Fora isso, há um estoque de aposentados ultraprivilegiados no setor público”, diz o economista Pedro Nery, consultor do Senado. A atual proposta de reforma que tramita no Congresso iguala a idade mínima para se aposentar dos setores privado e público.
Com tantas benesses na máquina pública, não é de surpreender que o Brasil saia da curva na comparação internacional. Há situações inusitadas em todos os poderes. No Brasil, 12% da força de trabalho são funcionários públicos, ante a taxa média de 21% da OCDE, o grupo dos países ricos. Só que o Brasil gasta a mesma quantia com pessoal que esses países, na proporção do produto interno bruto. Ou seja: pagamos praticamente o mesmo por menos servidores proporcionalmente.
A despesa com a Justiça brasileira chega a 1,3% do produto interno bruto, enquanto não ultrapassa 0,15% na Espanha, nos Estados Unidos e no Reino Unido. E o que faz grande diferença é o gasto com pessoal. “Temos um número relativamente mediano de magistrados, mas nosso Judiciário é composto de muitas pessoas com remunerações expressivas, colocando sua despesa entre as mais altas do mundo”, diz Luciano da Ros, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Sul responsável pelos dados. Por aqui, um juiz ganha, em média, 46 000 reais por mês, com casos que chegam a 160 000 reais, segundo estudo da Escola Brasileira de Administração Pública, da Fundação Getulio Vargas.
Os parlamentares também têm sua cota de regalias. O salário de um deputado brasileiro, de 33 700 reais por mês, equivale em valor absoluto ao de seus pares de países ricos. Ou seja, eles vivem no Primeiro Mundo. Mas a realidade da nossa economia está longe disso. O salário anual- dos deputados aqui representa 15 vezes o valor do PIB per capita, ante uma relação de três vezes na Alemanha e nos Estados Unidos — os americanos não reajustam desde 2009 a remuneração dos parlamentares, depois da forte crise financeira que atingiu o país.
E a conta não inclui o aparato à disposição de cada deputado brasileiro, como os 25 assessores e uma cota de dinheiro para o exercício parlamentar. “Nos momentos de corte de gastos, o Executivo promove ajustes, mas os demais poderes acabam não fazendo esse esforço”, afirma Zeina Latif, economista-chefe da gestora XP Investimentos. “A crise descortina essas injustiças.”
É preciso considerar que há um esforço do governo para controlar as contas, com a adoção até mesmo de medidas impopulares. No ano passado, começou a valer um limite ao crescimento das despesas da União conforme a inflação do ano anterior. Chamada de “teto dos gastos”, a medida causa um aperto no curto prazo, mas expõe a necessidade de mexer nos tabus da máquina pública. O aumento de impostos, apesar de indesejável, foi visto por economistas como um sinal do comprometimento com a meta fiscal. Sem isso, a perda de confiança poderia causar ainda mais estragos na economia.
Outra medida tomada foi contingenciar 5,9 bilhões de reais, que só serão liberados se o governo conseguir receitas adicionais — já haviam sido bloqueados 42 bilhões de reais no início do ano. Em relação ao inchaço da máquina, o Ministério do Planejamento está atacando a conta de 1 bilhão de reais -anuais de energia elétrica, com a meta de economizar 600 milhões de reais nos próximos anos.
O Executivo prepara um plano de demissão voluntária dos funcionários, esperando 5 000 adesões. E, nas estatais, espera-se desligar mais 20 000 pessoas até o fim do ano, de um quadro de 523 000. Uma nova normativa impedirá que os funcionários cedidos pelas estatais para cargos comissionados na administração direta tenham acúmulo de salários. “Não estamos compactuando com o que se chama de inchaço da máquina”, diz Fernando Soares, secretário de Coordenação e Governança das Empresas Estatais. “Estamos buscando a redução de despesas.”
Já a arrecadação continua anêmica: cresceu apenas 0,8% em termos reais de janeiro a junho, em relação ao mesmo período do ano anterior. O fato de o governo estar enfraquecido após as delações dos donos do frigorífico JBS, com a acusação de corrupção do presidente Michel Temer, não ajuda a agenda de ajuste. Está difícil contar com receitas extraordinárias, que dependem da força de Temer perante os parlamentares.
Um novo programa de financiamento de dívidas com a União, por exemplo, foi tão esvaziado no Congresso que saiu de uma projeção de arrecadação de 13 bilhões para 420 milhões de reais. Virou uma proposta de perdão generalizado. O ministro Henrique Meirelles, da Fazenda, falou publicamente para as empresas aderirem ao programa até 31 de agosto nas condições vigentes via medida provisória, já que depois disso ela pode expirar e talvez não haja lei para substituí-la.
O governo também não conta mais com uma receita de 4 bilhões de reais que viria com a aprovação de outra medida provisória, que tratava da reoneração da folha de pagamentos, diante da baixa disposição do Congresso em aprovar a matéria ainda neste ano. Segundo os cálculos da Instituição Fiscal Independente, essas renúncias tributárias correspondem a 4,5% do PIB em 2017 e, se metade fosse revertida, o déficit primário chegaria próximo de zero. “É nítido que a equipe econômica não tem respaldo político para fazer os ajustes impopulares ou malvistos”, diz Bruno Lavieri, economista da consultoria 4E.
Também há pressões vindas do setor privado para manter regalias. O caso do BNDES é o mais evidente. Em abril, o governo editou uma medida provisória para criar uma nova taxa de remuneração dos empréstimos do banco: a Taxa de Longo Prazo, que entrará em vigor gradualmente até 2022 e seguirá um título público de cinco anos que rende um juro fixo mais a inflação. A ideia é acabar com a distorção de dar crédito a juro baixo via taxa atual, chamada de TJLP, ao custo de captações do Tesouro a taxas maiores.
A pressão contrária às mudanças no BNDES contribuiu para a renúncia da ex-presidente Maria Silvia Bastos Marques e de três diretores nomeados por ela. “Parte do empresariado quer que o BNDES continue a emprestar a uma taxa menor do que o custo de captação. Não interessa se gera desequilíbrio nas contas públicas”, diz Samuel Pessôa, economista da FGV.
A luta por manter as vantagens não para. No ano passado, em meio à forte crise econômica, o governo concedeu um reajuste aos servidores da Câmara dos Deputados, do Tribunal de Contas da União, da Advocacia-Geral da União, da Polícia Federal, do Banco Central, do Poder Judiciário, entre outros órgãos, que vai exigir um gasto extra de 64 bilhões de reais até 2019. Em sua defesa, o Planalto diz que a gestão anterior já tinha acordado com as categorias e que, de lá para cá, nenhum outro aumento foi concedido. Hoje, esse dinheiro faz falta.
Neste ano, em 17 de julho, pouco antes do recesso parlamentar, o Senado aprovou quatro destaques ao projeto de lei do orçamento de 2018 que exemplificam o esforço do corporativismo para preservar o status quo. Um deles garante que o auxílio-alimentação e a pré-escola pagos aos funcionários do Judiciário, do Legislativo, do Ministério Público da União e da Defensoria Pública da União poderão ser reajustados pela inflação no próximo ano.
Originalmente, o relator do texto, deputado Marcus Pestana (PSDB-MG), havia vetado que o valor desses benefícios ultrapassasse os mesmos subsídios que são pagos pelo Executivo federal, que são tradicionalmente menores. “São despesas com valor marginal no orçamento, mas simbolicamente importante, pois coisas essenciais estão sendo cortadas”, diz Pestana. “A crise fiscal é brutal e as pessoas parecem não ter consciência de que o Brasil está numa armadilha.”
No Congresso, o relatório do orçamento para 2018 foi aprovado com uma meta de déficit de 129 bilhões. Segundo uma nota técnica da Instituição Fiscal Independente, o dado é otimista, uma vez que o déficit no ano que vem poderá chegar a 169 bilhões de reais. Agora, o governo tem até 31 de agosto para apresentar ao Congresso sua proposta de orçamento para o ano que vem.
O cenário político conturbado piora a qualidade do ajuste, recaindo sobre a população. O governo está congelando gastos com despesas sociais e com obras de infraestrutura: de janeiro a maio, foram cortados 8 bilhões de reais do pagamento de programas como o de Aceleração do Crescimento e o Minha Casa, Minha Vida. O reajuste do Bolsa Família no ano foi suspenso.
Já nas emendas parlamentares, somente em junho, após a delação da JBS, o presidente Temer distribuiu 2 bilhões de reais para que deputados e senadores invistam nos redutos eleitorais — em troca, é claro, de apoio na votação que haverá no Congresso sobre as investigações de corrupção. “As emendas não elevam os gastos, porque já eram despesas obrigatórias previstas, mas não podem mais ser contingenciadas”, diz a economista Ana Carla Abrão, sócia da consultoria Oliver Wyman.
Além de pagar pelo ajuste via aumento de tributos, a população também sofre com a piora dos serviços públicos. À medida que o aperto fiscal vai avançando, os órgãos do governo começam a sentir os efeitos. Os mais notórios foram a suspensão da emissão de passaporte pela Polícia Federal e dos serviços prestados pela Polícia Federal Rodoviária, como resgate aéreo e escolta de cargas. Pelo país, há vários exemplos de piora da segurança, das escolas e da saúde. Muitas obras de infraestrutura estão paradas — sem falar das que nem saem do papel.
As agências reguladoras têm sofrido com a falta de recursos para repor os funcionários e atender a população. Na Agência Nacional de Transportes Terrestres, por exemplo, o quadro de pessoal não preenche nem 60% das vagas disponíveis. A Anatel anunciou que pretende reduzir o período de atendimento de sua central pública. A área de ciência e tecnologia sofreu um contingenciamento de 40% da verba neste ano. Na Embrapa, com uma retenção financeira de quase 30%, há pesquisadores com metade da verba de pesquisa. A empresa diz que tem procurado se adaptar ao cenário e que não suspendeu nenhum dos 300 projetos até agora.
A regra do “teto dos gastos” trouxe uma nova realidade para as contas públicas. Agora começou a disputa pelos recursos do governo, cada vez mais limitados. Mas há pressões de todos os lados para manter ou aumentar os privilégios. A verdade é que, na hora do aperto, quando todos os setores deveriam fazer sua parte para o país voltar a crescer, nem todos parecem dispostos. Pior para os de sempre.